A judia que os alemães salvaram da morte

Recebida numa quinta durante a II Guerra Mundial, foi ali que passou dois anos escondida com a filha. A história desta mulher, hoje com 98 anos, foi agora adaptada ao cinema
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No final da guerra, a primeira coisa que a minha filha perguntou foi se podia voltar a chamar-se Karin Spiegel", recorda a mulher que, apesar dos 98 anos, não perdeu nada da vivacidade nem da cabeleira loura. Durante dois anos, de 1943 a 1945, Marga Spiegel e a filha viveram escondidas numa quinta dos Aschoff, ajudando nas lides do campo e sendo apresentadas às poucas pessoas que passavam pelos campos da Renânia do Norte-Ves-tefália como refugiadas de uma Dortmund bombardeada. O marido, esse, encontrou refúgio numa outra quinta próxima, propriedade de ex- -companheiros de armas da I Guerra Mundial. Foi a coragem destes alemães que por amizade não hesitaram em enfrentar o regime nazi que Marga Spiegel louvou nas suas memórias Salvadores na Noite e que agora o realizador Ludi Boecken levou ao cinema em Marga.

Filha de um veterano da I Guerra Mundial, Marga teve mais sorte do que muitos judeus, uma vez que a carreira militar do pai lhe permitiu estudar Física e Matemática. Isto antes de o regime de Adolf Hitler proibir o acesso à universidade a todos os judeus. Nascida na aldeia de Oberaula no Hesse, em 1912, esta filha de comerciantes recordou em entrevista ao Le Monde como as leis se foram tornando mais opressivas. De repente, os judeus eram proibidos de estudar, de trabalhar e até de serem tratados nos hospitais de Dortmund, para onde a família fora viver. "Tínhamos de usar a estrela amarela, tornáramo-nos inimigos oficiais do nosso país", lembrou.

Ir para a Palestina chegou a ser uma opção para os Spiegel, mas a doença da mãe de Marga inviabilizou os planos. E, como a própria lembrou agora: "O meu marido, condecorado com a cruz de ferro pela sua coragem na Grande Guerra, achava que éramos intocáveis." Mas, como muitos judeus que haviam mostrado o seu patriotismo ao combater pela Alemanha, estava enganado. A solução final dos nazis não poupava ninguém. Em Ahlen, todos os judeus foram expulsos ou enviados para campos de concentração, com os eleitos locais a orgulharem-se de serem a primeira cidade judenfrei (livre de judeus).

Deportados para Dortmund, os Spiegel acabaram alojados em barracas, com Menne, o marido de Marga, forçado a trabalhar nas minas. Mas quando os judeus foram convocados para a deportação, a 28 de Fevereiro de 1943, os Spiegel faltaram ao apelo. E fugiram. "O meu marido, a minha filha e eu somos os únicos habitantes de Ahlen a ter sobrevivido", lamenta Marga. E tudo graças à coragem dos Aschoff, dos Pentropp e dos Silkenboemer.

Estes alemães, longe de fazerem parte da resistência, agiram por amizade com o casal e a sua filha, então com quatro anos. "Eram membros do Partido Nacional-Socialista desde 1930, os seus filhos faziam parte da Juventude Hitleriana e os mais velhos combatiam no exército", lembra Marga.

Durante anos, as histórias dos justos (não judeus que ajudaram judeus a escapar aos nazis) alemães foram mantidas na sombra. Boecken explicou porquê ao Le Monde: "Oficialmente era porque não se podia mostrar alemães bons, mas a verdade é que estas pessoas provavam que os alemães tinham podido salvar judeus."

Terminada a guerra, os Spiegel permaneceram nas quintas "para ajudar quem nos recebeu a proteger-se contra os bandos de antigos prisioneiros de guerra e trabalhadores que atacavam as quintas e as queimavam", como explicou Marga. De volta a Ahlen, sair da Alemanha não era opção. "O meu marido não queria viver noutro sítio. Era profundamente alemão. Além disso, os nossos salvadores eram a única família que nos restava, a outra tinha morrido."

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