A interpretação dos factos nunca pode sobrepor-se à realidade dos mesmos

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Tinha advertido os leitores de que esta semana - infelizmente! - teria de voltar ao tema do noticiário do DN sobre o comportamento do diretor do Instituto de Odivelas. Para quem não acompanhou muito atentamente a análise da semana passada, eis sucintamente os factos: o diretor do Instituto de Odivelas, o coronel no ativo José Serra, distribuiu uma nota aos pais das alunas, informando-os de que, na sequência de uma decisão ministerial, aquela instituição estava "impedida" de matricular candidatas ao 5.º ano, apenas admitindo alunas do 6.º ao 10.º ano. Mais dizia o diretor daquela escola, dependente do Exército: "Acreditamos que este nosso projeto educativo [...] continuará a perdurar no tempo [...] e no mosteiro que D. Dinis mandou erigir e acolher o seu túmulo."

Sem ouvir o coronel, sem qualquer voz autorizada a corroborar, o DN entendeu noticiar que se estava perante uma violação dos deveres militares por parte do diretor do Instituto, sustentando-se unicamente na interpretação que um seu jornalista fez das normas que regem a instituição castrense.

O assunto foi objeto da minha análise - a que voltarei mais adiante, porque houve, digamos... recidivas - mas ficou por apreciar uma sequência daquela notícia, ainda mais invulgar.

No sábado, 1 de junho, o DN chamava à primeira página: "Exército substitui coronel que criticou ministro." A notícia parecia definitiva para quem tivesse conhecimento do episódio do Instituto de Odivelas: afinal, o coronel tinha mesmo criticado o ministro e o Exército afastava-o.

O mesmo título era repetido na página 10, seguido de algo intrigante: "José Pedro Aguiar-Branco escusa-se a comentar atitude do diretor do Instituto de Odivelas, dizendo só que "os factos falarão por si"."

Falarão? Não falaram já? Decide-se primeiro e julga-se depois?

Segue-se a notícia: "O ministro da Defesa disse ontem ter falado com o chefe do Exército sobre o diretor do Instituto de Odivelas (IO), mas escusou-se a comentar o facto de o coronel escrever que "foi impedido" pelo Governo de inscrever novas alunas. "Os factos falarão por si", declarou José Pedro Aguiar-Branco, repetindo que o assunto "foi objeto de avaliação" com o Exército - ramo que reafirmou ser esse "um assunto do âmbito interno" e que "está a ser tratado internamente"."

Onde está a sustentação do título, que afirma que "Exército substitui coronel"? Custa a acreditar, mas está nisto: na interpretação - autoproclamada "tradução" - feita pelo jornalista do DN. Ei-la: "Traduzida esta linguagem político-militar, pode concluir-se que o ministro reagiu, que o Exército assumiu haver um problema com a carta - e que o diretor do IO será substituído."

Confesso que tenho de parar aqui um momento para tomar fôlego antes de fazer a análise. O leitor também, estou em crer. Vá, sente-se aqui um bocadinho. Pronto. Vamos lá. Nunca tinha visto esta maneira de fazer jornalismo, onde a nuvem vale mais do que Juno. Que interessa a indefinição dos factos, perante a certeza interpretativa do jornalista, que tem um dicionário político-militar na cabeça e sabe traduzir com rigor o que... não é dito.

Costumam dizer os jornalistas que cobrem encontros de diplomatas que, se depois de uma longa reunião, algum porta-voz afirmar que "foi um encontro muito positivo", já se sabe houve divergência da grossa. Mas jamais algum jornalista titulou: "Só faltou tirar olhos na Cimeira de..."

Não sei se, a esta hora, o coronel José Serra está agrilhoado num calabouço, se um pelotão de fuzilamento já o varou no pátio do Instituto de Odivelas ou se anda a encaixotar os pertences no gabinete. Não estou muito a par das ordens de serviço à caserna. E até trago enferrujado o meu patoá político-militar, apesar de ter vivido por dentro os anos mais intensos de política militar. O que sei é que, quando a notícia foi publicada, não tinha qualquer sustentação nem foi apresentada - era o mínimo - em termos dubitativos.

Costumo chamar a atenção para duas vulnerabilidades do chamado jornalismo interpretativo. A primeira é bíblica e lê-se em Mateus 27, 46: "Cerca das três horas da tarde, Jesus clamou com voz forte: Eli, Eli, lemá sabachtáni?, isto é: Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste? Alguns dos que ali se encontravam, ao ouvi-lo, disseram: "Está a chamar por Elias.""

(Devem ter sido os Pais Fundadores do jornalismo interpretativo...)

A segunda advertência tem que ver com um aforismo muito comum entre os jornalistas: "Os factos são sagrados, as interpretações são livres." Entendo que esta frase não pode ser generalizada: os factos são, realmente, sagrados; as interpretações só são livres para os leitores. As interpretações dos jornalistas têm de conter uma dose de dúvida metódica, porque não é o jornalista quem vai fazer o juízo de valor, é o leitor. Este é que é o juiz.

Aquilo que aconteceu na notícia em análise é que o leitor foi mandado para um canto, os protagonistas e visados para o outro e só ficou em cena o jornalista, exatamente o único cuja opinião não era para ali chamada.

O jornalista em causa, Manuel Carlos Freire, não se conformou com as minhas críticas na semana passada e escreveu-me, pedindo publicação: "A severidade e o tom das suas críticas ao artigo "Coronel no ativo critica Governo", o declarar que dá "toda a razão e mais alguma" ao protesto da presidente da associação de ex-alunas do Instituto de Odivelas (IO), tornam ruidoso o silêncio - já com três semanas - do Exército sobre o caso.

"A notícia não era sobre as boas intenções do diretor do IO. Era sobre o que escreveu e o que isso significa no Estado de direito democrático. Ouvi previamente o Exército, que responde por aquele oficial. O porta--voz foi expressamente citado: "No que respeita à direção do IO, trata-se de um assunto que diz respeito ao âmbito interno do Exército e como tal será tratado internamente."

"Assim, como e porque é que o Provedor me acusa de infringir o Código Deontológico, de cometer o "pecado mortal" de "não [me dar] ao trabalho de ouvir" o militar?

"Citei a carta assinada pelo coronel José Serra (que obtive na página do Facebook com o título "Contra a Extinção do IO") e li-a em função do que dizem a Lei de Defesa Nacional e o Regulamento de Disciplina Militar (RDM).

"Afirmar que o IO "foi impedido de inscrever" alunas por despacho ministerial é diferente de dizer que o IO "deixou de" as inscrever. Acreditar que o projeto educativo do IO "continuará a perdurar no tempo, numa matriz de escola feminina [...] e no Mosteiro que D. Dinis mandou erigir e acolher o seu túmulo" transcende o curto prazo determinado para o seu encerramento naquele local. [...]"

Estes os argumentos essenciais de Manuel Carlos Freire que, sintomaticamente, lamenta a falta de respaldo por parte do Exército, o qual há mais de três semanas se mantém em "silêncio ruidoso". Não deixa de ser curioso - ou preocupante - a insistência com que um jornalista e, com ele, o seu jornal, queira marcar a agenda do Exército e, qual Salomé, pareça só se acalmar quando vir a cabeça do coronel numa bandeja. A mim parece-me feio, mas o leitor dirá de seu juízo. Pensava eu que o lugar do jornalista seria exatamente o oposto, pronto a denunciar quem não deixa falar e não perseguir quem fala, mas devo ser eu que já devo ter os fusíveis trocados...

Insiste Manuel Carlos Freire em que está feito o contraditório, porque ouviu a instituição Exército. Essa é forte: acusa uma pessoa e ouve a instituição - que, para mais, nada lhe diz que sustente a acusação? E não faz um esforço por ouvir o próprio nem pessoas abalizadas a opinar sobre o texto e o contexto do que considera um ato de indisciplina?

Permite-se o jornalista dizer como é que a carta do coronel deveria ser escrita. (Já foi esclarecido que não foi ele quem a colocou no Facebook, pelo que insistir nisso parece uma procura pouco galharda de uma espécie de agravante.) Não pode dizer que foi impedido, se tem um despacho que o impede de aceitar matrículas? Não pode dizer que espera que se mantenha o projeto e os valores? A concretizar-se a inclusão do Instituto de Odivelas no Colégio Militar, vão ser apagados os valores que transmite há 113 anos? Não pode dizer que espera que a formação continue a ser ministrada no mosteiro mandado construir por D. Dinis? Porquê? Quer o jornalista à viva força que as meninas vão dormir nas camaratas do Largo da Luz?

Eu não sei se foram estas as intenções do coronel José Serra, que não conheço de parte alguma e muito menos lhe consigo entrar dentro da cabeça. Quis com a minha análise apenas mostrar a fragilidade das certezas de quem vê nas afirmações uma só leitura possível - e condenatória de quem as proferiu. É por isso que existe o direito de defesa - e mal vai o jornalismo se passar sobre ele com lagartas de Panzer.

Finalmente, chamei a atenção para o contexto de santuário académico que é milenarmente respeitado em instituições como os estabelecimentos militares de ensino, os seminários religiosos e as universidades.

No termo da sua carta, Manuel Carlos Freire traz-nos um patusco decreto, não me dizendo a origem: "O "direito de santuário académico" nas forças armadas é reconhecido até ao momento em que o comandante, diretor ou chefe decide. Depois impera o cumprimento dos deveres militares."

Firme! Sent-op! Está decretado! E eu que pensava que as fontes do direito são a lei, o costume, a jurisprudência e a doutrina. E que cuidava que o santuário académico é um costume não derrogável exceto se a autoridade legítima entender que deve pôr termo a tal consenso tácito sedimentado por longa prática consuetudinária - para recitar Ulpiano -, para isso produzindo uma lei. Não me lembro de a Assembleia da República se ter reunido por esta razão. Nem conheço decreto - se é que possui força para anular um costume - que tenha posto fim ao santuário académico.

Além de que o santuário académico é um direito de valor essencialmente moral. Pode uma bota cardada qualquer espezinhá-lo - mas não fugirá ao julgamento da história pela barbaridade cometida.

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