«Afinal, o concerto é do Rodrigo Costa Félix ou da Marta Pereira da Costa?» A graça repete-se, inclusive pela voz do próprio Rodrigo, nos bastidores do Pequeno Auditório do CCB, onde daqui a pouco o casal - na vida e no palco - entrará para um espetáculo que apresenta o novo Fados de Amor, mas revisita também Fados d'Alma, o primeiro disco do fadista, a solo..Marta sorri um sorriso tímido, de miúda, e desvaloriza. «É por brincadeira, não é que eu precise de mais atenção, mas...» Rodrigo ri e agarra a deixa: «Nãaaao, nada. Eu só fui literalmente expulso do meu camarim porque a menina teve de ter maquilhadora e conselheira de imagem e montou ali a parafernália toda. Mas, enfim, há que reconhecer, a Marta é muito mais bonita e talentosa do que eu», diz, galanteador. E é a primeira mulher no fado a dedicar-se profissionalmente à guitarra portuguesa. A decisão de deixar a Engenharia Civil, carreira abraçada com pouca convicção, não foi, mesmo assim, fácil. Mas Marta Pereira da Costa tomou-a em Janeiro deste ano, animada pelo trabalho árduo mas compensador da gravação de Fados de Amor. .«Quando comecei a gravar o disco com o Rodrigo tive de trabalhar muito, treinar muitas horas e aprendi imenso. A ideia de que gostaria de fazer disto a minha vida e de que poderia fazer a diferença, sendo mulher, a tocar guitarra, começou a ganhar forma. Estava um pouco desmotivada, andava cheia de trabalho - com o disco e com as aulas de piano que dou num colégio - e tive de decidir. Para evoluir na guitarra tinha mesmo de deixar a engenharia.» O apoio do marido foi determinante. «O Rodrigo foi o primeiro a incentivar-me porque sabia que isto ia deixar-me muito feliz.» Sentimento claro no palco do Pequeno Auditório do CCB, onde Marta brilhou, de encarnado, namorando à guitarra a voz de Rodrigo. Marta acha que não, que o nervosismo extremo que a acompanha em cada concerto, e que tem vindo a aprender a controlar, desta vez não lhe permitiu estar no seu melhor. Quem a viu e ouviu não deu por nada..Rodrigo também não. Desde que a conhece, e já lá vão 12 anos, percebeu nela uma musicalidade tão extraordinária e uma paixão pela música tão incrível que soube sempre que o futuro dela teria de passar por aqui. «A Marta é música dos pés à cabeça e tem uma capacidade de trabalho, de entrega e de dedicação fantásticas. Por isso, quando as pessoas ouvirem o disco vão perceber que já não é só uma curiosidade nem é só a menina gira que toca guitarra, é uma guitarrista de corpo inteiro, criativa, original, sensível.».Foi também há 12 anos que a guitarra portuguesa entrou na vida de Marta. O pai, amante de fado, tanto insistiu que conseguiu convencer a filha, que tocava piano desde os 4 e guitarra clássica desde os 8, a fazer uma aula. «Foi com o Carlos Gonçalves, grande guitarrista, que tocava com a Amália», recorda, «fui ver como era e gostei imenso. Depois fui tendo uma e outra aula e acabei por comprar a minha primeira guitarra portuguesa e começar a frequentar as casas de fado, onde nunca tinha entrado. Comecei por conhecer a guitarra e só depois o fado e agora agradeço imenso ao meu pai ter-me apresentado a guitarra portuguesa.».De certa forma, apresentou-a também ao seu futuro amor. A diferença de idades - Marta tem 29, Rodrigo 40 -, que há 12 anos pesava mais, ditou que os primeiros encontros no Clube do Fado levassem o seu tempo a produzir efeitos, mas fado é fado e três anos depois o namoro começou. Casados há sete, têm dois filhos, gémeos, de quase três anos. Nos últimos tempos, o que não tem sido fácil é conciliar as saudades dos pequenos. Muitos dias e noites fora de casa e até fora do país forçam a separação. Custa tanto a Marta como a Rodrigo estar longe, mas é ela que relativiza. «Eles estão bem, quando não estão connosco, estão com os avós, e são muito queridos, quando chegamos estão sempre bem. Claro que nos custa muito deixá-los, mas quando estamos o Rodrigo é um pai fantástico, superbrincalhão, faz tudo, desde os primeiros dias, banhos, fraldas... E eles também são especiais porque não são crianças difíceis ou choronas. Quando fazemos ensaios lá em casa, são os primeiros a bater palmas, e pedem para ouvir o CD do pai ou para tocar a Balada ao Meu Amor. É engraçado porque já pedem este ou aquele fado específico. Acho que percebem que este é o nosso trabalho.» .Fados de Amor.Ao contrário de Marta, para Rodrigo Costa Félix o palco não é novidade e o à vontade e boa disposição dos bastidores e dos ensaios com os músicos e as convidadas Adriana (flauta), Aline Frazão e Kátia Guerreiro (vozes) com quem viria a fazer os três duetos da noite do CCB, transpõem-se para a sala cheia, quando as luzes incidem já apenas sobre o palco. Apesar da inquietude que garante assolá-lo, sempre, vinte minutos antes da entrada em cena dir-se-ia que está em casa - ou numa pequena sala de fados -, tal é o intimismo que cria em cada história que conta e fado que canta. «Para mim, só assim é que faz sentido. Tenho de conseguir envolver as pessoas, porque o fado é proximidade, é eu cantar aqui para ti e tu sentires o que estou a dizer. Por isso é que se diz que nas casas de fado é mais autêntico. Tem uma caraterística que muito poucas músicas no mundo têm: tanto é fadista quem canta como quem ouve. Se não existir este diálogo, não tem graça.».Talvez por isso Rodrigo tenha passado grande parte dos mais de vinte anos que tem de fadista no Clube do Fado, do guitarrista Mário Pacheco. Começou aos 17, por arrastamento de um grupo de amigos. «Comecei na altura certa, porque o fado é emoção e é na adolescência que as emoções estão à flor da pele.» Apaixonou-se primeiro pela poesia e depois pela melodia e o namoro demorou pouco a tornar-se compromisso, aos 19, idade com que assinou o primeiro contrato com uma casa de fado. À época, ao contrário do que se passa hoje, eram poucos os jovens que apreciavam a canção nacional, daí que os amigos que ganhou fossem muito mais velhos. «As pessoas com quem me dava tinham 50 e 60 anos e aprendi imenso com elas. Havia o lado negativo de não existir no fado o mediatismo que existe hoje com esta nova geração de fadistas e de músicos, mas havia muita partilha e interação, era tudo mais natural e descontraído, não havia a pressão da imagem, limitavas-te a ser. Hoje já não podes só ser, é tudo mais profissional, mais estudado e mais produzido. E nós somos a prova disso.».Com este Fados de Amor, aos 40 anos, Rodrigo Costa Félix esperaapanhar a carruagem que deixou passar no final dos anos 1990, quando em pleno boom da nova geração do fado partiu para Londres para estudar Engenharia de Som, deixando o curso de comunicação social e adiando o início de uma carreira mais séria de fadista. Em 1995, Alma Nova, um projeto discográfico com Mariana Bobone e Miguel Capucho, foi «o primeiro CD da geração de noventa». Depois de Fados d'Alma, em 2008, que considera um bom começo de carreira a solo, muito bem produzido por Mário Pacheco, mas ao qual faltava uma ideia central, encontrou nas mulheres um fio condutor. .O cavalheiro, que duas horas antes do concerto no CCB foi o único que se lembrou de mandar comprar flores para oferecer às senhoras que com ele partilhariam o palco, explica porquê: «Sempre tive a felicidade de crescer rodeado de mulheres extraordinárias - a minha avó, a minha mãe, a minha irmã, a Marta - e acho que são seres superiores, a sério, não é de agora que digo isto, a Marta já o ouviu muitas vezes e não foi para a engatar. E têm um conhecimento do que é o verdadeiro amor muito mais profundo e intenso do que os homens. Por isso, como um disco é um testemunho, algo que se deixa para a vida, como um livro que se escreve, achei que deveria dedicar um disco à mulher. Mas quando começámos a reunir temas, percebemos era de amor que falavam e o título ficou Fados de Amor.». Para ouvir.