Nem a literatura nem o cinema a deixam em paz, recorrendo aos mais insólitos expedientes e pontos de vista. No livro The Life and Opinions of Maf the Dog, and of his Friend Marilyn Monroe, o romancista Andrew O'Hagen dá voz a Maf, o cão da actriz, um terrier que lhe foi oferecido por Frank Sinatra. E há três novos filmes em preparação sobre ela. Michelle Williams vai interpretá-la em My Week with Marilyn, de Simon Curtis, sobre a rodagem, em Inglaterra, em 1957, de O Príncipe e a Corista, de e com Sir Laurence Olivier. Naomi Watts irá também corporizar Marilyn em Blonde, de Andrew Dominik, com base no livro de Joyce Carol Oates. O terceiro e último filme, ainda sem título, basear-se-á no testemunho de um antigo médico legista de Los Angeles que afirma que foi forçado a mudar a causa da morte de Marilyn Monroe de suicídio para assassínio. Em compensação, acaba de sair um livro que nos permite saber coisas sobre Marilyn escritas pela própria, em vez de serem interpretações assinadas por outros. Há pouco mais de 15 dias foi publicado Fragments: Poems, Intimate Notes, Letters by Marilyn Monroe, uma colecção de textos diarísticos, apontamentos, cartas e poemas escritos pela actriz que estavam guardados em duas caixas do seu espólio, hoje pertença de Anna Strasberg, terceira mulher e viúva de Lee Strasberg, o mais lendário dos fundadores do Actors Studio, que foi professor de Marilyn e também seu pai substituto, tendo chegado a entregá-la em casamento a Arthur Miller (segundo muitos, Strasberg foi também responsável por a ter «empurrado» para os braços dos psicanalistas, que tornaram Marilyn ainda mais emocionalmente instável e psicologicamente insegura do que já era, e por lhe ter sufocado e baralhado o talento instintivo com as exigências do Método). Marilyn Monroe deixou tudo a Lee Strasberg, incluindo todos os seus papéis pessoais, e a família Strasberg tem também os direitos da imagem da actriz, que lhe proporcionam um rendimento de vários milhões de dólares por ano. O livro Fragments: Poems, Intimate Notes, Letters by Marilyn Monroe, editado por Stanley Buchthal e Bernard Comment, podia ter como subtítulo Marilyn Revela-se, de tal forma os escritos da intérprete de O Pecado Mora ao Lado são elucidativos sobre as suas angústias, inseguranças e terrores (acima de todos, estava o medo da loucura, que Marilyn acreditava ser hereditário na sua família), a obsessão de decepcionar os homens que se aproximavam dela ou ainda a profunda falta de confiança em si própria. O que não é de admirar numa mulher que, conforme sintetizou Peter Bogdanovich no seu livro Who the Hell's in it?, «nasceu ilegítima; perdeu o pai aos 3 anos; a mãe andou por hospitais psiquiátricos ao longo de toda a sua infância; foi criada em lares de adopção, num orfanato e por amigos da mãe; foi negligenciada, mal-amada, humilhada, violada; casou-se pela primeira vez quando tinha 16 anos e tentou suicidar-se logo um ano depois». Não foi por acaso que Arthur Miller, com o qual Marilyn passou alguns dos tempos mais felizes da sua vida, mas que depois também haveria de o decepcionar (o dramaturgo escreveu no seu diário que Marilyn o tinha «desapontado» e que por vezes ela o fazia sentir-se envergonhado em frente dos seus amigos do mundo literário e intelectual - e Marilyn leu estas palavras), disse a Bogdanovich que Marilyn Monroe «viveu toda a sua vida mesmo à beira do túmulo». No entanto, muitos dos ilustres amigos de Miller ficaram fascinados com Marilyn Monroe quando a conheceram. Foi o caso de Truman Capote, do qual ficou amiga de imediato, ou de Saul Bellow, que não se cansou de lhe tecer elogios, por ter percebido que a belíssima e sensualíssima mulher à qual tinha sido apresentado não correspondia de todo à imagem da «loura burra» que os filmes serviam ao público; e que não se fazia fotografar com o Ulisses de James Joyce nas mãos ou ao pé de uma estante onde se viam livros de Heine, Dostoiewski e Carl Sandburg para parecer «culta» e lida, mas sim porque gostava mesmo de ler e fazia um esforço sincero para se cultivar intelectualmente. Aliás, e como consta do título, vários dos escritos de Marilyn Monroe que o novo livro colige são poemas, ou esboços e fragmentos de poemas, praticamente todos autobiográficos ou relacionados com a sua vida íntima, muitos dos quais se confundem, até, com desabafos espontâneos e estilhaços de auto-análise. Num deles, Marilyn escreve: «Ah, paz, preciso de ti - mesmo de um monstro pacífico.» Noutro, escrito após um ano de tratamento com um dos vários psicanalistas que consultou ao longo da sua vida, lê-se: «Socorro socorro/Socorro/Sinto a vida a chegar perto de mim/quando tudo o que quero/É morrer.» Como escreve Sam Kashner na edição de Novembro da revista Vanity Fair, num longo artigo sobre Fragments: Poems, Intimate Notes, Letters, «este arquivo [de escritos pessoais de Marilyn Monroe] é uma descoberta sensacional para os biógrafos de Marilyn e para os seus fãs que ainda querem salvá-la da mancha do suicídio, das acusações de sordidez, das camadas de interpretações erradas e de distorções escritas sobre ela ao longo dos anos. Finalmente, dispomos agora de um olhar livre de filtros para a sua mente». Um dos documentos mais impressionantes e pungentes contidos no livro é a longa e detalhada carta que Marilyn escreveu a um dos seus psiquiatras, o Dr. Ralph Greenson, descrevendo a forma como foi tratada quando do seu internamento na ala psiquiátrica do Weill Cornell Medical Center de Nova Iorque, no início de 1961, alguns meses depois de se ter separado de Arthur Miller. A actriz pensava que ia fazer apenas uma cura de sono, mas afinal foi metida numa cela acolchoada igual àquelas onde eram encerrados «os doentes "muito" depressivos e perturbados», tendo-se sentido «como se estivesse numa prisão por um crime que não cometi». Em resposta aos seus protestos, Marilyn Monroe foi ameaçada com o colete-de-forças, obrigada a tomar banho e vestida com uma bata branca igual à dos outros pacientes. Depois de, em desespero, ter partido um vidro com uma cadeira (inspirando-se na personagem da adolescente perturbada que tinha interpretado num dos seus primeiros filmes, Don't Bother to Knock), e ameaçado os enfermeiros de que se cortaria se não a deixassem sair (o que nunca pensou fazer porque «sou uma actriz e nunca me marcaria ou mutilaria intencionalmente, tão vaidosa sou»), Marilyn Monroe foi tratada pouco menos do que como uma louca furiosa. Valeu-lhe, finalmente, o seu ex-marido Joe DiMaggio, que a tirou do hospital, o que nem Lee Strasberg nem a sua mulher Paula haviam conseguido, por não serem família dela. DiMaggio alegou o seu estatuto de ex-marido e puxou dos seus galões de lenda viva do basebol e de personalidade unanimemente querida pelos americanos, conseguindo assim arrancar Marilyn ao seu inesperado e cruel tormento. Segundo Sam Kashner, «se este arquivo não resolve o enigma da morte de Marilyn Monroe, permite-nos pelo menos ir mais longe do que alguma vez fomos no que respeita ao mistério da sua vida», e juntar alguns dos «estilhaços a que ela não conseguiu dar uma forma reconhecível», nas palavras do já citado David Thomson. Marilyn Monroe nunca foi a representação acabada da «loura burra», tanto que até parodiou essa imagem de si própria em filmes como Os Homens Preferem as Louras, de Howard Hawks, e O Pecado Mora ao Lado e Quanto mais Quente, Melhor, de Billy Wilder. Uma loura muito infeliz, tragicamente infeliz, sim. Burra, jamais. E como notou Maureen Dowd numa crónica recente no The New York Times, enquanto os anos 1950 e sessenta tiveram Marilyn Monroe, a falsa «loura burra», a nossa época tem «Paris Hilton e as da sua laia». Que abismo tão profundo e intransponível existe entre elas.