Quando evocamos memórias do cinema japonês, pensamos, desde logo, em mestres clássicos como Kenji Mizoguchi ou Yasujiro Ozu. Mas não, por certo, nos nomes de Koreyoshi Kurahara, Yasuzô Masumura e Kirio Urayama. Porquê? Porque, em boa verdade, continua a ser rara a difusão dos seus filmes fora do Japão. Agora, graças à distribuidora The Stone and the Plot, dirigida por Daniel Pereira, e ao programador Miguel Patrício, Portugal é uma exceção: os cineastas citados são protagonistas de um novo ciclo - Mestres Japoneses Desconhecidos II - com que aquela empresa continua a divulgar os recantos menos conhecidos de uma cinematografia tão rica quanto plena de contrastes..A primeira parte deste ciclo, realizada em finais de 2021, dera a conhecer três títulos de 1955. Agora, poderemos descobrir mais três produções, todas da década seguinte, época em que as "novas vagas" pontuaram o cinema de diversos países, incluindo o Japão - bastará recordar o caso exemplar de Nagisa Oshima..Assim, Johnny Coração de Vidro (1962), A Vida de Uma Mulher (1962) e A Mulher Que Eu Abandonei (1969), respetivamente de Kurahara, Masumura e Urayama, estarão, para já, em Lisboa, no City Alvalade, a partir de quinta-feira; seguir-se-ão exibições em várias cidades do país, incluindo Porto, Braga e Coimbra..A referência de Oshima pode ser sugestiva, quanto mais não seja porque, muito antes do impacto internacional de O Império dos Sentidos (1976), ele se afirmara como um dos símbolos de toda uma renovação temática e estética transversal aos "novos cinemas" (França, Brasil, Portugal, etc.). Assim, por esta altura, Oshima assinava títulos tão marcantes como Contos Cruéis da Juventude (1960) ou O Enforcamento (1968)..Não fará sentido olharmos para as três estreias que agora podemos descobrir como "derivações" do trabalho de Oshima. Ainda assim, creio que não será abusivo considerar que, através das histórias que os filmes narram, deparamos com uma mesma inquietação que, sendo social, envolve sempre alguma interrogação moral. A saber: estamos perante uma clara vontade de reconhecer as convulsões da sociedade japonesa da época, por vezes procurando na primeira metade do século XX as raízes de uma perturbação que contamina todas as relações humanas, sejam elas familiares, sexuais ou profissionais..Nesta perspetiva, a descoberta mais interessante será, a meu ver, A Vida de Uma Mulher, ironicamente ou não, o mais tradicional dos três filmes. No dossier de imprensa de The Stone and the Plot, a nota biográfica sobre o realizador sublinha isso mesmo: "Masumura nunca fez bem parte da Nova Vaga japonesa e o seu estilo poderá ser considerado mais clássico do que modernista"..Através da odisseia de uma órfã, expulsa da casa dos tios, que acaba por se casar, "acima da sua classe", com o filho mais velho de uma família de comerciantes, Masumura evoca quatro décadas da história do Japão, da vitória sobre a Rússia, em 1905, até à derrota na Segunda Guerra Mundial. Essa dimensão de fresco histórico é, no essencial, vivida numa convulsiva intimidade teatral - estamos, aliás, perante a adaptação de uma peça de Kaoru Morimoto..A teatralidade de A Vida de Uma Mulher é tanto mais envolvente quanto, na verdade, se apresenta transfigurada pelos meios do cinema. Invulgar é, sobretudo, a sábia utilização do formato largo (correspondente ao clássico scope) e o jogo de olhares que Masumura encena em espaços cuja tensão se amplia, paradoxalmente, através das suas pequenas dimensões..Johnny Coração de Vidro e A Mulher Que Eu Abandonei poderão, talvez, ser definidos como mais próximos de certos modelos do melodrama, agora transfigurados por novas formas de relação com o quotidiano. O primeiro, em particular, cruza um realismo austero com um certo gosto da parábola social - a saga da prostituta que foge do homem que a domina, encontrando um salvador relutante num jovem que vive de expedientes (e apostas em provas de ciclismo...), terá tido a sua principal inspiração, segundo as notas de imprensa, em A Estrada (1954), de Federico Fellini, outro exemplo de reconversão de toda uma herança (neo-)realista..Algo dessa frieza realista está também presente em A Mulher Que Eu Abandonei, neste caso colocando em cena uma personagem indissociável de novos modelos de organização económica. A figura central é um empregado de uma fábrica de automóveis que, inesperadamente, se vê dividido entre duas mulheres: a sobrinha do presidente da sua empresa, com quem irá casar-se, e uma paixão dos tempos da universidade de quem se distanciou, convencido por um amigo de que a sua condição "plebeia" não justificava qualquer arrebatamento....Dos três filmes, A Mulher Que Eu Abandonei será o mais "experimental", tratando o ziguezague temporal da ação através de algumas cenas tintadas e, por fim, passando do preto e branco para a película a cores. Não me parece, neste caso, a maneira mais consistente de intensificar o dramatismo das situações, mas é um fato que tal opção reflete a curiosa preocupação de manter uma certa "colagem" aos dados mais imediatos do quotidiano e ao "naturalismo" (palavra certamente discutível neste contexto) do trabalho dos atores. Em Johnny Coração de Vidro, há mesmo cenas de rua em que o drama não exclui a integração de imagens cuja "espontaneidade" introduz uma insólita sensação documental. Resumindo: três filmes que são um pequeno grande acontecimento no nosso mercado, rasgando novas perspetivas para o conhecimento do cinema do Japão..dnot@dn.pt