Houve sempre um problema de harmonia entre a proclamação dos programas que nas democracias ocidentais alicerçam a decisão dos eleitores que legitima a tomada do poder político e a fidelidade desse poder ao programa, pondo em conflito a legitimidade da aquisição e a legitimidade da ação. Neste século de criação e escolha de modelo, não faltam exemplos, designada e infelizmente no continente americano, onde a violência da repressão dos governantes substitui o diálogo que as constituições prometem e a realidade ignora..A crescente frequência desta infeliz falência de bom governo tem um efeito corrosivo da ordem interna e da ordem internacional que é a crise da credibilidade, isto é, da virtude suposta pelos cidadãos nos intervenientes nas diferentes espécies de governança, quer ganhem ou percam as eleições. Como, praticamente até ao século passado, foi corrente aceitar, com Max Weber, o monopólio da força, concretamente militar, como uma prerrogativa justa do Estado para defender os interesses legítimos contra agressões ou pretensões externas que os ferissem, a credibilidade era um valor que também intervinha na aceitação dos sacrifícios que o recurso a essa força impunha aos próprios cidadãos. Churchill sabia que seria seguido quando proclamou que assumia a guerra para defender a liberdade e não outros interesses, apoiando-se na credibilidade dos que acreditaram em termos de ele poder depois afirmar que nunca tantos deveram tanto a tão poucos, tendo sobretudo em vista a força aérea. A credibilidade, que não foi nunca ferida, de homens como Gandhi e Mandela..Mas entretanto aconteceu o cisne negro da globalização, que levaria seguramente K. Popper, o autor do dito, a rever a convicção com que, ao meditar sobre o desenvolvimento do conhecimento científico, escreveu que "no campo político, todavia, a tradição da discussão cria a tradição de governar pela discussão e, como consequência, propicia o hábito de escutar o ponto de vista dos outros, o desenvolvimento do sentido da justiça e a predisposição para o compromisso". Embora ainda tenha vivido a Segunda Guerra Mundial e a Guerra Fria (morreu em 1994), não assistiu à velocidade com que a opinião pública (de que disse seja isso o que for) é hoje um produto sobretudo de redes mundiais, mal sabidas, e menos da intervenção dos que aspiram ao exercício do poder político para servir, em tese, o interesse público..As interdependências globais são hoje tão numerosas, e tão deficientemente conhecidas na estrutura, funcionamento e interesses dominantes, que, por exemplo, a depois chamada "bioinvasão", com o alarme causado pelo vírus do Nilo Oriental, levou, confirmando Popper, a recomendar à população americana que aceitasse "a redução no comércio e viagens mundiais". Uma recomendação que hoje já talvez não pudesse ser feita com igual confiança em relação à estrutura da "opinião pública mundial" (seja isso o que for - Popper), tão numerosos são os fluxos da informação, com mensagens e interpretações facilmente de origem privada económica, de tal modo que os Estados, mesmo os que ainda, como os EUA, a China, a Rússia, o Japão, são potências consideráveis, aprenderam que precisam de se defender, e usar com tais fontes, para interesse próprio, o que genericamente passou a ser chamado soft power nas relações internacionais, tão ou mais indispensável do que o antigo hard power, que o poder militar representa..Uma das consequências é que a "inidentidade" dos concorrentes às várias sedes de poderes pode ser criada pelas mesmas redes aos interessados na luta política, com vantagem para quem domina as redes, ao serviço das ambições que apoiam os candidatos. Por isso, S. Nye adverte que "um dos aspetos mais interessantes da relação do poder com os crescentes fluxos de informação é o "paradoxo da abundância". Uma abundância da informação conduz a uma escassez de atenção..Nos EUA, Obama foi um exemplo de opção pelo soft power, o que não elimina as possibilidades de erros, mas é favorável, pelo exercício diplomático que exige, à credibilidade, um valor dos que assumiram, no fim da Segunda Guerra Mundial, repudiar a retaliação ou soberba do poder vitorioso, em favor da reconciliação e da cooperação. Infelizmente, em relação à eficácia das estruturas que criaram, a crise da credibilidade está visivelmente a colocar em perigo não apenas a intervenção global da ONU mas também a função crucial da UNESCO, a solidariedade atlântica, a ordem geral, e é difícil não incluir nos efeitos a crise da credibilidade interna e externa da liderança atlântica dos EUA. Não é necessário pôr em dúvida que os poderes nascentes e crescentes possam diminuir a posição desse grande povo na hierarquia das potências. Mas não há grandeza que resista à falta de credibilidade, um valor secularmente definido como elemento do conceito ocidental do património comum da humanidade.