A Criminalização da Pobreza

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Com a sua maioria de dois terços, o governo do primeiro-ministro Viktor Orbán, do partido húngaro Fidesz, impôs uma emenda constitucional que relembra a legislação nacional-socialista contra os considerados "estranhos à comunidade" (Gemeinschaftsfremde) e "associais". Neste sentido, o novo parágrafo terceiro do artigo 22.º da Constituição passou a declarar a proibição da residência "habitual" em lugares públicos. Ainda que, paralelamente, se exija do Estado húngaro um esforço no sentido de prover habitação para todos os cidadãos, com especial atenção às pessoas sem-abrigo. No que concerne o direito à habitação de todos os cidadãos, a nova norma constitucional foi submetida a uma espécie de reserva da ordem pública. Contudo, como pode um Estado proibir que se viva em lugares públicos quando não garante o direito à habitação? Segundo organizações não-governamentais, a Hungria tem cerca de 11200 alojamentos temporários para 30 mil sem-abrigo.

Os nacional-socialistas lutaram da mesma forma contra os "estranhos à comunidade" e os "associais"

Com esta nova legislação comete uma contra-ordenação quem se encontrar "habitualmente" em lugares públicos. Quando tal se verifique, pode haver lugar a diferentes sanções podendo estas passar pela simples admoestação, a realização de trabalho comunitário, ou mesmo prisão, ainda que em regime de separação dos demais reclusos. Além disso, os bens da pessoa em causa podem ser confiscados e destruídos. Na prática, estas pessoas receberão inicialmente advertências por parte da polícia: no máximo três no espaço de 90 dias. Se, não obstante, permanecerem no espaço público serão julgadas em processo sumário. De qualquer forma, o simples fato de se dar ao Juiz a possibilidade de impor uma sanção de prisão contradiz o caráter administrativo da proibição e conduz a uma verdadeira criminalização encobertada dos sem-abrigo.

A "Ação de junho" de 1938 na Alemanha

A mencionada legislação recorda a clássica descriminação de pessoas socialmente marginalizadas por parte de um Estado autoritário. Na Alemanha, o Código Penal do Império de 1871 previa a punibilidade da vadiagem e da mendicidade. Baseando-se nesta lei, os nacional-socialistas ordenaram - na sua infame "Lei contra os perigosos delinquentes habituais e sobre medidas de segurança e de melhoria" de 24 de novembro de 1933 - que os vadios e mendigos condenados fossem internados numa, à data denominada, "casa de trabalho". Ademais, a imposição da "detenção preventiva contra o comportamento associal" passou a ser prevista num "decreto básico sobre a prevenção da delinquência" proferido em finais de 1937. Um "associal" seria todo aquele que, "sem ser um delinquente profissional ou habitual, colocasse em perigo o público em geral através do seu comportamento antisocial". O que valia igualmente para os sem-abrigo. A chamada "ação de junho" de 1938, por meio da qual foram detidos perto de 10 mil homens, muitos deles supostamente "associais", teve o mencionado decreto como fundamento legal. No final de 1944, o "Projeto de Lei sobre o tratamento dos estranhos à comunidade" determinava que as pessoas que não conseguissem demonstrar que mantinham uma vida digna seriam determinadas como "estranhas à comunidade" e, consequentemente, poderiam ser utilizadas para a realização de trabalhos forçados - o objetivo, segundo a exposição de motivos, era "a melhoria e a conversão interior depois da mais estrita educação laboral". A lei, todavia, acabou por nunca ser adotada devido à capitulação da Alemanha.

Perante este cenário é justo afirmar que o Governo de Orbán - consciente ou inconscientemente - tomou como inspiração conceitos da legislação nacional-socialista. Esta discussão é também de suma importância para a Alemanha, uma vez que assim se demonstra o que poderia suceder caso o partido populista de direita AfD (Alternative für Deutschland/ Alternativa para Alemanha) chegasse ao governo - tendo em conta que este partido já se posicionou no passado ao lado do governo húngaro. É também relevante conhecer qual respetiva postura em relação a esta nova legislação húngara contra as pessoas sem- abrigo.

Limpar o "corpo do povo alemão" de estudantes de esquerda

A nova direita europeia mostra aqui a sua verdadeira e desumana face: não se trata apenas da preservação da "homogeneidade etnocultural", como exige o "Movimento Identitário", senão também a exclusão social dos grupos marginalizados. E isto é apenas meia verdade, pois a homogeneidade social, étnica e cultural não existe hoje na Alemanha e para recuperá-la teria primeiro de se produzir uma "auto-purificação do corpo do povo alemão" como apresentado pelo infame jurista nazi Roland Freisler.

Uma linguagem que, por certo, se ouve novamente nos parlamentos alemães. Em fevereiro de 2017, o então líder do grupo parlamentar da AfD no Parlamento Estatal da Alta Saxónia, André Poggenburg, exigiu que os "tumores no corpo alemão" fossem finalmente removidos, referindo-se aos estudantes de esquerda, supostamente preguiçosos.

Kai Ambos é Professor na Georg-August-Universität Göttingen e Diretor Geral do Centro de Estudos em Direito Penal e Processo Criminal Latino-Americano (CEDPAL) da mesma Universidade. É também Magistrado do Tribunal Especial para o Kosovo, Haia e amicus curiae da Jurisdição Especial para a Paz, Bogotá, Colômbia. Expressa neste artigo a sua opinião pessoal. O Autor agradece a Inês Freixo pela tradução deste artigo, publicado originalmente na Süddeutsche Zeitung, no passado 31 de outubro de 2018.

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