A CONTABILIDADE SEM FIM DAS VÍTIMAS DE UMA GUERRA

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O artigo que hoje inspira esta coluna foi publicado há mais de dois meses nas páginas da Notícias Magazine, a revista que, aos domingos, acompanha as edições do Diário de Notícias e do Jornal de Notícias.

A abordagem do tema foi adiada, com o período de férias pelo meio, até que se conseguisse reunir dados suficientes para escrever sobre um assunto ainda hoje melindroso, a guerra colonial, em que o provedor está longe de ser um especialista. Não esteve no terreno e não cumpriu, sequer, o serviço militar, beneficiando dos adiamentos que eram então concedidos aos estudantes universitários, passando à "reserva territorial" a seguir a Abril de 1974. Sobre o assunto, sabe o que leu, viu e ouviu, o que, sendo alguma coisa, não chega para qualificar uma "sentença". Por isso, e como adiante se verá, recorreu a auxílio externo.

O texto da polémica foi publicado na Notícias Magazine de 15 de Julho. Sob o título "Guerra sem fim", a jornalista Helena Mendonça assina um texto em que, basicamente, transcreve as conclusões de um estudo coordenado pela psicóloga Ângela Maia, do Centro de Estudos em Educação e Psicologia da Universidade do Minho. O documento analisa (e contabiliza, a partir de uma amostra de 350 ex-combatentes) os sintomas das vítimas do chamado PTSD (post- -traumatic stress disorder - stress pós-traumático) resultante da participação na guerra colonial.

Em função das conclusões dos inquéritos, Ângela Maia estima em "cerca de 300 mil os homens neste momento expostos à doença", número assaz superior aos referidos por outras fontes, nomeadamente os 140 mil apontados nos estudos do psiquiatra Afonso de Albuquerque, divergência, por sinal, mencionada por Helena Mendonça no seu artigo.

Ora, é exactamente esta contabilidade a origem da discórdia. O leitor Manuel Amaro Bernardo, que se identifica como "coronel reformado e escritor", critica, com dureza, o estudo coordenado por Ângela Maia, considerando "inacreditáveis" os números das conclusões. Não subscreve, sequer, os "140 mil do trabalho de Afonso Albuquerque e Fani Lopes", calculados, segundo diz, "apenas por extrapolação do sucedido com os americanos no Vietname". Após algumas considerações adicionais, nomeadamente transcrições de trabalhos que publicou sobre o tema, Manuel Amaro Bernardo salienta que "poderemos afirmar tratar-se de cerca de 50 mil homens, que devem merecer todos os cuidados médicos, numa rede prevista na lei e ainda vergonhosamente não implementada".

Percebe-se, portanto - e esta conclusão é um dos cernes da questão -, que não está em causa apenas uma contabilidade, mas ainda as respectivas consequências em matéria de uma posterior, e por agora eventual, atribuição de um apoio estatal às supostas vítimas.

Na resposta que enviou ao provedor, Helena Mendonça recorda que, sempre que escreveu no DN sobre o assunto, "surgiram logo imensos protestos, alguns pedidos de esclarecimento e poucos aplausos", o que, em sua opinião, "é demonstrativo de duas situações, elas sim, muito claras: a inexistência de uma base de dados nacional sobre esta realidade, o que é inacreditável mais de 30 anos após o fim da guerra; e que o problema está ainda muito presente na vida dos ex- -combaten- tes (...)". Invocando a sua experiência na cobertura jornalística do tema, acrescenta que as altas patentes militares "tendem a minimizar" os números aqui em causa, enquanto os ex-com- batentes no terreno "tendem a enfatizá-los".

A jornalista defende também a credibilidade da equipa da Universidade do Minho, através da validação científica atribuída à pesquisa pelo painel de peritos internacionais da Fundação para a Ciência e Tecnologia. E acrescenta que qualquer crítica ao trabalho de que aqui se fala não deve basear-se num artigo jornalístico, onde apenas se destacam aspectos destinados a "um público leigo e diversificado".

Em terreno tão movediço e sensível, pelos vistos ainda pouco estudado e onde é enorme a amplitude das estimativas conhecidas, o provedor decidiu solicitar a opinião de um mais reputados historiadores militares contemporâneos, profundo conhecedor dos meandros da guerra colonial, o coronel Carlos Matos Gomes. Com a prudência e o equilíbrio que se lhe conhecem, não oferece números alternativos, mas dá uma ajuda abalizada, para perceber melhor o que está em causa.

A discussão, começa por afirmar, "é sempre inquinada pelos preconceitos sobre a guerra colonial e o stress pós-traumático surge quase sempre como pretexto para esgrimir argumentos ideológicos sobre a maldade e a bondade da guerra colonial, para atacar ou defender o colonialismo". Após recusar extrapolações feitas a partir de outras guerras, Matos Gomes salienta que "não temos 300 mil doentes de stress de guerra". E explica: "Vê-se à vista desarmada que não existe essa pressão nem no sistema de saúde (civil e militar) nem no sistema judicial/ policial, que seria onde o mal se reflectiria, através da necessidade de tratamento ou da prática de crimes violentos."

Para o historiador, "também não é possível afirmar que devem ser 40 mil, contando apenas o universo dos que estiveram directamente envolvidos em operações de combate; do que tenho visto, o stress pós-traumático manifesta- -se também em militares que não estiveram debaixo de fogo, ou em combate directo, bastando situações de isolamento, medos, fobias, carências várias para o provocar". A concluir, Carlos Matos Gomes diz que "do que parece não haver dúvidas é da necessidade de estudar esta situação, até para que se possa fazer justiça, tratando os que sofrem de verdadeiro mal e desmascarando os impostores, que também existem".

Tudo o que fica dito ajuda os leitores do Diário de Notícias a melhor enquadrar temática tão complexa.

O provedor, como é óbvio, não envereda pelo caminho da especulação estatística. Pronuncia-se, apenas, no âmbito das suas competências. E considera que Helena Mendonça fez bem em dar eco a um estudo da responsabilidade de investigadores credíveis. Poderia, porventura, ter escudado melhor o seu artigo, se tivesse concedido mais espaço a outras teses sobre o assunto, mas reconhece-se que não era esse o objectivo do texto.

Não faltarão, por certo, oportunidades para a jornalista regressar ao tema. De facto, se pensarmos, por exemplo, que ainda hoje persiste o debate sobre o número de vítimas do Holocausto, é fácil concluir que esta é, também, uma polémica sem fim.|

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