A carta que o 'Público' não quis publicar

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Em Janeiro, o DN enviou ao Público uma carta de Direito de Rectificação, cuja publicação foi recusada. O DN recorreu à Alta Autoridade, que em Março determinou que o Público deve publicar a carta. O prazo legal para a obediência a esta ordem já expirou. O DN decidiu publicar hoje o direito de rectificação em causa, que se segue.

"No dia 15 de Dezembro, o Pú-blico publicou na abertura da secção Sociedade, com chamada na primeira página, uma notícia intitulada 'Ordem diz que aborto raramente se justifica por razões psíquicas', com subtítulo 'Parecer oficial do Colégio de Psiquiatria'. Na notícia, assinada por Catarina Gomes, que cita abundantemente e entre aspas o documento que refere como 'parecer oficial', atribuindo essas citações ao então bastonário da Ordem dos Médicos, Germano de Sousa, lê-se 'O que os dez médicos da especialidade de psiquiatria vêm fazer é clarificar a aplicação da lei quanto à questão da saúde psíquica, esclarece o bastonário, que pediu o documento há dois meses.' E, logo a seguir: 'O parecer, que foi suscitado por um questionário de uma jornalista do DiáriodeNotícias (?)'.

Sucede que aquilo a que o Pú-blico chama parecer, e que constitui a base da notícia (e a notícia), não é mais que a resposta a um questionário de sete perguntas que Fernanda Câncio, do DN, enviou ao Colégio, em 9 de Setembro, com o intuito de obter uma clarificação sobre a aplicação da lei do aborto no que respeita aos critérios de saúde psíquica, já que a Ordem nunca se havia pronunciado sobre o assunto. O documento é, aliás, claramente uma entrevista por escrito, já que inclui as perguntas da jornalista e as respectivas respostas. E se dúvidas houvesse, esclarece-as no seu título 'Clarificação de alguns aspectos da aplicação médica do Art. 142.º do Código Penal, suscitados por questionário apresentado pela jornalista Fernanda Câncio (DN) à Ordem dos Médicos, com pedido de esclarecimento.'

Em nenhum lugar do documento se fala de 'parecer'. Assim, o que o Público fez foi publicar excertos das respostas a uma entrevista efectuada por uma jornalista da concorrência, interceptada por via do ex-bastonário. Ex-bastonário que, a par do processo da entrevista desde o início - foi ele que, após várias conversas com a jornalista do DN, a propósito dos critérios médicos para aborto, lhe sugeriu, no início de Setembro, que contactasse a presidente do Colégio de Psiquiatria para lhe colocar as suas questões - fora mediador no mesmo, já que o Colégio, perante o teor das perguntas, decidiu, no início de Outubro, que o pedido de resposta deveria ser efectuado através do bastonário, por equivaler a uma primeira tomada de posição pública sobre a aplicação da legislação.

Note-se, aliás, que a própria presidente do Colégio de Psiquiatria, Maria Luísa Figueira, enviou ao Público uma carta, publicada a 30 de Dezembro (e sem qualquer comentário do jornal) ,em que especificava 'o texto enviado pelo Colégio ao exmo senhor bastonário não era um parecer, mas a resposta a uma entrevista da jornalista Fernanda Câncio'.

Quando o Público refere que o bastonário 'pediu o documento há dois meses', dando a entender que não existe uma relação directa e necessária entre o questionário e a respectiva resposta, falta à verdade. Decerto porque o próprio bastonário faltou à verdade, como ao compromisso de honra que assumira com a jornalista, por diversas vezes, ao longo do tempo que mediou entre o envio do questionário e a publicação das suas respostas no Público.

É muito simples se o DN não tivesse solicitado ao Colégio um esclarecimento sobre a matéria, esse esclarecimento não existiria. Em vários anos de mandato, o ex-bastonário nunca se lembrou de o 'pedir', e em 20 anos de vigência da lei do aborto, a ninguém ocorreu questionar o Colégio sobre os critérios da sua aplicação. Não podem então restar dúvidas sobre o facto de o Público ter publicado uma notícia que considerou suficientemente importante para a mencionar na primeira página, baseada em exclusivo no trabalho de uma jornalista de um diário rival - facto que não podia desconhecer, já que a autora da notícia assumiu ter recebido o documento por fax.

Este comportamento não seria decerto de esperar da parte de um jornal de referência, nem do representante eleito dos médicos portugueses. Mas talvez mais grave que o comportamento que se consubstanciou na usurpação de uma entrevista é a ausência, durante as semanas que mediaram entre a publicação do texto e o envio desta carta, de qualquer tentativa de esclarecimento ou pedido de desculpas. Se cometer um erro e não o reconhecer é mau, tentar encobri-lo é muitíssimo pior. O Público errou. É bom que o assuma, e que retire daí as consequências. É assim que se constrói (ou se destrói) uma coluna vertebral."

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