A Baixa Pombalina

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Na "Biblioteca José-Augusto França", cuja publicação está em curso na Imprensa Nacional, acaba de sair Lisboa Pombalina e o Iluminismo, que inclui a tradução da tese de doutoramento em História que teve como título original Une Ville des Lumières: La Lisbonne de Pombal, defendida em março de 1962 na Universidade de Paris. Trata-se do texto fundador da história da arte em Portugal, que segundo Pierre Francastel, ultrapassa "a simples apresentação documental, pondo o problema da relação que existe entre a natureza de um produto criado por uma sociedade e as próprias estruturas desta. (...) A obra de arte reflete, mas transforma por sua vez tudo o que a rodeia". A mobilidade e a complexidade, superam, assim, as noções limitadas de causalidade e objetividade...

Ora, a Lisboa do pós-terramoto é uma cidade da "Enciclopédia", não meramente imaginária ou racional, mas capaz de abrir horizontes futuros. Como salienta Ana Tostões, seguindo as pisadas do José-Augusto França: "entre São Petersburgo e Washington (...), há que situar o plano de reconstrução da cidade de Lisboa destruída pelo terramoto de 1755". No meio do século XVIII é recriada Lisboa a partir de uma cidade antiga, que foi possível redefinir radicalmente a partir de um plano, simbolizado na Praça do Comércio, centro de um sistema "que reflete um pensamento global para a cidade, uma ideologia ao serviço de um pragmatismo racionalista, de um sentido prático bem português".

A importância da Baixa Pombalina só se compreende, através de uma perspetiva de prazo longo, e pode dizer-se que nesta obra-prima da escrita se encontra a melhor justificação para uma candidatura séria ao património mundial da UNESCO. A figura de Eugénio dos Santos emerge na extraordinária reconstrução da cidade, como "um homem com curiosidade desperta, sensível às mudanças sociais e capaz de contribuir para elas, imaginando um futuro mais feliz, racional e "iluminado"". Homem do seu tempo, usa a experiência militar, para garantir equilíbrio entre a urbe e a economia. Nesse sentido, é um "moderno", pela eloquente afirmação de valores como o rigor, o racionalismo, a simplicidade e a frieza, no sentido da tradição maneirista nacional. E Lisboa renasceu do acordo entre três homens, sobre tempos, mentalidades e gostos. "O "1700" do velho Manuel da Maia e o "1725" de Mardel, encontram-se, sem chegarem a contradizer-se, num tempo português, pouco levado a distinções estilísticas e que já tinha visto o maneirismo de Terzi prolongar-se, sem choque, no barroco romano de Ludovice. O "1750" de Eugénio dos Santos, ligado à tradição lisboeta de Terzi, não podia, de maneira alguma, ignorar a contribuição um pouco fantasista de Mardel, mas o arquiteto teve o sentido da metamorfose que à sua volta se operava, a intuição das necessidades da nova sociedade pombalina e o conhecimento dos desejos de Pombal, por mais vagos que eles fossem". Assim, entre Eugénio dos Santos e Carlos Mardel houve um acordo empírico, entre o antigo e o moderno, como Manuel da Maia preconizara.

A regularidade do traçado em xadrez do plano ortogonal da Baixa comandou o desenho austero dos edifícios, a sua identidade e o rigor, cuja originalidade e excecionalidade se devem à urgência da reconstrução. Isto, sem esquecer as inovações técnicas do sistema antissísmico de "gaiola" ou das estacas de pinho verde para dominar o esteiro do Tejo. A emergência ditou o uso de recursos próprios. O mito moderno do Comércio absorvia o antigo da Realeza. E quando comparamos a Lisboa pombalina iluminista com Queluz percebemos, por antítese, que a cidade visou o futuro, enquanto a tradição permaneceu no gosto joanino do palácio. "A Lisboa de Pombal constituiu, verdadeiramente, um fenómeno de urbanismo do séc. XVIII de importância extrema, situado numa encruzilhada em que o passado e o futuro se ligam. (...) Ela é, ao mesmo tempo, a última cidade antiga e a primeira cidade moderna".


Administrador executivo da Fundação Calouste Gulbenkian

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