«Os navios são como as pessoas. Morrem só fisicamente. Das pessoas, fica a alma, que se diz ser imortal, e, de algumas, fica a história da sua vida por ser excepcional. Dos navios, a alma morre com as suas guarnições, mas fica a história, quando alguém a escreve.» É com este pensamento, da autoria de um arquitecto de nome Telmo Gomes, que se inicia o livro ENVC - Sessenta Anos de História. Histórias de Sessenta Navios, editado em 2004 por ocasião de mais um aniversário dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo (ENVC). Ao longo de quase duzentas páginas regista para a posteridade feitos e atribulações de um gigante da construção de naval nascido em 1944, nos tempos áureos da pesca de arrasto ao bacalhau. Alguém escreveu já grande parte da sua história construída a ferro e fogo, e vivida de crise em crise, com épocas de bom fôlego pelo meio, mas nunca totalmente tranquilas. Por escrever estão ainda os piores dias de tormenta deste estaleiro, o único de média dimensão em Portugal, que enfrenta a sua maior crise de sempre e agoniza face a um já anunciado despedimento de mais de metade dos seus actuais 680 trabalhadores efectivos.«Antes do 25 de Abril havia uma coisa a que chamavam balões. Não se dizia despedimentos, isso é uma linguagem nova, antigamente eram os famosos balões. Quando se falava que vinha aí um balão, já se sabia que ia gente embora porque não havia trabalho. Naquele tempo eram os encarregados que escolhiam quem era para dispensar», conta Bernardo Antero, 56 anos, 39 dos quais entregues à profissão de soldador nos ENVC. Hoje é presidente do Grupo Desportivo e Cultural da empresa que o acolheu aos 17 anos e não quer crer que um estaleiro que, nesse tempo «era o trabalho mais seguro na cidade» e que «chegou a ter duas mil pessoas lá dentro a trabalhar», tenha chegado à actual situação. «Nós já assistimos a duas reestruturações, a última em 2005, e nunca houve sangria. As pessoas foram saindo pelo seu próprio pé», espanta-se.Nos últimos seis anos, os Estaleiros de Viana do Castelo reduziram o quadro de pessoal de mais de mil operários para menos de setecentos, sempre através de acordo amigáveis, garante Manuel Cadilha, ex-coordenador da Comissão de Trabalhadores, com 38 anos de casa. «Nunca houve sangue. É a primeira vez que querem fazer sangue com as pessoas. Nunca aconteceu apontarem assim a redução efectiva de pessoal. Se forem os 380 trabalhadores de que se fala será o maior "balão" de sempre dos estaleiros de Viana», diz.OrigensQuando em Junho de 1944 João Alves Cerqueira e Vasco d'Orey fundaram, com mais 15 técnicos dos Estaleiros de Lisboa, os ENVC a reboque da, na altura pujante, Empresa de Pesca de Viana (EPV), estariam com certeza longe de sonhar o destino grandioso mas também tumultuoso da sua pequena sociedade criada com «17 quotas e 750 contos de réis de capital social». Viana do Castelo era na altura uma exígua cidade rural. Manuel Cadilha e Bernardo Antero ainda viveram um pouco dessa ruralidade. «Na altura trazia-se a marmita e vinha-se para o estaleiro de bicicleta. Era quase tudo gente do campo», contam.Nos primeiros anos de laboração, com duzentos trabalhadores, foram construídos três arrastões: o Senhor dos Mareantes e o Senhora das Candeias para a EPV e um gémeo do primeiro, São Gonçalinho, para a Empresa de Pesca de Aveiro. Eram tempos em que na faina do bacalhau se substituíam os lugres de madeira pelos navios de arrasto.Acabadas as três primeiras embarcações, o estaleiro entrou em crise. Foi a primeira de muitas até aos dias de hoje. Com cinco construções em curso, os ENVC debateram-se em busca de investimento e em 1949 constituiu-se uma sociedade anónima de responsabilidade limitada (SARL). Jacques Lacerda chega à empresa como administrador-delegado e aí permanece até 1961, protagonizando um dos períodos de maior desenvolvimento. Com o apoio do poder central, empenhado na altura no II Plano do Fomento, os Estaleiros de Viana constroem ao longo da década de 1950 um total de 43 navios, à razão de quatro a cinco por ano. Entre eles consta o célebre Gil Eannes, a sua construção número 15, entregue em 1955 ao Grémio dos Armadores de Navios de Pesca de Bacalhau. Até aí, o mercado nacional (frota bacalhoeira, marinha mercante e de guerra) absorvia toda a produção.Um novo salto no final daquela década: um armador islandês encomenda três arrastões. Chega a internacionalização que só haveria de consolidar-se na década seguinte. Entretanto, em finais de sessenta, a CUF adquire a maior parte das acções e a empresa afirma-se no exterior. Holanda, Polónia, Itália, Noruega e Islândia dão trabalho ao estaleiro de forma continuada.Depois do 25 de Abril de 1974 e até final dos anos oitenta é a ex-URSS que marca a história da construção naval em Viana do Castelo. Nesta cidade foram construídos 25 navios do mesmo tipo para armadores russos - o primeiro foi entregue em 1979 e o último em 1990. A carteira de encomendas estava preenchida, mas uma conjuntura internacional desfavorável, um aumento da despesa com mão-de-obra, prejuízos com alguns contratos por causa da moeda e tempos menos bons no sector da construção naval empurraram, entretanto, os ENVC para uma nova crise. O Estado intervém. Chega a nacionalização. Surgem os estaleiros como empresa pública. Luís Lacerda assume o leme da empresa.CrisesHá uma entrada maciça de trabalhadores, em consequência das políticas de emprego de então. Agravam-se os custos de produção e o estaleiro entra na década de oitenta em crise. É elaborado um plano de desenvolvimento e em 1987 o capital social aumenta para três milhões de contos. Laboram nessa altura 1700 trabalhadores na empresa. Os Estaleiros de Viana são considerados a Empresa do Ano, em 1985, pelo Diário de Notícias e, em 1986, pelo semanário Expresso. Entra a década de noventa e a Alemanha torna-se o principal cliente, com a encomenda de quase meia centena de embarcações. Com a morte de Luís Lacerda, a administração é encabeçada por Duarte Silva, que fica até 2002.A empresa está de novo sob a sombra da crise e há muito que sobre ela paira a hipótese da privatização. Em 2005, com a administração de Fernando Geraldes, surge uma proposta de reestruturação que contempla a saída gradual de trabalhadores, sobretudo os que estão mais perto da idade da reforma. A redução do quadro acontece de forma pacífica. Paulo Portas, então ministro da Defesa e dos Assuntos do Mar, assinala a saída da empresa da situação de falência técnica, através de uma operação de «reavaliação dos activos». Esta tinha por base a inclusão do equipamento a instalar nos ENVC, vindo dos estaleiros alemães Flender (ao abrigo das contrapartidas da aquisição de dois submarinos para a Armada nacional), no valor de 48,5 milhões de euros. Uma encomenda para a Marinha, para construir, até 2014, dez navios-patrulha oceânicos e cinco lanchas de fiscalização, avaliada em mais de trezentos milhões de euros, insufla nova esperança à empresa. Viana continua a ater-se aos estaleiros como fonte de emprego para os homens da cidade.Em 2010, a rejeição - pela primeira vez na história da empresa - de navios ali construídos (Atlântida e Anticiclone), por parte do governo dos Açores, e um prejuízo de quarenta milhões de euros, mergulham os ENVC numa crise sem precedentes que lhe rouba até a auto-estima. Em Junho, a actual administração anuncia o despedimento de 380 trabalhadores, 220 dos sectores produtivos. O novo ministro da Defesa, José Aguiar Branco, suspendeu o processo até Setembro próximo. O resto da história está por contar... Russos e álcoolHistórias relacionadas com os Estaleiros Navais de Viana do Castelo há muitas e basta abordar um qualquer habitante da cidade para ficar a conhecer umas quantas. Uma das mais lembradas é a dos russos que nas décadas de oitenta e noventa invadiram a cidade, num tempo fértil de reparações de navios, e que secavam o álcool etílico em todas as farmácias para... beber. «Eram os búlgaros que vinham fazer reparações e bebiam muito álcool, até álcool puro», lembra Manuel Cadilha. Na memória das gentes da cidade, ficou bem marcado este episódio dos russos para quem a vodca ou o gim eram bebidas para «fraquinhos». Os frascos de álcool puro voavam, por isso, das farmácias para usar nos cocktails dos trabalhadores oriundos de países distantes. Bem presente na mente traz também quem conhece bem a cidade de Viana os imensos bandos de trabalhadores de fato- -macaco azul que habitualmente se viam na zona do Campo da Agonia (vulgo Campo da Feira) e que agora são cada vez mais escassos.