A açorda alentejana

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Creio que não há nada mais fácil de politizar do que a alimentação. Vem esta reflexão a propósito de uma pergunta que um jornalista me fez acerca da história da açorda à alentejana. Alguém lhe terá dito que o emblemático prato seria fruto das necessidades que os trabalhadores passaram no anterior regime.

Esta sugestão mostra até que ponto a alimentação esteve longe do estatuto cultural de que hoje aufere. Comia-se para saciar a fome e manter a vida, com total indiferença e ignorância do porquê da recorrência "daquilo" naquele sítio. Usava-se a boca, mas não a inteligência, como os animais.

Dizemos frequentemente, porque alguém, com ou sem autoridade, mas com voz, disse que a nossa cozinha corresponde ao conceito de "dieta mediterrânica". A afirmação é repetida vezes sem conta, sem um mínimo de curiosidade para se saber a que pro- pósito. Raramente é questionado porque fazemos parte do grupo de países que a praticam e cujas cozinhas, hoje, nos parecem tão diferentes da nossa e entre elas: Sul da França, Itália, Grécia, Espanha. Simplifica-se com o uso por todas elas do azeite, do pão e do vinho. E não se vai mais longe. Eu ouso acrescentar que é o pormenor que as diferencia. O essencial é comum.

'Ajo blanco' e 'l'aigo boulido'

Tomando a açorda alentejana como parâmetro: não usarão também as sopas de ajo blanco (ou castelhana) espanholas e o l'aigo boulido francês, o pão, o azeite, o alho e a água? Estas sopas têm ainda tão poucas diferenças no modo de fazer, que dir-se-iam gémeas.

Dão-lhes individualidade apenas os aromas: nós usamos o coentro e o poejo para aromatizar a açorda; os franceses, que até há pouco abominavam o coentro, usam o louro e a salva, e os espanhóis, no lugar de qualquer erva, põem o colorau.

Em todas o engenhoso espírito de economia é manifestamente idêntico: acompanham-se de um ovo por pessoa, mas quando a bolsa não dá para mais, qualquer delas aceita um ovo desfeito no caldo para passar a dar para dois ou para quatro.

Sopas de sempre

São sopas que em todos estes países, ditos mediterrânicos, alimentaram trabalhadores braçais no campo, mas também, em casa, a família. São de sempre, não passam de moda, não se lhes conhece a história porque são de invenção colectiva e é isso que faz a sua grande história, tão velha, que se perdeu na memória dos tempos.

Fazem irremediavelmente parte da nossa história comum a justificar a partilha do conceito de "dieta mediterrânica".

Creio ser esta a verdadeira história da açorda à alentejana.

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