Cortar o cabelo, comprar umas sandálias, caminhar por ruas movimentadas, comer um gelado, fumar o seu primeiro cigarro numa esplanada, visitar monumentos, andar de Vespa e dançar à luz da Lua. Talvez só Audrey Hepburn -- ou melhor, a princesa Ann de Roman Holiday -- tenha feito tudo isto na Cidade Eterna em 24 horas. Um programa alheio a compromissos oficiais que imprimiu a imagem de uma atriz tão elegante em contexto de realeza quanto adorável na vivência simples dos prazeres mundanos. "Ela movimenta-se com uma postura majestosa nas cenas como princesa a cumprir os seus deveres, enquanto salta, dança, cai ao rio e anda pela cidade com o abandono de uma adolescente", escreve Donald Spoto em Audrey Hepburn - A Biografia (edição Oceanos). É a descrição exata daquela que em 1953, no filme de William Wyler, e com apenas 24 anos, ganhava de um dia para o outro o estatuto de estrela de Hollywood..Estreado a 27 de agosto desse ano, Férias em Roma contém o registo primordial de uma identidade romântica feminina que não teria equivalente nas produções americanas da época. Digamos que a inocência de Audrey não se parecia com nada, a sua figura e forma de estar refrescavam a perspetiva clássica, conjugando-a com uma irreverência modelada. Ainda nas palavras de Spoto: "Décadas depois, Férias em Roma não perdeu o seu atrativo, o seu sentimento contido e humor incisivo. As convenções vulneráveis do conto de fadas, aqui inteligentemente invertidas, combinam-se com os elementos da comédia ligeira clássica, sátira social delicada e (graças aos atores) a história de um afeto terno mas breve que não se pode tornar um romance permanente.".De facto, um aspeto essencial que dá a Férias em Roma um charme distinto, para além da sua estrela emergente, é o fairytale virado ao contrário: em vez da jovem que casa com o príncipe, esta é a história de uma princesa que foge aos protocolos de uma visita oficial em Roma e acaba apaixonada por um jornalista americano, depois de um dia passado entre diversões muito pouco condizentes com a sua agenda de atos solenes. Aqui, o romance não leva ao costumeiro final feliz, no sentido do "ficaram juntos para sempre", mas à impressão calorosa de um dia de verão para se recordar em segredo, longe do ângulo mediático que começa por constituir o interesse do jornalista interpretado por Gregory Peck. Ambos vivem uma mentira doce (ele não lhe diz a sua profissão verdadeira e ela finge não ser o que é), mas nada pode durar para além desse dia de experiências sensoriais e emocionantes numa Roma aberta....Se é certo que Roman Holiday alcançou o sucesso pelo efeito revelação de Audrey Hepburn, não deixa de ser curioso que a realidade tenha dado um empurrãozinho. A saber, por essa altura, foram muitos os que acharam que a história do filme se baseava no caso da princesa Margarida de Inglaterra (a irmã de Isabel II), que se apaixonou por um plebeu, Peter Townsend, com quem não chegou a casar. O fait-divers só ficou conhecido depois da produção estar concluída, mas Wyler garantiu num memorando que não se pretendia estabelecer qualquer paralelo entre a princesa Ann e a princesa Margarida. Esta última, com fama de apreciar escapadelas, era apenas um bom exemplo de como a vida regrada da monarquia pode suscitar o desejo súbito de aceder aos prazeres do comum mortal. A Audrey, por sua vez, a escapadela em Itália valeu um Óscar e a entrada direta para a mitologia hollywoodiana..Sendo uma produção muito do seu tempo -- o que quer que isto signifique --, realizada por um cineasta experiente e exigente, com a mestria apurada, Férias em Roma assume a mesma atitude da sua protagonista. Quer dizer, é um filme que, literalmente, se faz às ruas da cidade, trocando o conforto dos estúdios pela vibração urbana (coisa raríssima no início dessa década de 50), sem deixar de evocar um artesanato muito próprio da indústria do cinema americano, aqui mesclado com uma sensibilidade europeia. Como não ver na sequência em que Audrey pega na Vespa, conduzindo alegre e desgovernadamente pelo centro da capital italiana, algo da futura Nouvelle Vague? Ou na vivacidade dessa mesma atriz algo próximo da linguagem física das atrizes dos anos 1960?.Imagine-se por um segundo que não era ela o rosto do filme... Elizabeth Taylor e Jean Simmons foram as primeiras escolhas de Wyler para o papel principal, mas perante a indisponibilidade de ambas, o realizador decidiu apostar na jovem então desconhecida do grande ecrã (só tinha entrado num punhado de filmes menores, e com papéis insignificantes), cujo talento começava a sobressair numa adaptação da Broadway da peça Gigi. Não estaremos longe da verdade se atribuirmos à autora dessa peça, a francesa Colette, a descoberta de Audrey: bem antes de Wyler ficar convencido com o screen test da atriz, foi ela, Colette, quem topou a sua beleza e porte gracioso na rodagem de um filmito em Monte Carlo e abençoou a sua escolha como intérprete de Gigi. Daí para a produção da Paramount que mudou a sua vida seria um saltinho..Para o papel do protagonista masculino, também Gregory Peck não foi o primeiro nome em cima da mesa; antes dele, Cary Grant lera o argumento de Férias em Roma e recusara. Mais tarde, ao recordar tal facto, Peck diria com graça que, sempre que recebia o guião de uma comédia, tinha o pressentimento de que esse guião passara pelas mãos de Grant e fora rejeitado... Neste caso, o ator que já tinha trabalhado com grandes realizadores, como Alfred Hitchcock e Elia Kazan, e que era cavalheiro de presença forte (aqui conjugada com um espírito leve), acabou por ser a testemunha direta da promessa chamada Audrey Hepburn, que o impressionou igualmente pelo caráter: "Não tinha nada da personalidade traiçoeira, gananciosa, mesquinha, bisbilhoteira que vemos neste ramo. Gostei muito dela; na verdade, amei a Audrey. Era fácil amá-la", disse sobre essa jovem aprendiza, que iria concentrar as atenções nas semanas seguintes à estreia do filme. Consta que a consciência de estar perante uma inequívoca movie star o levou a insistir que o nome de Audrey viesse nos créditos antes do título, juntamente com o seu (no contrato, só o nome dele é que vinha primeiro, pelo prestígio que já tinha), e assim nasceu uma estrela..Menos sorte teve o argumentista Dalton Trumbo, responsável pela história original de Férias em Roma, que nessa altura integrava a lista negra do macartismo, não podendo o seu nome figurar na grande tela. O Óscar que lhe deveria ter sido entregue em mãos, foi então recebido por Ian McLellan Hunter, a sua fachada, com quem partilhou às escondidas o pagamento da escrita do argumento - só 40 anos depois, e ao fim de 18 argumentos criados na sombra, é que a Academia corrigiu esta omissão atribuindo a Trumbo o Óscar póstumo..Outro nome incontornável por trás de Férias em Roma é o da figurinista Edith Head, uma autêntica celebridade dentro da Paramount, que contribuiu para a marca indelével deste romance de estio. Era conhecida por uma capacidade extraordinária de se adaptar ao "jogo" de cada produção, favorecendo a aura das atrizes com guarda-roupas destinados à iconicidade. Ninguém esquece, por exemplo, os vestidos de Grace Kelly em Janela Indiscreta ou Ladrão de Casaca. Mas o que dizer de algo tão prático como a camisa arregaçada, saia e lenço que Audrey enverga no filme de Wyler? "Vi que seria a manequim perfeita para tudo o que eu criasse. Vi que seria uma grande tentação desenhar roupas que a subjugassem. Podia tê-la usado para exibir os meus talentos e depreciar os dela; não o fiz. Mas acreditem que pensei em fazê-lo." A confissão atrevida de Edith fica bem com a eternidade do trapinho genial que desenhou para a jovem esbelta. Correspondeu ao quarto Óscar da figurinista, que ao longo da carreira venceu oito..É já perto do final do filme que um jornalista (não a personagem de Gregory Peck) pergunta à princesa Ann qual a cidade que mais lhe agradou no seu périplo europeu. Ela hesita, começando a resposta com a polidez protocolar exigida, mas acaba por não resistir ao impulso da sinceridade: "Roma! Sem dúvida, Roma", diz. "Guardarei esta visita na memória enquanto viver"..Não se sabe se quem o afirma é a princesa ou Audrey. A única certeza é a do sentimento genuíno: a atriz apaixonou-se mesmo por Roma durante a rodagem, e lá se instalou mais tarde, durante duas décadas. Foi a cidade onde criou os seus dois filhos e deixou impressa a silhueta nas avenidas, captada em inúmeras fotos dos paparazzi. Representava uma outra ideia de dolce vita -- aquela da absoluta leveza sorridente. Tal e qual uma Vespa conduzida sem carta ao som de gargalhadas e sirenes da polícia, num certo verão de 1953.