Uma mulher sofrida, mas feliz, até porque "não se pode saber o que é a felicidade sem passar pelo sofrimento", Maria da Fé é, após 50 anos de carreira, uma pessoa realizada em todos os sentidos. "Eu cheguei, vi e venci muito rapidamente", diz, ao DN, orgulhosa do seu percurso profissional e pessoal. Da sua vida, no fundo..Sabe que tudo que lhe aconteceu se deve a Deus - sim, "Foi Deus", como a própria diz na canção - e também à mãe, a quem está eternamente grata. Por isso lhe vai dedicar os espectáculos nos coliseus de Lisboa e do Porto, terra que a viu nascer, que se realizam na quinta e sexta-feira, respectivamente..Não sabe se conseguirá divulgar a homenagem em palco, não vá a emoção fazer-lhe faltar as lágrimas dos olhos como aconteceu quando revelou a sua intenção ao DN, numa noite destas no Senhor Vinho, a casa de fados que há quase 40 anos gere com o marido, o poeta José Luís Gordo. É que se os sentimentos a traírem, lá se estraga a maquilhagem, e lá se desmancha a imagem, e lá se encrava a voz, que, para já, ainda não lhe dói..Nem nunca doeu, aliás, porque "o que dói não é a voz, é a alma" pelo peso da responsabilidade e da ansiedade antes de cada actuação. E é a alma de Maria que está a doer nesta contagem decrescente para o grande espectáculo no Coliseu de Lisboa. "O coliseu é um ícone do nosso país e regressar lá é sempre bom. Mas assusta um pouco. Ainda hoje fico muito ansiosa", admite Maria da Fé, que mesmo assim se sente muito à-vontade em cima do palco e a cantar para multidões. "É aí que me sinto mais liberta, mais livre.".Desde sempre foi assim. Não aprecia o trabalho de estúdio nem o play back. O seu lugar é a cantar para o público, ao vivo. Com apenas nove anos começou a mostrar a habilidade vocal para o seu público, os colegas de escola de então. Aos 14 anos, e tendo feito apenas a 4.ª classe, Maria já dava espectáculos, ao mesmo tempo que trabalhava na fábrica de tecidos Nogueira, em Santa Catarina, para ajudar no sustento de uma casa de gente humilde. O pai era polidor de móveis e a mãe era doméstica e havia oito bocas para alimentar: mãe, pai e seis filhos..Quase todos com dons vocais, é em Maria da Conceição (nome de baptismo) que a mãe deposita toda a sua fé. "A minha mãe tinha uma vontade louca que eu cantasse", recorda ainda hoje a fadista, vindo-lhe à memória a forma como a mãe remexeu céus e terra para fazer dela uma verdadeira artista..Após ter ganho, com 17 anos, o concurso "Rainha das Cantadeiras", no Palácio de Cristal, a mãe nem hesitou. Foi ao Governo Civil pedir bilhetes para a filha ir para Lisboa, onde tudo se passava. Já na capital, mãe e filha trataram da carteira profissional da futura fadista. Como já existia uma Maria da Conceição, surgiu entre muitos nomes o de Maria da Fé. "Agradou--me muito e ficou esse", conta a então já fadista profissional, que se estreou no que considera ser a melhor escola para um fadista: uma casa de fados..Foi na Adega Machado que tudo começou a sério. "Digamos que entrei com o pé direito. Comecei logo a ganhar um cachet de luxo. Recebia 150 escudos no início dos anos 60", conta Maria da Fé, que, após dois meses de sucessivas actuações em casas de fados, pisava o palco do Casino do Estoril. Tinha apenas 18 anos e uma plateia rendida à sua voz. "Foi uma honra entrar num espectáculo onde só chegavam os grandes como Helena Tavares ou Lídia Ribeiro", confessa, elegendo os anos 60 do século passado como "aqueles em que tudo aconteceu"..Em 1968, casa ainda que contra a vontade da mãe, talvez por ser nova, com José Luís Gordo, que conheceu na Taverna do Embuçado e que se tornou o seu maior crítico. "Como sou a musa dele [o poema de Cantarei até Que a Voz me Doa, o cartão-de-visita da fadista, é da autoria do marido] se calhar criticava-me para me aperfeiçoar." É assim que a crítica é interpretada por Maria..Em 1967 grava o seu primeiro grande êxito discográfico, o "Valeu a Pena", um fado que lhe custou a parir. "Tive de sair várias vezes de estúdio porque desatava a chorar. Gravei esse fado numa altura em que não estava feliz", admite Maria da Fé, convicta de que o "fado é um estado de alma"..Os ânimos melhoraram e eis que em 1969 fica em quarto lugar no Festival da Canção, tendo o seu Vento do Norte perdido o primeiro lugar para A Desfolhada, de Simone de Oliveira. Houve quem lhe dissesse que era ela quem merecia ganhar. Maria da Fé não comenta..Como não comenta as semelhanças ou não com Amália, a sua "grande inspiração", mas de quem só cantou um fado: Conta Errada. E errado é, em sua opinião, usar o nome de Amália para fins menos dignos. No entanto, sempre que vê o seu ídolo ser homenageado através das novas gerações de fadistas, fica muito feliz. Confessa não conhecer o projecto "Amália Ho- je", mas diz aprovar o revivalismo no fado "desde que não o desvirtue"..Aliás, a própria foi uma inova- dora quando, em 1963, se atre- veu a lançar o controverso Pop Fado, onde era acompanhada até por bateria. Depois do Coliseu; do Canecão, que esgotou duas vezes seguidas; do Olympia e de ter levado Portugal aos quatro cantos do mundo, a fadista Maria da Fé diz que lhe falta fazer uma coisa: Escrever um livro, "para deixar a história da minha vida às minhas netas". Tudo o resto está feito e "Valeu a Pena".