2030
Não se trata de um exercício de futurologia, mas de incitar a uma cultura de preparação e antecipação. Identificar as grandes tendências da globalização nos próximos dez anos, com impactos diretos nas nossas opções políticas locais, deveria ser um trabalho estrutural numa democracia madura, envolvendo universidades, institutos, fundações, partidos políticos e departamentos da administração pública. Mas também ser uma prioridade da discussão interna nas empresas, grandes ou não, ajudando-as a tomar as melhores opções no mercado, antecipando riscos, mapeando oportunidades e afinando estratégias. Não é sequer preciso gastar muito dinheiro nisto, basta trabalhar em rede de forma metódica e usufruir dos excelentes trabalhos que já se produzem na Europa, na Ásia ou nos EUA.
O que falta é implementar uma cultura empresarial mais aberta ao debate interno, capaz de filtrar o que é relevante para o negócio e para o ecossistema em que se insere. Portugal, infelizmente, tem sido um vazio na produção endógena de conhecimento antecipatório, no que seria uma boa ajuda à melhoria das decisões políticas e à nossa influência nalguns debates europeus e extraeuropeus. Tirando o excelente trabalho de José Félix Ribeiro no departamento de prospetiva do Ministério da Economia e da recente criação do Fórum do Futuro na Gulbenkian, liderado por Miguel Poiares Maduro, pouco mais se tem visto. As instituições políticas centrais e locais, a administração pública e as empresas só têm a ganhar se transformarem conhecimento rigoroso sobre o médio-longo prazo numa ferramenta às decisões do presente.
Em grande parte, 2030 já começou. A tendência de crescimento demográfico global (mais um bilião de habitantes), mesmo com regiões em acelerado envelhecimento como a Europa (Rússia incluída), e a sua concentração em grandes metrópoles (dois terços da população global), acentuará uma pressão acrescida às políticas de habitação, proteção social, à eficiência energética, à mobilidade urbana, à capacidade de resposta dos serviços básicos de saúde e educação, assim como da integração da diversidade cultural que as quer habitar. Tudo isto já se vive e os efeitos das respostas tardias ou mal preparadas sentem-se e têm custos elevados, não apenas orçamentais mas políticos e sociais. É neste quadro de assimetrias dentro das grandes cidades e entre estas e a desertificação de grandes porções dos países que o caminho se abre ao discurso manipulatório e antissistémico, carregado de mentiras, num bullying sobre minorias e desfalque de identidades nacionais, entrincheirando a sociedade para serem colhidos proveitos no sectarismo.
O papel do Estado na correção desses desequilíbrios estruturais é fundamental, e vai estar sob intensa pressão pela escassez de recursos, pela necessidade de acerto das opções políticas, e ainda pela concorrência crescente do papel das megametrópoles e das identidades transnacionais digitalmente formatadas. Uma das consequências destas dinâmicas é política e reside na disputa de protagonismo crescente entre presidentes desses grandes aglomerados urbanos e os líderes dos governos centrais. Em democracia ou em regimes autoritários, a forma como se fará esta gestão política pode ditar em parte o nível de estabilidade interna dos países, criando mesmo formas mais concorrenciais de legitimidade política, distribuição de recursos, processos de decisão e participação em novas organizações internacionais multilaterais. Democracias com instituições maduras e politicamente reforçadas tendem a domar melhor os choques sistémicos. Democracias corroídas por anátemas autoinfligidos (corrupção, nepotismo, falta de transparência, atropelos às liberdades e ao pluralismo) acomodarão pior, procurando centralizar todas as decisões num núcleo restrito de pessoas.
A evolução demográfica, a concentração populacional em grandes metrópoles, a gestão dos recursos económicos e energéticos e a qualidade da ação política (local, nacional, transnacional) colidirão com um aquecimento global já alarmante, transformando de forma acelerada o mapa energético, os hábitos de consumo, o tecido económico, a mobilidade urbana, a cadeia de segurança alimentar, o acesso à água, a conflitualidade global, os ritmos migratórios forçados e a pertinência das organizações internacionais. Se já temos acompanhado os impactos destas dinâmicas na deterioração do ambiente social e político na última década na Europa e nos EUA - noutras regiões já se manifestavam há mais tempo -, pensemos na próxima com mais tentações nacionalistas, fechamento identitário e ausência de compromissos para lidar com dinâmicas globais.
Esta regressão política, totalmente a contraciclo da transversalidade dos grandes problemas e das imperativas soluções, pode até ser uma oportunidade para a União Europeia. O mundo não é mais eurocêntrico, mas a Europa tem condições para influenciar positivamente a globalização. Se conseguir resistir ao nacionalismo defendendo intransigentemente a sua carta de princípios, consolidando um espaço de pluralismo democrático com uma diplomacia multifacetada capaz de misturar uma renovada capacidade política, a sua excelente rede de acordos comerciais, o seu ainda peso económico, uma necessária evolução tecnológica e uma maior credibilidade militar, então estaremos mais habilitados para moldar a globalização nos próximos dez, vinte anos. Para tal, é vital salvaguardar a coesão europeia e agir melhor em conjunto. Nenhum Estado membro sozinho terá capacidade para lidar com a rapidez das mudanças, mas todos tentarão fazer vingar a sua voz para formatar as políticas comunitárias.
Quem se preparar melhor terá mais influência. Portugal, não te acanhes.
Investigador universitário