2024

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"Habituem-se", disse António Costa, dirigindo-se à direita, numa entrevista à Visão. Habituem-se, que vão ser quatro anos de maioria absoluta. Mais ou menos na mesma altura, Marcelo Rebelo de Sousa, sempre atento aos tempos das entrevistas dos outros, nomeadamente do Primeiro-Ministro, tinha dito, sem mais nem pra quê, que tem andado a "bramir no deserto" por causa dos fundos do PRR. E disse alto o que pensa há muito - em 2024 há eleições europeias, há nova consulta ao povo e, até lá, o governo tem de provar que foi capaz de executar os fundos de forma equilibrada, transparente, reprodutiva e de modo a minimizar os impactos de uma crise da COVID que se estendeu, em 2022, com a guerra.

Na prática, Marcelo impôs um calendário a Costa - talvez não venham a ser quatro anos. A avaliação que o Presidente da República fará a partir do final do próximo ano pode ser determinante para o governo. Infelizmente para nós todos, as eleições europeias nunca foram verdadeiramente vistas como uma escolha dos nossos representantes no parlamento europeu. Continuam a ser analisadas como uma espécie de primárias das legislativas seguintes. Ou seja, uma avaliação do governo que está em funções. Uma oportunidade intercalar para dar o chamado "cartão amarelo" a quem governa. Ou pelo contrário, a hipótese de confirmar com o voto para Bruxelas o bom desempenho da governação caseira.

Em 2024, Marcelo vai esperar por esse resultado eleitoral, vai ler com cuidado o que dizem os portugueses e colocar na equação se houve ou não resposta aos seus bramidos, solitários, no deserto, como se estivesse, como Santo António, a fazer um sermão aos peixes.

2022 começa com legislativas antecipadas e uma maioria absoluta inesperada. Com o Chega a tornar-se o terceiro partido no parlamento, com mais deputados que PCP e Bloco de Esquerda juntos. Com a Iniciativa Liberal a crescer exponencialmente, com o CDS a desaparecer do hemiciclo, provando que a tradição, a antiguidade e os pergaminhos de partido fundador da democracia não chegam para eleger deputados. O PSD continua sem descolar, sem se apresentar como verdadeira alternativa e Costa agradece a todos eles. À esquerda, que conseguiu habilmente acantonar, e à direita, que está mais espartilhada do que nunca.

Marcelo, que já conta os dias para deixar de ser presidente, tem tido dificuldades em perceber qual o seu papel diante deste quadro. Um presidente hiperativo, hiperpresente, hiperpopular e hiperfalador, tem hoje menos espaço de manobra do que teve durante o primeiro mandato, precisamente por causa da maioria absoluta.

Por outro lado, o segundo mandato dos presidentes tem sido sempre marcado por mais intervenção e menor capacidade de "arbitragem". Os presidentes civis da democracia tomam partido. Já não vão, de novo, a votos e essa "liberdade" de ação, que não terá consequências eleitorais, mas apenas históricas, faz libertar o verdadeiro eu de cada um. Soares, no segundo mandato, fez campanha aberta contra o governo de Cavaco. Sampaio, no segundo mandato, dissolveu um parlamento com maioria absoluta. Cavaco, no segundo mandato, perdeu-se em guerras contra Sócrates. Marcelo, no segundo mandato, ainda não deve ter decidido que legado quer deixar. A forma como vai escolher terminar os 1174 dias que lhe faltam até à posse do seu sucessor será determinante para o jogo político.

O ano chave é, nestas contas, 2024. E o que for acontecendo até lá pode deixar-nos pistas. Se temos mesmo que nos habituar, ou se há um dia em que Marcelo deixa de pregar no deserto e, às oito da noite, fala ao país a partir do palácio.

Jornalista

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