20 anos após a guerra: um conflito congelado numa Bósnia a caminho da UE

Muçulmanos-bósnios, sérvios e croatas convivem dentro de um país regulado pelos Acordos de Dayton. Mas é mais o que os separa, do que aquilo que os une. O desejo de aderir à UE é, talvez, a exceção
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Sarajevo volta hoje a ser notícia. O Papa Francisco vai estar 11 horas na capital da Bósnia-Herzegovina, 17 anos depois de João Paulo II ali ter estado em visita, tendo por isso direito a uma estátua junto à catedral da capital do país. Foi em 1997, um ano depois de ter terminado o cerco de 1425 dias a Sarajevo, o mais longo do género na história da guerra moderna. Um coro multiétnico de crianças bósnias cantará para o líder da Igreja Católica, numa tentativa de simbolizar a paz num país em que os católicos são apenas 15% (os muçulmanos 40% e os ortodoxos 31%).

À porta da catedral, uma mancha de tinta vermelha assinala o local onde, durante o cerco, caiu um dos muitos engenhos explosivos lançados contra a cidade. É uma das muitas Rosas de Sarajevo. Logo ao lado, um cartaz chama quem passa a visitar uma exposição sobre Srebrenica, o massacre em que, a 11 de julho de 1995, morreram cerca de oito mil homens e rapazes muçulmanos bósnios às mãos das forças sérvias apesar de a área ter sido declarada Zona Segura pela ONU. O cerco de Sarajevo e o massacre de Srebrenica são as duas maiores marcas de uma guerra que ensanguentou os Balcãs, opondo muçulmanos-bósnios, croatas e sérvios ao longo de três anos e meio e fazendo cerca de 100 mil mortos.

O conflito, que pôs em xeque a credibilidade da União Europeia e das Nações Unidas, só terminou com a assinatura, no final de 1995, dos Acordos de Paz de Dayton. Estes dividiram a Bósnia-Hezegovina em duas entidades distintas: a Federação da Bósnia e Herzegovina (federação croata-muçulmana) e a República Srpska (república sérvia da Bósnia). E estabeleceram que, ao estilo do modelo suíço, a presidência do país de 3,8 milhões de habitantes seja tripartida, sendo exercida por um muçulmano-bósnio, um sérvio e um croata, que rodam, entre si, a cada oito meses. Um sistema bizantino que dificulta a tomada de decisões e é criticado por todos numa altura em que o país acelera a sua caminhada na direção da adesão ao clube europeu. No dia 1 entrou em vigor o Acordo de Estabilização e Associação com a UE.

Srebrenica: uma ferida aberta

"Dayton foi uma experiência que fizeram connosco. Estão a gozar. Só pode ser", diz a um grupo de jornalistas Kada Hotic, representante da Associação de Mães dos Enclaves de Srebrenica e Zepa. O seu cunhado aparece numa das fotos de vítimas do massacre selecionadas para a exposição que, desde 2012, está patente na galeria ao lado da catedral. Ao todo, Kada, de 70 anos, perdeu 56 pessoas da família no massacre de Srebrenica, incluindo o cunhado, o marido, o filho e dois irmãos. Lembra-se de tudo o que aconteceu como se tivesse sido hoje. Ao detalhe.

"Em Srebrenica, antes de 1992, viviam 38 mil pessoas. Havia mesquitas, igrejas ortodoxas e uma capela católica. Antes da guerra ninguém fazia distinções. Éramos todos iguais. Fomos surpreendidos pela guerra quando os nossos vizinhos sérvios começaram a dar ouvidos a [Slobodan] Milosevic e à sua ideia de criar uma "Grande Sérvia". Srebrenica tornou-se um campo de concentração. Nada chegava ali. No início de 1993 toda a gente passava fome. Nessa altura já havia 60 mil pessoas lá e quando a ONU declarou Srebrenica zona desmilitarizada achámos que íamos ficar seguros. Vieram primeiro os militares canadianos. E depois os holandeses. Em julho de 1995 os ataques dos sérvios recomeçaram", conta, entre cigarros, no bar do Hotel Bosnia, em Sarajevo.

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