'Oreo' (II)

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Visitar uma terra pela primeira vez acompanhada por quem a ama, e por isso a conhece, é um privilégio. Assim percorremos a ilha de Patmos: na extrema atenção dos detalhes que escapam ao olhar forasteiro, na inteligência do percurso que se traça para uma descoberta gradual, na evidência dos contrastes e na oferta generosa da surpresa.

Miguel e Lídia são portugueses e gregos, repartem-se entre Lisboa e estas ilhas, percorrendo as distâncias num barco à vela que é a sua segunda casa. São espíritos livres feitos ao mar e acolheram- -nos na amizade que nos une há muito. Fundeámos na baía de Merikas, um lugar tranquilo com um casario de pedra, uma praia com árvores, como é frequente nestas paragens, uma pousada e algumas tabernas sobre a água. Beneficiamos de uma natureza em estado puro, costas voltadas ao bulício de Skala e Chora. Estamos agora no limite noroeste do Dodecanésio e nota-se maior abundância de pinheiros mansos e eucaliptos, loureiros e damas-da-noite, e as casas têm balcões de madeira trabalhada, balaustradas e escadas de pedra. É como se estivessem ali desde sempre, como as velhas vestidas de negro à soleira das portas, intemporais no seu olhar perdido.

A primeira impressão que tenho de Chora é um labirinto medieval de ruelas estreitas, pátios e açoteias, buganvílias poderosas, grandes portas de madeira trabalhada ou pintadas de indefiníveis tons de azul. Jantamos num terraço suspenso sobre tudo o que a vista pode alcançar pratos de sabores fortes. Mas é na manhã seguinte, depois de uma noite passada no mar, que vamos até ao topo da ilha, onde se ergue a impressionante mole do mosteiro de São João, mandado construir em 1088 por São Christodulo. O mosteiro mantém uma comunidade de monges que recebem peregrinos ou viajantes que desejem recolher-se durante um tempo para rezarem, meditarem ou simplesmente encontrarem alguma paz. É dali que iniciamos, os quatro, uma espécie de peregrinação até à Gruta do Apocalipse. Pisamos as grandes lajes de pedra, as mesmas que pisou S. João Evangelista - o filho adoptivo de Maria -, deixamos para trás os brilhos dos tesouros bizantinos, a ofuscante riqueza dos paramentos e das alfaias, e aqui estamos, no meio dos pinheiros mansos e do silêncio, na expectativa de chegar à Gruta da Revelação. Naquela rocha se deitou João e a ela encostou o seu ouvido para escutar a voz que tudo lhe disse e que ele depois ditou, para que todas as gerações tomassem conhecimento de tão extraordinários mistérios. No interior da gruta, um "papa" todo vestido de negro fala-nos em grego sobre estas maravilhas, mas não entendo nada. Tal como os outros estrangeiros, sinto-me comovida e isso basta-me.

Prosseguimos a pé em direcção a Skala, encontramos a estrada alcatroada e, sempre a descer, entramos bruscamente no bulício do único porto da ilha, das lojas de artesanato, joalharias, boutiques de luxo, restaurantes, vendedores ambulantes, ruas animadas por excursões de turistas. Compro especiarias, pegas de cozinha "orgânicas" (?) e vestidos gregos para as netas.

Voltamos à nossa baía, onde tudo parece suspenso, protegido do ruído e da desarmonia. O mundo é novamente aquático, líquido, despojado e sublime. Tomo um banho como um baptismo, sento-me numa cadeira pintada de azulão a comer rodelas de cebola passadas por polmo e, já nostálgica, bebo um copo de vinho branco com sabor a resina. À minha beira, um gato pesca, na água, peixes incautos que uma gaivota assanhada disputa, enquanto um mergulhão surgido do nada se mete ao barulho. Troco um sorriso cúmplice com um pescador velho que, qual tricotadeira, remenda as redes.

Chego ao fim de um tempo em que não precisei de quase nada para além do coração e dos sentidos. Um exercício espiritual e físico capaz de sacudir os vãos cansaços do nosso quotidiano e de revelar o desafio de mudar a vida e de vida. Entretanto repito baixinho: "Feliz aquele que como Ulisses soube fazer a boa viagem!"

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