«Para os alemães somos preguiçosos e vivemos de empréstimos»

<em> O Senhor Fórmula 1 t </em> rabalhou com Emerson Fittipaldi, Michele Alborreto e foi amigo próximo de Senna. Durante mais de quatro décadas, Domingos Piedade lidou com as marcas e os nomes de topo da indústria automóvel. Foi vice-presidente da AMG-Mercedes e um dos embaixadores de Portugal na Alemanha. Emigrante de <em> s </em> <strong> ucesso, </strong> deixou Portugal em 1963 e regressou em 2007, o <strong> rgulhoso da nacionalidade luso-alemã. </strong> A adaptação não foi fácil mas, nas piores horas, contou com a família e duas paixões: o Benfica e Cascais.
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Em que fase da sua vida começou a gostar de automóveis e de automobilismo?

_No Colégio Nun'Álvares, em Tomar, teria uns 12 anos. Conheci lá o meu amigo José Carlos Botelho Moniz, filho do Júlio Botelho Moniz, que fazia corridas. E um dia fui com o Zé Carlos assistir a uma dessas corridas do pai, no circuito de rua de Cascais. Nessa altura fiquei a gostar de automóveis e a querer perceber um pouco de automobilismo. Mas foi mero acaso. Se o pai do Zé Carlos fosse um grande jogador de golfe, provavelmente eu teria escolhido o golfe.

E em miúdo, o que dizia que queria ser?

_Eu gostava muito de futebol. E jogava futebol na rua. Talvez nessa altura pensasse em ser jogador de futebol.

Nasceu em Lisboa. Por que razão foi estudar para um colégio interno, em Tomar?

_Sou um lisboeta típico. Sou filho único, nasci no bairro da Costa do Castelo, mesmo ao lado da Mouraria, onde os meus pais viviam. Eram grandes comerciantes de frutas e legumes no mercado da Ribeira. Com uns pais muito ocupados, andava um pouco à vontade. De maneira que chumbei um ano e aí fui para Tomar, onde estive cinco: dos 11 aos 17 anos.

Quem é esse miúdo que vai para o colégio?

_Um miúdo de Lisboa. O que eu queria ser? Sinceramente naquela altura não queria ser nada. Era aluno de dez valores, detestava matemática mas em Tomar mudei. Basta dizer que passei a ser um aluno excelente, nomeadamente a matemática. O professor Raul Lopes, o diretor, foi também o meu primeiro professor de Matemática do colégio. Ele ditava matemática como quem dita um texto. E eu aprendi. Aliás, nunca mais esqueci o primeiro ensinamento dele: «Ponto é o ente geométrico sem dimensão alguma.» Disse-o na primeira aula a que assisti. Durante anos, sempre que vinha a Portugal, ia visitá-lo e lembrava-lhe isto. E ele ria-se.

Passou da liberdade da rua para a disciplina de um colégio interno. Como foi a adaptação?

_Não foi fácil, mas rapidamente tive de encontrar uma solução. Era um pouco rebelde - os filhos únicos têm essa tendência -, mas em Tomar tive de me adaptar e adaptei-me relativamente bem às regras e leis dos colégios internos daquele tempo. Tão bem que, no sétimo ano, atual 11.º ano, com 16 anos, era já o aluno mais antigo do colégio e, por isso mesmo, um dos mais respeitados.

E por que razão foi depois estudar para a Alemanha?

_As minhas cadeiras nucleares permitiam-me ir para Engenharia ou Economia. Decidi por isso inscrever-me no Instituto Superior de Economia, na Academia Militar e na Escola Naval, mas a verdade é que eu não queria nada disso. O meu amigo José Carlos Botelho Moniz já tinha saído do país, morava na Suíça, e eu sabia que podia sair do país sem pedir licença militar porque tinha menos de 18 anos. Por isso, fui visitá-lo, andei também uns tempos por Londres, que achei uma cidade fria, cinzenta, onde se comia mal, até que o meu pai me disse ao telefone que eu deveria ir para Heidelberg, onde ele conhecia um professor português amigo. Eu não falava uma palavra de alemão, resmunguei um pouco, mas lá fui.

Nessa época, 1962, nem todos os portugueses podiam estudar e muito menos no estrangeiro.

_Penso que fui estudar sem grande esforço financeiro dos meus pais. Sempre tive essa sensação de certo desafogo económico.

Como era a sua vida em Heidelberg?

_Cheguei ao colégio alemão com 17 anos, muito assustado. A minha vida no colégio de Tomar não tinha sido fácil e estava traumatizado com a ideia de regressar a um colégio interno. Mas rapidamente percebi que estava enganado. As instalações eram fantásticas, quase luxuosas comparadas com que havia em Portugal. Achei aquilo uma maravilha.

E como se safou se não sabia uma palavra de alemão?

_Aquele colégio era para estrangeiros - ingleses, franceses, italianos. Portugueses, só dois: eu e José Manuel Ferreira, filho do conde de Riba d'Ave. Éramos oito rapazes e, numa vivenda contígua, viviam 32 raparigas. Um sonho. Senti-me bastante bem. Pois devo dizer que aprendemos tudo menos alemão. Só depois fiz o 12.º ano, que era já obrigatório na Alemanha, e o curso de Engenharia Mecânica em Colónia e Aachen. Só depois fiz Economia em Colónia.

Escolheu o curso de Engenharia Mecânica a pensar nos automóveis?

_Não. Só mais tarde se juntou o útil ao agradável.

Saiu de Portugal em 1963 e regressou de forma definitiva apenas em 2008. Em meados dos anos 1960 tornou-se correspondente na Alemanha do jornal Motor. Como é que chegou aí?

_Em 1965, começo a perceber que há na Alemanha provas de automobilismo muito interessantes, corridas que gostaria muito de ver mas a que não tinha acesso ao paddock e às boxes. Uma forma de conseguir esse acesso era ter um cartão de jornalista. O jornal Motor era propriedade do Ruela Ramos e o CEO chamava-se Lopes Cardoso, um senhor extraordinário, patriarcal, a quem fui perguntar se precisavam de um correspondente na Alemanha. E ele aceitou.

Quanto lhe pagava?

_Vinte escudos por peça. Uma miséria, mesmo na altura, mas quando cá vinha levava-me a jantar. Uma gentileza.

Escreveria ainda para o Volante, o Auto-Sport e o L'Équipe. É verdade que ainda pensou ser jornalista?

_Pensei, sim, e disse-o ao meu pai. Mas naqueles tempos olhava-se para o jornalismo de outra maneira. Ele pediu-me que não lhe desse esse desgosto e explicou: «Se uma filha sabe escrever à máquina vai para secretária. Se for rapaz vai para jornalista.» Não sei se me disse isso a brincar ou sério, sei que me dissuadiu.

E ainda hoje gosta de escrever?

_Muito. De resto, tive sempre a sorte de poder escrever sem censura ou pressão de quem quer que fosse.

Foi como correspondente do Motor que em 1969 conheceu Emerson Fittipaldi. Esse conhecimento determina a sua entrada no mundo do automobilismo?

_O primeiro clique deu-se em 1966/67, em Colónia. Nessa altura, tornei-me amigo de um piloto alemão de protótipos , o Rolf Stomellen, que corria na equipa de fábrica da Porsche. Convivi muito com ele e esse foi um ponto importante. Mas, claro, conhecer o Emerson foi decisivo.

Recorda-se do primeiro encontro?

_Ligam-me do Motor - já eu era correspondente europeu e recebia cinquenta paus por cada artigo - a dizer que tinha de ir a Inglaterra ver um brasileiro fantástico. E lá fui eu para Brands Hatch . Nessa altura não havia nada bem organizado, nem sequer um press office . Mal comparado, é como imaginar o Benfica a jogar num campo pelado cheio de lama. O que havia era uma lista com os nomes dos pilotos, afixada a pioneses num painel de madeira. Percorri a lista mas não foi à primeira que associei o brasileiro ao nome. Emerson Fittipaldi. Era o número 18, e lá entrei no paddock à procura dele. Às tantas, vejo duas figuras, uma corcunda, outra esquelética com umas enormes patilhas ribatejanas. Quando lhes disse bom dia até deram um salto. Estava ali um português. Pois bem, o corcundinha era o Chiquinho Rosa, que é só a pessoa mais extraordinária do automobilismo brasileiro. Pode mesmo dizer-se que onde há automobilismo brasileiro há o meu amigo Chiquinho Rosa. E o outro era o Emerson. E de facto ele encheu o olho dos adeptos ingleses. E o meu.

Ficou seu manager em 1972. Como o define?

_Fittipaldi era especial, um piloto extraordinário. Nunca foi um piloto kamikase , daqueles que se apagam ao fim da primeira volta, pelo contrário: se fosse cavalo de corrida eu apostaria sempre nele. Mesmo que partisse em terceiro ou quarto lugar, as chances de vencer eram sempre muito elevadas.

Porquê?

_Em corrida, era mais inteligente do que os outros. Só muito mais tarde encontrei uma inteligência do mesmo tipo em Alain Prost. O Ayrton não tinha aquel e tipo de inteligência, mas, claro, tinha muito mais talento. Se tivesse sido jogador de futebol, teria tanto talento para a bola que marcaria penalties de cabeça.

Com Fittipaldi foi campeão do mundo. Nunca um português esteve tão perto de um campeão de F1 e tão envolvido num título.

_O campeão foi ele. Eu passo a ser manager dele em 1972, precisamente na altura em que estávamos em Paris a receber o prémio pelo seu primeiro campeonato ao volante do John Player Special. Eu tinha acabado de assinar com uma empresa alemã da indústria metalo-mecânica que nada tinha que ver com automóveis, quando o Emerson me convida para trabalhar com ele. Foi uma honra. O meu pai tinha falecido meses antes e decidi iniciar assim uma nova fase da minha vida profissional.

Conte-me uma história marcante da vossa relação.

_Uma das primeiras é de 1970. Fui a Watkins Glen (EUA) ver a primeira corrida que ele ganhou, no ano em que Jochen Rindt foi campeão a título póstumo. E lembro-me de participar com o Emerson num torneio de golfe para pilotos, acompanhantes e jornalistas. Ficámos na mesma equipa mas nem sequer sabíamos o que fazer com os tacos. O Emerson tentou bater uma bola mas pegou no taco ao contrário - resultado: voaram 15 cm de relva. Ao segundo buraco já não tínhamos bolas. No final e por pura ignorância baralhei de tal forma os dados da score card que acabei por vencer o torneio e trazer uma taça que ainda guardo. E retirei-me no auge da carreira, como costumava dizer ao Jackie Stewart.

O que guarda desses anos com o Emerson Fittipaldi?

_O Emersom convid ou-me para organizar a vida dele, coisa que eu tentei fazer durante dez anos sem sucesso. Ele já acorda meia hora atrasado e depois resta-lhe somar atraso ao atraso. Sempre lhe disse que em vez de relógio deveria usar apenas calendário porque só acerta no dia. Eu fui viver com os Fittipaldi para a Suíça. Era mais um filho. E a mãe, a D. Juze, era uma senhora linda, linda. Senti-me sempre parte da família. Mesmo quando não trabalhávamos juntos.

E o que levou ao encerramento desse ciclo?

_ Para 1976 eu tinha tudo acertado com ele. Mas em Dezembro de 1975 ele informa-me que, com o irmão, assinara pela Coopersucar. Eu entendi, era um projeto de família e disse-lhe, tratando-lhe pelo petit nom : «Majo, fez uma grande escolha comercial mas desportivamente vai ser um fracasso.» No entanto, continuámos a colaborar até 1980. Aí parei porque não aguentava mais ver um bi-campeão mundial lutar pelos últimos lugares.

Em 1978 começa a ouvir falar de Ayrton Senna...

_ Em 1978, precisamente, a pedido do Emerson, fui falar com o pai do Ayrton, que era conhecido por «Miltão», para tentar convencê-lo a deixar sair o filho para a Europa, que os Fittipaldi tomariam conta dele. Ele reagiu mal: «Acabou a conversa, eu já disse a esses irmãos metralha que o Ayrton não vai sair daqui. Enquanto eu for vivo ele só vai correr de kart , nada mais.» Aí a minha curiosidade sobre o Ayrton disparou. Eu ainda não o tinha visto correr.

Mas em 1981, Senna vem finalmente para a Europa. Acompanha-o desde aí?

_ Ele já tinha casado, o pai, um homem muito rico, já lhe oferecera uma fábrica de componentes de automóveis, mas ele decidiu vir para a Europa. A partir daí segui-o muito.

É a figura que marca a sua ligação aos carros?

_ Sem dúvida. Estou convencido de que Ayrton era um ET. Tinha a capacidade de reduzir tudo o que se passava à volta dele a uma super slow motion . No tempo dele começaram a surgir as caixas negras que registavam os dados técnicos. No caso dele não era preciso recorrer a esses dados. Ele relatava exatamente tudo ao engenheiro, pormenor a pormenor. Nunca vi ninguém assim. Além de talento tinha dedicação, ambição e uma caraterística essencial para se ser campeão: era mau. Ou seja, tinha mau feitio dentro do carro. Não que fosse má pessoa, mas sim implacável. Com a mesma ambição desportiva só conheci dois: Senna e «Mick» Doohan que foi campeão cinco vezes em motos. Senna tinha duas facetas: out side the car e in the car . Fora do carro Ayrton era um sujeito doce. Dentro do carro, podia ser cruel.

Arriscava o limite. Não estava escrito que teria de acabar mal?

_ O Ayrton não foi vítima de um erro de pilotagem mas de um erro técnico. Arriscava muito, sim, mas nunca teria feito um erro de pilotagem que o levasse àquele ponto. O Ayrton tinha um dom, em todos os aspetos tinha uma capacidade superior, sabia exatamente o que fazia. O Gerard Berger costumava dizer que o Ayton trazia sensores incorporados. Como ele só me lembro do Walter Röhrl em rali. Senna antecipava a reação do carro e estava tão avançado em relação à normalidade que os carros até se chateavam com ele.

Dezanove anos depois da morte dele, o que recorda desse 1 de Maio de 1994?

_ Vi a corrida em Macau. Eram sete, oito da noite quando começou. E lembro-me de ter adormecido, de ter acordado já depois da largada a tempo de ver o acidente que envolveu o Pedro Lamy e o J.J. Lehto. Pensei que a corrida iria parar e haveria reinício, tantos foram os destroços que ficaram na pista. Mas não. E, então, vi depois o acidente, uma falha mecânica fatal. Percebi logo que o Ayrton morrera. Recordo hoje e sempre Ayrton vivo. Curiosamente, não muito tempo antes passara uns dias com ele, no Brasil, na sua fazenda.

Como era ele na intimidade?

_ Uma pessoa maravilhosa, mas ávida do seu amigo. Até na amizade, Ayrton tinha de ser pole position . Ele sempre em primeiro.

A rivalidade com Prost: havia alguma encenação para alimentar os tifosi ou detestavam-se mesmo?

_ Eles odiavam-se. Eram alérgicos um ao outro.

Foi o maior duelo de sempre da Fórmula 1?

_ Mais tarde nasceu um outro entre o Hakkinen e o Schumacher, mas sem a mesma força. Prost e Senna odiavam-se. Quando Ayrton chegou à Fórmula 1, Prost era o homem a abater, era o professor. «Vou dar porrada na cabeça desse francesinho», fartava-se de dizer. A determinada altura, achou que estava a ser injustiçado por Jean-Marie Balestre em relação a Prost e Ayrton era o seu próprio ministro da justiça, regia-se pela sua própria noção de justiça. Por isso, quando em Suzuka foi pole position e não lhe permitiram partir do lado que ele queria, disse: «Olha, eu vou largar na frente do francesinho. Se o cara chegar na minha frente na curva, não vou tirar o pé. Ele vai para fora comigo.» O Prost largou do lado limpo da pista, chegou à frente dele meio metro à entrada para a primeira curva. e o Ayrton, se ia em quinta, em quinta seguiu. Saíram os dois da pista e Ayrton sagrou-se campeão. Curiosamente, em 1994, em Imola, na última corrida do Ayrton, reataram.

Lembra-se da última vez que falou com ele?

_ A segunda corrida dessa temporada foi no Japão. Ele ligou-me depois da corrida para me falar de Schumacher: «Esse alemãozinho teu amigo é um trambiqueiro. Larguei oito metros na frente dele, o cara não podia ter-me passado. Acho que ele tem traction control , o que é proibido.»

Quem eram os adversários que ele temia e admirava?

_ Prost e depois deste só mesmo o Schumacher.

Falava há pouco em trambiquices. É um mundo limpo, o da Fórmula 1?

_ Estou convencido de que para manter o Renault na F1 o Bernie Ecclestone terá autorizado no final dos anos 70 que o motor tivesse mais de um litro e meio. Mas isso eram interesses comerciais. E, na verdade, o que não é apanhado no controle técnico é legal. Hoje, com os sistemas de controle eletrónico é mais difícil enganar o pessoal.

Foi também manager de Michele Alboreto que morreu em 2001, vítima de um acidente. Estes pilotos correm permanentemente um risco de morte.. .

_Eu não assisti aos acidentes, não os vi morrer. Ayrton e Michele morreram na pista. Foi morte imediata, não sofreram. É um choque terrível receber essas notícias, fica-se parali sado.

O que recorda de Michele Alboreto?

_O Michele era muito tímido mas supersimpático, culto, muito educado e extremamente talentoso.

Há muita superstição na Fórmula 1?

_Q uase todos os pilotos têm manias, superstições, fé. Todos têm uma pancada.

Senna tinha muitos rituais?

_Antes de cada treino ou corrida, antes de subir para o carro.

O Domingos tem fama de ser muito supersticioso.

_Agora menos, mas nos meus tempos de chefe de equipa era muito. Se uma corrida corria bem tinha de repetir uma peça de roupa ou um acessório. Se corria mal, desfazia-me de tudo. Também nunca mostrei um 13 na placa de tempos a um piloto meu. Mas mais do que supersticioso sou crente. E rezo todos os dias. Rezo todos os dias pelo Ayrton, pelo Michele e pela minha mãe.

Que pilotos entram no seu Top 5?

_Ayrton Senna, Emerson Fittipaldi, Schumacher, Jackie Stewart e Jim Clark. A ordem pode variar. Mas o primeiro da lista é sempre o Ayrton.

E quais foram os três Grandes Prémios da sua vida?

Watkins Glen, 1970, o primeiro que Fittipaldi ganhou; Nürburgring, 1985, vitória do Michele Alboreto; Estoril, 1986, foi aí que conheci a minha mulher.

Nos últimos anos a Fórmula 1 perdeu emoção?

_Perdeu. Até porque os pilotos têm hoje uma quota -parte de responsabilidade bastante menor no resultado. Quem faz o piloto ganhar são o engenheiro chefe e o engenheiro de corrida. Sebastian Vettel é o grande piloto dos dias de hoje, mas pertence já a uma geração de pilotos-proveta.

Fez parte do mundo de acesso muito restrito da Fórmula 1. Foi talvez o português que viveu mais de perto esse ambiente. Tem muitas histórias para contar?

_Tenho algumas. A Fórmula 1 é um mundo de acesso muito restrito mas os pilotos são pessoas muito acessíveis. Convivi com vários - Nikki Lauda, Jackie Stewart e tantos outros lendários que se comportam com muita simplicidade. Conheci muita gente, de facto, e desses ficavam mais próximos dois ou três - o George Harrisson ou o Eric Clapton, por exemplo. Privei bastante com o realizador do Grand Prix, John Frankenheimer, a minha mulher até participou num filme dele, com o Ben Affleck. Conhecia-o desde 1968 e tive o prazer de o ajudar numa cena de perseguição de carros que há num dos seus filmes [ Ronin , com Robert de Niro], uma das melhores do cinema. Ajudei a detetar algumas falhas, por exemplo que o taquímetro ia parado.

Antes de Alboreto, morrera um outro amigo seu, também de acidente: Stefano Casiraghi. Estava presente?

_Outra morte instantânea. Ele tinha imprimido numas T-shirts um convite aos amigos para a sua última corrida: «Come and watch my last race.» E foi mesmo. Eu estava no Salão Automóvel de Paris. Era um dia muito importante para mim, o dia da assinatura do contrato da Mercedes Benz com a AMG. Foi também um dia de tragédia. Ele tinha corrido com um barco cujo motor tinha sido feito pela AMG, especialmente para ele. Foi nessas circunstâncias que o conheci e nos tornámos amigos. Muito triste.

Nunca pensou escrever um livro com histórias e episódios desses anos na Fórmula 1?

_Poderei escrever as histórias mas apenas para serem publicadas a título póstumo. E só com bolinha vermelha, para terem o carimbo original.

Entretanto, em Portugal, a sua voz era ouvida aos domingos, na RTP, a comentar os Grandes Prémios. Voz associada a Adriano Cerqueira. Eram muito amigos.

_O Adriano Cerqueira era meu irmão. Eu, o Zé Eduardo Moniz e ele éramos irmãos.

A amizade com Moniz mantém-se?

_Sempre. As amizades com A grande mantêm-se para sempre.

Depois de colaborar com Michele Alboreto [finais de 1989] e quando pensava em regressar a Portugal, seguem-se dez anos na AMG, que ajudaria a levar à Fórmula 1. Como decorreu esse processo, em que passou de cliente para funcionário, para dirigente e depois para vice-presidente?

_A AMG era uma empresa que conhecia desde o tempo das corridas. Eu usava os carros da AMG como ferramenta de marketing também na F1. Foi por minha iniciativa que se iniciou o medical car , curiosamente no GP de Portugal. A minha máxima era muito simples: «Vencer ao domingo para vender na segunda.» Foi este o lema com que iniciámos o DTM em 1996. Começámos por ser uma empresa bastarda da Mercedes, mas pouco a pouco e graças a uma equipa fabulosa conseguimos que a empresa-mãe a adoptasse, lhe desse o nome e, em 1999, a comprasse totalmente passando a ser parte do grupo Daimler. A AMG é um case study no automotive world .

Como é que a sua família resistiu a tanta distância?

_Cheguei a fazer setecentas horas de avião por ano. Num só mês de 2003, fiz mais de noventa horas. A minha família sabia que tinha de ser assim. Dias depois de conhecer a minha mulher fui para o Grande Prémio do México e seguiram-se os GP do Japão e Austrália. A ANA Paula foi ter comigo, portanto, sabia que seria assim. Dessa viagem há um episódio engraçado. Na Austrália, no paddock de Adelaide fui cumprimentado por um senhor de idade. No fim, ela perguntou-me quem era o senhor. «É o Fangio», disse eu. E nem queria acreditar quando oiço «Sim, e quem é esse?» Pedi-lhe encarecidamente que fosse depressa comprar uma enciclopédia de automobilismo.

Tem nacionalidade portuguesa e alemã. Nestes tempos, como é que as conjuga?

_Sou considerado estrangeiro nos dois países. Aqui falam mal dos alemães, lá dizem que somos preguiçosos. Nunca gostei de ouvir falar mal de alemães e portugueses. Orgulho-me de ser português e do meu passado alemão. Porém, apesar das dificuldades de adaptação descobri Portugal nestes últimos cinco anos.

O que se pensa de Portugal na Alemanha?

_Para a generalidade das pessoas, Portugal é sobretudo Cristiano Ronaldo. Como há dez anos era Figo. Nos meios mais restritos é verdade que nos chamam preguiçosos e dizem abertamente que não aceitam pagar as nossas dívidas ou que vivamos de empréstimos. Fiz muito coaching para mudar esse paradigma, e tive bons resultados, pois de outra forma não teria chegado a vice-presidente de um grupo multinacional alemão. Além disso, a comunidade operária portuguesa na Alemanha é muito considerada.

O regresso a Portugal foi difícil?

_Muito. Cheguei a Portugal no pior momento, mesmo na altura do tiroteio. Andei aí muito perdido mas agora, felizmente, a minha situação melhorou.

Já vinha reformado?

_Sim, mas a minha reforma é da segurança social alemã. A reforma portuguesa a que tenho direito nunca a pedi. Por vezes não faço valer os meus direitos nem os reivindico, mas é assim que eu sou. Regressei convicto de que ia adaptar-me. Acontece que foi mais difícil do que eu pensava.

Foi administrador e presidente do circuito do Estoril. Saiu em finais de 2012. O que correu mal?

_Fui convidado em 2003 pelo então ministro adjunto do primeiro-ministro quando estava ainda na administração da Mercedes AMG. Saí em outubro de 2012, com 68 anos. Não estou formatado para cargos públicos sobretudo nas atuais circunstâncias.

A Fórmula 1 em Portugal é uma impossibilidade?

_ É. Não há dinheiro em Portugal para pagar a Fórmula 1. Só os países emergentes ou com famílias reais no poder podem suportar a longo prazo gastos de quarenta milhões de euros ou mais.

António Félix da Costa pode vir a ter sucesso na F1?

_O Pedro Lamy quase lá chegou. Foi muito apoiado pelo Ayrton, mas depois teve um acidente muito violento e esses acidentes deixam marcas. Penso que o António Félix da Costa tem todas as bases para ser o próximo piloto português da F1. Estou absolutamente convencido disso. Só espero que tenha um carro competitivo.

Por que razão não há mulheres na Fórmula 1?

_Nunca encontrei uma resposta, mas provavelmente por razões genéticas.

As mulheres conduzem pior do que os homens?

_ Há muitos anos que faço diariamente a Marginal, onde como se sabe o limite máximo são 70 km/hora. Pois nunca fui ultrapassado por homens, só por mulheres. E das que me ultrapassaram posso dizer que mais de metade ia a falar ao telefone e até já vi algumas a enviar sms com um olho na estrada e outro no telemóvel. Não digo que conduzam pior, mas são mais atrevidas.

Gosta de conduzir?

_Gosto.

Foi copiloto mas nunca se entusiasmou muito. Porquê?

_Porque não era suficientemente bom. O que eu não consigo fazer bem não faço. Sei que não guio mal, mas há cem milhões de pessoas que conduzem melhor do que eu. Fui mau copiloto, mas o piloto com quem fiz equipa, o Mário Rosa Freire, também era um pezudo. Fiz com ele dois ralis e assustei-me de tal maneira que ainda hoje não consigo andar ao lado de ninguém.

Guiou um monolugar?

_Guiei um fórmula 1 de um amigo em Paul Ricard, mas só acelerei numa reta de 1 800 metros. Foi há vinte anos e já na altura fiquei impressionadíssimo com a aceleração e a travagem. É o desafio da técnica ao mais alto nível que exige total concentração. É engraçado, os pilotos não se concentram todos da mesma maneira em corrida. Há os que correm em total silêncio, há os que conversam - o Ayrton falava em qualquer altura - e o Schumacher até cantava.

Os portugueses são maus condutores?

_ Não diria que somos maus condutores mas sim que adoramos conduzir no limite das regras ou mesmo para lá delas. Devo dizer que perante o que vejo esperaria o triplo das mortes, o que quer dizer que até guiamos benzinho.

Como é a lei na Alemanha?

_Na Alemanha não há limite de velocidade nas autoestradas, excetuando nas zonas de proteção sonora. Mas também por isso mesmo há mais responsabilidade. Ao menor toque não sobra nada e, talvez por isso, os condutores vão muito atentos.

O que pensa do ensino da condução em Portugal?

_É mau. O Automóvel Club de Portugal é bem melhor, mas o resto é mau. O meu filho tirou a carta numa escola de condução da linha sem ir à autoestrada, sem guiar de noite e sem conduzir com chuva. Na Alemanha é obrigatóri o.

O que gosta de fazer agora que está reformado?

_Gosto de estar com os amigos e a família: quatro filhos [dois do primeiro casamento], cinco netos, duas noras e uma sogra. E a Ana Paula, claro. È uma família grande e diversificada: uma nora italiana, outra alemã, um neto americano, um neto inglês, outro português, dois alemães e a minha mulher nasceu no Brasil.

Em que gosta de gastar dinheiro?

_Hoje em dia em nada. Vou ser sincero: só compro aquilo de que preciso mesmo. Exatamente porque cheguei a Portugal numa altura de crise e suplantei várias crises de adaptação e de situações mais delicadas, pergunto-me muitas vezes: será que preciso disto? Há uns dias, apanhei-me a olhar para um menu com preços e a achar alguns deles estupidamente caros. Independentemente de se poder pagar ou não, temos de ter essa noção.

O que quer fazer daqui para a frente?

_Sem ser aventureiro sempre fui muito otimista. Acredito que a minha concelhia de Cascais vai crescer e aposto num autarca que deveria ser um exemplo para os políticos nacionais - o Carlos Carreiras. Estou também a ajudar na internacionalização de algumas empresas, como a Gepasa do meu amigo Alfredo Casimiro, usando pela primeira vez a minha lista de contactos internacionais. Faço-o com extremo prazer e dedicação.

Vai envolver-se na política autárquica?

_Fiz duas promessas à minha mãe: nunca ser político nem dirigente desportivo. A minha mãe faleceu há cinco meses. Já não posso nem quero faltar a esta promessa.

Cascais e Benfica são duas paixões. O título está ganho?

_O Benfica tem-me dado algumas alegrias nestes últimos anos tão difíceis. Se não nos roubarem nas arbitragens, acredito que este ano seremos campeões. Seria uma grande alegria para mim, que sou sócio desde 1953.

Que lugar tem no automobilismo nacional?

_Só um português teve verdadeiro significado no automobilismo internacional enquanto desporto - foi o César Torres. Eu vivi essa época e limitei-me a ajudar no que foi possível, tanto o desporto como os desportistas. Faço-o há mais de quarenta anos e sempre que possível, espero continuar.

PERGUNTAS DE ALGIBEIRA

Um filme.

_ Once upon a Time , de Sérgio Leone, com Henri Fonda, Charles Bronson e Claudia Cardinale, todo ele mais do que só um grande western . O primeiro dos filmes de cowboys spaghetti , dos anos 1960, com uma música fabulosa. Penso que o vi para aí umas sete ou oito vezes.

Um livro.

_Todos os autobiográficos de personagens interessantes.

Uma música para namorar .

_Todas as baladas de Eros Ramazzotti.

Um lema de vida.

_ «You always meet twice in a lifecycle.»

A última vez que chorou.

_De tristeza, quando vi a minha mãe depois de ter sofrido o AVC, dias antes de ter morrido. No velório e no funeral, não chorei. Aliás, choro de alegria e comoção, não de desgosto ou dor.

O que ainda vê na TV?

_Desporto e comentários políticos sérios...

Quanto tempo gasta por dia a ler jornais?

_Já só leio as versões eletrónicas, a Ana Paula não gosta do cheiro da tinta dos jornais.

E a responder a e-mails?

Depende, por vezes horas... eu respondo a todos os e-mails pessoalmente. Noblesse oblige , ou seja, não havendo secretária...

C ontra a crise.

_Tentar superar as dificuldades que provoca, com um mínimo de estrago e um máximo de eficiência.

U m lugar para passar a reforma.

_Eu já estou na reforma e em Portugal. Portanto...

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