É uma figura tão polémica como de referência na comunidade muçulmana que vive em Portugal. Hábil na palavra, não se esquiva a questões sobre religião, mas evita as que directamente implicam o islão no xadrez político nacional, como é o caso da passagem de aviões com presos árabes que fizeram escala nos Açores. Adepto do convívio inter- -religioso, o imã da Mesquita de Lisboa está satisfeito com a liberdade de culto que se vive em Portugal.Os muçulmanos são todos fanáticos?.Alguns são, mas há adeptos de futebol que também são fanáticos, e eu não posso dizer que o futebol é só para fanáticos. Não, alguns adeptos são como alguns seguidores de algumas religiões, mas alguns seguidores de nenhuma religião também são fanáticos, e basta ver as últimas manifestações na Grécia para se observar uma onda de agressividade que está a surgir e onde a religião não está envolvida. Ser-se agressivo ou fanático tem a ver com a pessoa e também com tudo aquilo que está à nossa volta, no aspecto social, económico e político. .Em Portugal há muita tolerância para com outras as religiões... .Por isso é que temos de respeitar essa tolerância e valorizar essa liberdade. Se o Estado dá esse direito, tentamos usufruí-lo e respeitá-lo. Na primeira sexta-feira após o 11 de Setembro, pedimos à PSP para estar presente na mesquita porque houve uma ameaça de bomba e a situação estava muito tensa. Foi exactamente no momento de começar a oração, e quando a autoridade mandou evacuar a mesquita, nós fizemo-lo, porque somos uma comunidade que vive num país que tem leis e normas e respeitamo-las. Isto mostra que o facto de sermos muçulmanos e de vivermos num país laico não proíbe uma certa sensatez e o encontrar uma forma de nos encaixarmos sem perturbar. .Praticam a religião sem criar ondas!.O próprio islão dá a solução. Se estamos sob uma ameaça e chamamos a autoridade, então aceitamos as regras, mesmo se há uma oração importante. Pode esperar, porque primeiro está a vida. .O 11 de Setembro exponenciou o fanatismo? .Acho que ainda é muito cedo para o saber, porque foi só há poucos anos. Acontece que muita gente ficou curiosa e, depois de uma imagem péssima sobre o islão, quiseram conhecê-lo, e tentaram separar as coisas. Tornou-se mais fácil de o aceitar e de o compreender porque não se misturou a tradição com a cultura e com a prática religiosa..Então o atentado às Torres Gémeas foi benéfico para a comunidade muçulmana?.Não diria que foi benéfico, porque não podemos esquecer que muitas pessoas inocentes morreram e outras perderam muita coisa. O acontecimento foi condenado pela própria religião, mas infelizmente aquilo aconteceu e criou um certo medo também nos muçulmanos, mas, depois de ter acontecido, criou-se uma certa curiosidade quanto ao islão. O meu vizinho quis saber como é que eu me sentia, se eu incomodava ou se era diferente? É claro que todos nós temos de contribuir para separar os factos e explicar o que é o islão. E se alguma prática notada por alguns muçulmanos anula a religião, temos de mostrar que não tem nada a ver com o islão. Apesar de ter utilizado o nome do islão, temos de explicar que isto não é islão, que o que aconteceu não tem a ver com o seu ensinamento. E aí podem-nos responder que eles o fizeram em seu nome, mas nós podemos contrapor que outras pessoas também o fazem em nome das outras religiões. .Quando diz "eles fizeram" refere-se aos 19 muçulmanos que pilotaram os aviões?.Sim, as pessoas envolvidas e que invocaram o nome do islão. Mas antes do 11 de Setembro houve uma seita cristã nos EUA que, com a Bíblia na mão, cometeu um suicídio colectivo que foi transmitido pelas televisões em directo....A comunidade muçulmana portuguesa nunca condenou oficialmente o atentado!.Condenou oficialmente em palestras e em encontros em que participámos..Para a comunidade portuguesa, os 19 muçulmanos foram heróis, mártires ou loucos? .De todas as pessoas com quem falei nenhum disse se foram heróis ou mártires. No islão, o suicídio é proibido e matar uma pessoa inocente também, portanto, se mata pessoas inocentes, é pecador. Se este muçulmano se suicidar, também é pecado. Quando os dois actos são feitos ao mesmo tempo, qual é a resposta que o islão dá? Não se justifica suicidar-se nem matar pessoas inocentes. Isto é o que o islão transmite, isto é o que o islão diz. .Mas os 19 estavam conscientes do seu acto! .A leitura que eles fizeram, bem como a das pessoas que os apoiaram, é que não estavam errados. Se concordassem com a leitura de que estou a falar, nunca o iriam fazer. Eu não concordo com a leitura deles, nem os muçulmanos que vivem em Portugal. Há que esclarecer as pessoas de que aquela leitura é errada no islão, e esta é a nossa missão e o que temos feito. Mas eu não posso querer que toda a gente pense como eu..Depois desse, a Al-Qaeda tem feito uma série de atentados. O que pensam agora?.Em nenhum dos atentados a comunidade teve uma reacção diferente a não ser a de condenar, fosse o 11 de Setembro nos EUA, o 11 de Março em Madrid, o 7 de Julho em Londres, e por aí fora. .Mas em Inglaterra muitos muçulmanos jovens consideram Ben Laden um herói! .É um problema deles..Em Portugal, não?.Pelo que sei, não, os jovens não têm essa ideia..Essa curiosidade sobre o islão provocou alguma conversão recente em Portugal?.Há pessoas que estão a abraçar e a aceitar a religião islâmica e que a vão praticando..Portugueses?.Sim, e nota-se que o número de pessoas que visitam a mesquita aumentou desde o 11 de Setembro, quase diariamente há escolas que vêm até cá, e explica-se-lhes o que é o islão. Acho que ficaram mais curiosas, e não é só em Portugal que tal aconteceu. .Como é o caso português?.Aumentou esta curiosidade, e tem havido conversões. A pessoa vem à mesquita, conversa-se, e quando está mesmo decidida faz-se a conversão..O número cresceu nos últimos oito anos?.Não posso dizer que aumentou, mas também dizer que diminuiu é errado. Está ela por ela. .Pode quantificar o número de conversões?.Anda à volta de uma por mês. Mas uma coisa é certa, para se ser muçulmano não é preciso vir à mesquita fazer essa declaração de fé perante o imã. A própria pessoa pode conhecer o islão, e, quando a sua fé se identifica com ela, declara que acredita na existência de um só Deus, o profeta Maomé como o seu último mensageiro, e que é convicta e serena naquilo que está a dizer, e então é muçulmana. O que conta é o íntimo. Vir à mesquita ou falar perante as testemunhas é mais uma formalidade. .Os convertidos costumam vir à mesquita? .Sim, vêm normalmente, como um irmão. .Qual a sua idade?.São pessoas jovens. Há os de uma certa idade, há homens, mulheres? Varia muito, mas estão entre os 20 e os 45 anos os que sentem interesse, e são pessoas com cultura e da classe média-alta..Não vos choca que os nascidos na religião católica descubram no islão a resposta?.Quando alguém quer ser muçulmano, nenhum muçulmano pode impedir. Pode conversar e saber o que pretende. É preciso não esquecer que com a globalização as pessoas não estão isoladas!.Qual a razão dessas conversões?.Isso reside no plano íntimo de cada um, e é muito difícil saber a razão. Se a pessoa diz "eu quero visitar a mesquita, quero assistir à oração", tudo bem. Há quem diga "obrigado, já estou mais aliviado", e fica por aí; mas há quem aprofunde ainda mais, e não se diz: "Não, já chega." A religião não é minha. .Não colocam, então, entrave à conversão?.Não podemos colocar um entrave, apenas conversar com a pessoa. .Há a teoria de que o mundo árabe sonha reconquistar o Al-Andaluz....Desconhecia esse sonho, muito sinceramente. .Desconhecia?.Ao sonho que está a referir-se, sim. .Defende que a Península Ibérica deveria voltar a ter o brilho islâmico? .Podemos dizer que a presença islâmica foi marcante, que houve uma convivência pacífica entre muçulmanos, judeus e cristãos e que foi uma era em que os muçulmanos cresceram e tinham acesso a uma ciência fora de comum. Infelizmente, hoje não têm o mesmo brilho, mas não faço a leitura de outros e nem vejo isso como um sonho. .Outros, quem?.Desses que me disse fazerem uma leitura de que há a ideia de regresso do Al-Andaluz. Vivo um dia de cada vez, deixo as coisas acontecerem e não trilho essa ideia. Nem sequer nas minhas palestras disse que "um dia temos de reconquistar"..Não tem sonhos de expansão religiosa?.Não tenho esses sonhos de expansão religiosa. Eu acho que tudo acontece se for para acontecer. .Segundo o autor Umberto Eco, a Europa será em 50 anos maioritariamente muçulmana!.Se assim for, tudo bem, se não, também tudo bem. Hoje, a população maioritária em Portugal é cristã, muçulmanos, só são 40 mil, mas se daqui a dez anos forem 20 mil, tudo bem, mas se forem 45 mil, também tudo bem. .Mas concorda com essa profecia de Eco?.Depende. Se falarmos em termos de população, é normal, porque a europeia está envelhecida, enquanto os muçulmanos que vivem no continente, independentemente de serem portugueses ou não, têm tendência para terem mais filhos e serem uma família enorme. Em termos estatísticos, é normal que a família muçulmana seja mais alargada que a não muçulmana e que daqui a 50 anos a Europa seja muçulmana. Não por conversão, mas em termos demográficos..O islão tem pensadores e terá uma noção do que será o futuro. Isso acontecerá?.Muito sinceramente, não sei nem faço a mínima ideia. Pode acontecer, pode também não acontecer, além de que a islâmica não é a única religião na Europa. Temos hindus, budistas, entre outros, e cristãos que vão querer que os filhos e netos continuem a sê-lo. Portanto, não faço a mínima ideia do que poderá acontecer no futuro. .Não faz, ou não quer confessar?.Não faço, mas posso começar a pensar nisso agora, e se vier entrevistar-me daqui a cinco anos, poderei dizer se já tenho alguma ideia..Mas os líderes das comunidades muçulmanas na Inglaterra devem ter alguma noção?.Eu conheço pouco a Inglaterra. .Então, os de outro país que conheça. .Podemos falar da Inglaterra. Acho que alguns líderes religiosos na Inglaterra cresceram imenso e mudaram o seu discurso, porque o de há 10, 15 ou 20 anos já foi ultrapassado, e os jovens ingleses muçulmanos precisavam de um outro. Nota- -se a diferença, segundo comentários que ouço, e não concordo com o discurso que cria ódio com o seu vizinho, por não ser muçulmano..Era o que acontecia?.Provavelmente, na Inglaterra houve esse tipo de discurso, e por isso é que o tom mudou nas mesquitas onde ele era um pouco mais duro..Houve uma altura em que o serviço de informações português, o SIS, vigiou a sua comunidade..Não fazia ideia. .Então reformulo a questão. Acha que no pós--11 de Setembro a comunidade muçulmana foi investigada pelo SIS?.Eu só posso dizer que ouvi na comunicação social algo relacionado com isso. Directamente, nada soube. .Estariam preocupados com a eventualidade de albergarem terroristas?.Sinceramente, não me perguntaram nada. .Deram abrigo a algum potencial terrorista? .Ninguém vive na mesquita. .Na comunidade muçulmana? .Não faço ideia. Eu sou responsável pela mesquita, e aí ninguém mora, portanto, a mesquita não serviu de abrigo. Agora, se membros da minha comunidade deram, Deus sabe melhor. Eu não tenho conhecimento de ninguém que tivesse dado abrigo ou que tivesse sido informado. .E teve conhecimento de algum elemento da comunidade muçulmana que tivesse ido treinar-se para o Paquistão ou Afeganistão? .Não, também não. Qualquer muçulmano que quisesse sair do nosso país com esse fim nunca iria informar o imã da mesquita..Viveu no Paquistão, país que ficou ligado aos recentes atentados na Índia. O que pensa?.A situação tensa que se vive entre a Índia e o Paquistão existe desde 1947. Qualquer acto de terrorismo que acontece no Paquistão, a primeira coisa que se faz é acusar a Índia, e vice-versa..Acha que o terrorismo oriundo do fundamentalismo islâmico vai parar algum dia? .Oxalá que pare, porque isto não leva a lado nenhum, só cria mais tensão e mais desconfiança. .Tem a confiança da sua comunidade? .Isto terá de perguntar à comunidade. Espero que me vejam como uma pessoa normal e que tenta desempenhar as suas funções..Nunca há contestação ao imã? .Pode haver, pode haver..E há? .Uma coisa é alguns muçulmanos quererem que eu seja como eles pensam - que seja mais fundamentalista e conservador -, mas eu tento ser uma pessoa que mantém o diálogo com todas as religiões. Alguns não vêem isso com bons olhos..Para onde fica Meca?.Nesta sala, em termos de direcção, fica à minha direita. Em termos de bússola, sudeste. .Essa é uma das primeiras perguntas que os muçulmanos fazem ao chegar a Portugal?.Alguns, sim, mas nos dias de hoje existe o relógio que mostra a direcção de Meca em qualquer parte do mundo, basta pôr as coordenadas ou o nome da cidade e o próprio aparelho faz a busca. É, também, normal os muçulmanos andarem com um tapete que já traz a bússola fixada no seu meio e que indica a direcção de Meca. .O horário frequente das orações não complica a vida das pessoas?.Não. O tempo de cada oração é de dez minutos. Vir à mesquita não é sinónimo de ser muçulmano, e há muita gente que faz a oração no seu local de trabalho. Se não for possível, porque para fazer a oração o corpo, a roupa e o lugar têm de estar limpos, quando chegarem a casa à noite, depois de tomar o seu banho, depois de jantar ou antes, é normal as pessoas fazerem as orações que não fizeram durante o dia. A primeira é antes de sair de casa, a segunda é à hora de almoço, a terceira e a quarta, antes da da noite, que aqui na mesquita se faz às 19.30, mas que pode ir até à meia-noite. Quando dizem que perturba o trabalho, é só ver que quem fuma também faz paragens. É claro que a oração não é como fumar um cigarro - só em termos de tempo -, mas é um intervalo que eleva espiritualmente..Conseguem abstrair-se para orar?.Não é fácil, mas também não é impossível. Depende de cada pessoa, há quem chegue a casa e não se consiga desligar do trabalho..Esses dez minutos de oração fazem lembrar o bom comportamento nas missas católicas, que não é tão bom quando cá fora... .O islão recomenda que o dia-a-dia seja exemplar porque ser bondoso não é sinónimo de ser muçulmano. Fora do recinto que nós chamamos sagrado a pessoa tem de continuar a ser exactamente como é dentro dele. .Nenhuma religião consegue tal obediência..Cada um é responsável por aquilo que faz, e à luz do islão cada um carrega a sua cruz e terá de responder pelas acções. O islão não permite roubar porque se está preocupado com o seu conforto. O que fala o Alcorão sobre o mundo material?.Que é uma ilusão.|