"Sinto muita saudade da família e dos amigos que desapareceram"

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Dizia, em 2008, em entrevista ao Diário de Notícias, que sentia um certo cansaço de viver. Essa afirmação, dois anos depois, mantém-se de pé ou ultrapassou essa fase?

Estou a olhar para si e, com a idade que tem, vejo-o ainda com muita força...

Sim, mas olha para mim e eu tenho 102 anos, vou a caminho de 103. Não é a mesma pessoa que olhava para mim quando eu tinha 20 ou 25. Tinha outro vigor, outra capacidade física. Agora, intelectual, não!

Mas chega em boa forma física ao presente. Isso também foi em função da intensa vida desportiva que teve durante a sua juventude?

Não, isso são caprichos da natureza.

Só?

Por exemplo, podia morrer de desastre, podia ter morrido de uma doença qualquer, por muito desporto que eu praticasse. Enfim, a natureza é caprichosa e dá a uns o que tira a outros. Não se sabe porquê.

Mas reconhece que também tem tido algum cuidado com a sua vida. Ou não? Cuidados alimentares, por exemplo.

Cuidados alimentares nunca tive. Tenho agora um bocado porque o médico diz "não faça isto, não faça aquilo", e eu faço por não fazer.

Alguma vez pensou que a sua vida dava um filme?

Um filme chato, um bocado chato. Acho que sim (risos).

É um homem do Porto...

(De pronto) Sou! Nasci no Porto, vivo no Porto, só não sei onde é que vou morrer.

E é portista também?

Sou do Porto, sou portista porque é o FC Porto. É o da minha cidade, naturalmente que sou portista. Mas não sou assim um ferrenho.

Nem vê futebol? Ou vê futebol?

Vejo, não me custa nada ver. Gosto que o Porto ganhe; se sou do Porto, naturalmente que ganhe o Porto!

Tinha, e presumo que ainda tem, uma quinta no Douro.

(Interrompe de pronto) Não tenho quinta... A minha mulher herdou, era Carvalhais, e os Carvalhais eram do Douro, anteriores à filoxera!

Ainda lá vai muitas vezes ou passa mais tempo aqui na cidade?

Passo mais tempo aqui na cidade. Vou lá às vezes, quando tenho tempo. Já não conduzo; a deslocação é mais difícil. Mas, então, veio a filoxera, e essa família, que tem várias quintas no Douro, fugiu para o Brasil, para Lisboa, para qualquer outra parte. Ficaram poucos, muito poucos. Portanto, é uma família dos vinhos do Douro. O Douro é uma região privilegiada. Tudo o que sai do Douro é de uma qualidade extraordinária. Seja as frutas - não é só o vinho -, seja os legumes, tudo, é um sabor macio, agradável. O Douro é uma terra privilegiada.

Foi atleta, piloto de automóveis, chegou a trabalhar como actor e até na produção agrícola. Se não fosse realizador de cinema, alguma vez pensou naquilo que poderia ter sido?

O que poderia ter sido? Bom, eu ponho de parte ser um grande malandro, isso não seria! (sorri e acaba por rir-se) O resto podia ser tudo, qualquer coisa, sabe-se lá! O destino é que marca a conduta de cada indivíduo. Somos predestinados. E ninguém resiste ao seu destino. Ou dá para o bem, ou dá para o mal.

Alguma das pessoas que já partiram ao longo da sua vida lhe faz mais falta? Tem saudades de alguém em especial?

Muitas! Muita, muita saudade. Uma melancolia enorme por perder todas as pessoas de família, todos esses meus amigos que me ajudavam imenso e tudo mais. E agora desapareceram. Não tenho assim um amigo...

Não pode ter um amigo da sua idade!

Um da minha idade, que tivesse vivido a minha juventude e a quem eu pudesse dizer: "Ó pá, tu lembras-te daquilo que se passou?" Não há. Isso, não há. Sinto uma melancolia profunda.

É muitas vezes interpelado por outras pessoas na rua?

Sou. Muito. Agora, muito.

O que lhe dizem?

Gostam de me interpelar, vêem-me assim... vou-lhe dizer... jovem! Vêem-me jovem e dizem-me "Prazer em vê-lo, tenho uma admiração por si enorme!", "Então que filmes viu?", "Eu não vi nenhum, vi-o na televisão..." (risos). De maneira que é isto, é muito difícil um artista chegar pelo seu trabalho a ser verdadeiramente propaganda. E estou a ler um livro, que é A Loucura do Doido, que diz que hoje vive-se muito do reclame, da propaganda. Tudo é o reclame, fazem reclame para tudo. O artista não tem de fazer reclame, basta a sua obra, ela impõe--se ou não se impõe, passa ou não passa. Muitas vezes não é compreendida no seu tempo, vem a ser compreendida mais tarde, outras vezes é compreendida no seu tempo, o que dá grande satisfação aos homens. Mas fico muito contente que alguém me veja e "Ah, eu queria dar-lhe um beijinho!" Uma rapariga, não é? Quando eu tinha 20 anos, as raparigas não me queriam dar beijinhos!

Sente-se completamente realizado com a sua carreira, com a sua obra, com os filmes que fez?

Não me sinto realizado! Estou a tentar realizar-me neste curto espaço que me resta.

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