"Graças a Deus fomos colonizados pelos portugueses"
Está praticamente a viver em Portugal. O que o move num momento crítico como este, com o Brasil aparentemente a viver dos seus melhores dias. Vai à procura de inspiração revolucionária?
_Acho que não tem muito que ver com a situação política ou económica. Tem mais que ver com o povo. Com as cidades, a terra. O país é muito bonito. Tem uma história lindíssima. É incansável. Um país que tem uma diversidade histórica e arquitetónica espantosa, que se descobre percorrendo pequenas distâncias. Não sentimos o peso da distância quando estamos aqui. De sessenta em sessenta quilómetros a paisagem muda. Eu sou daqueles que dão graças a Deus por termos sido colonizados pelos portugueses, ao contrário de preferir uma colonização francesa ou inglesa, como fala o Caetano Veloso. Foi a melhor coisa que podia ter acontecido a este país. Se o Brasil é o que é hoje, diferenciado e universalista, deve-o a Portugal. Temos as tragédias de todos os outros e os problemas não nasceram da colonização. Historicamente somos uma grande mistura valiosa mas mal contada. É injusto que se falem certas coisas como se a colonização espanhola na Bolívia, no Peru ou no Chile tenha sido mais bem conseguida.
Não é um instinto de pintor naturalista que o leva a instalar-se sendo o Ivan um homem de lutas e de causas?
_Não, não é isso [ risos ]. Gosto muito das vilas e aldeias portuguesas. Tem muito que ver com o meu tipo de personalidade. Apesar de ser um homem urbano, nascido e criado no Rio de Janeiro, e ter vivido quase a vida toda aqui, sou um apaixonado por lugares pequenos. Tenho uma casa em Teresópolis, onde já fui morar duas vezes, e acabei voltando. Morei nos Estados Unidos um ano, em Los Angeles, e detestei. Tenho uma relação que vem da minha infância e talvez possa explicar. Morei em Boston dos 2 aos 5 anos. O meu pai era engenheiro naval e fez um curso de pós-graduação no MIT. Quando voltámos ao Rio, fui parar ao lugar onde os portugueses mais se concentravam, na região do Andaraí e da Tijuca. Peguei eles de caras! Fui morar na xácara do meu avô materno, cujo pai era de Guimarães, o Dr. Avelino, que eu não conheci. Era uma coisa toda portuguesa, com azulejos e essas coisas. O homem era «getulista» [partidário de Getúlio Vargas] e adorava fados. Só dava Amália. Certamente eu pensei que aquilo era música brasileira. A Amália era uma diva ao nível da Callas, da Piaff, da Yma Sumac, da Caterina Valente. Aqui tinha a Ângela Maria, uma voz maravilhosa, tinha a Carmen Miranda. Eram tratadas como deusas. Eu chego nesse clima e vou morar numa xácara portuguesa, na Rua Leopoldo, no Andaraí. Até aos 2 anos, não lembro de nada. As minhas memórias começam nos EUA, logo eu me considero um americano que chegou ao Brasil aos 5 anos e conhece Portugal [ risos ]. Adorei aquilo. Era o máximo.
E quando foi a primeira vez a Portugal, ver os parentes?
_Em 1981, à Festa do Avante!. Fiz um concerto inesquecível. Conheci o Cunhal, o Ruben de Carvalho, o Adriano Correia de Oliveira, que se tornou quase um protetor meu. Ele me adorava e protegia, contra o mal e o perigo. Era o meu guarda-costas. Tive a oportunidade de conhecer bem o Paulo de Carvalho. Conheci o Zeca Afonso, que já era um cara faladíssimo aqui no Brasil. Uma figura mítica, muito por causa do Chico, que o introduziu. Havia o Sérgio Godinho, que tinha o aval do Milton e do Caetano. O Sérgio foi logo visto com um cara com pontos de vista muito sérios, que estava ligado ao teatro e ao cinema. Deu-lhe respeitabilidade.
Continua a ser preciso o aval dos papas para entrar no circuito?
_É preciso ter os contactos certos e cair nas boas graças.
E acha que somos respeitados, como gente séria que faz coisas sérias?
_Bem, nesse período dos anos 1970, Portugal era olhado com ciúme. Porque se tinham libertado. As festas do 25 de Abril aqui eram ilhas de liberdade. Quando vinham os portugueses os teatros lotavam, tudo sob a proteção da embaixada portuguesa. Os militares não podiam falar nada, ficavam caladinhos. Costumavam cercar os teatros onde tinham as festas, mas muito subtilmente.
O Chico cantou o Grândola, Vila Morena numa dessas festas.
_Lá dentro cantávamos o que queríamos. E havia uma admiração enorme por vocês terem brigado e conseguido a liberdade.
Por outro lado, há da nossa parte uma outra fascinação: como se vocês conseguissem fazer da língua o que nós não conseguimos, soltá-la.
_Isso foi porque vocês pegaram uma ditadura o dobro do tempo e com um cara chato p"ra cacete, que até mudou a maneira de falar e de pensar. O Salazar virou Portugal de costas para o mundo. O Brasil até que resistiu. Mas a minha geração não tinha ideia do que se passava em Portugal. Só soube o que era Portugal depois do 25 de Abril.
O Brasil está a viver a quimera do ouro?
_Acho que sim. Nunca se roubou tanto. Eu diria, com quase certeza absoluta, que 25 por cento do nosso PIB vai pelo ralo só com corrupção. É um momento interessante no sentido em que as instituições estão começando a descobrir os golpes que já vêm sendo aplicados no país há muitos e muitos anos.
Podemos dizer que você é um compositor de combate?
_Eu costumo dizer que faço música de interferência [ risos ].
Quem ouve o seu Amorágio [o último disco, em tournée] vê ali uma espécie de conclusão de que a revolução e a linguagem do amor são as mais poderosas.
_O amor é a linguagem mais poderosa porque mexe com o sentimento de identidade entre as pessoas. É o que as move. Amor e paixão. As pessoas mantêm-se vivas através desse sentimento. Pode ser por um ideal, um sonho, uma pessoa, um animal, um objeto. O amor visto aqui de uma forma realista e não fantasiosa. A realidade interfere profundamente no amor. Quantas relações acabaram porque a realidade foi dura com um ou com os dois? Tem uma canção que eu canto que diz que se não fosse a nossa consciência, a gente teria mais tempo de se envolver nos mistérios de nosso amor tão sincero. Não fosse a tamanha injustiça que se alastra por todo o país a gente teria mais chance de estar juntos e sermos felizes. Não fosse a luta diária que mal dá para ver os filhos, não fosse o bem desgovernado teimando em sair dos trilhos, a gente estaria mais juntos, um bem dentro do outro, vivendo no corpo do outro, como devem ser os casais, sonhando com coisas reais, e cantando e dançando.
Revê-se no poema A Invenção do Amor, de Daniel Filipe?
_Muito, gosto muito dele. A língua portuguesa é a mais plástica que tem. É um idioma água. Assume qualquer forma de onde se coloca, de qualquer conteúdo. O brasileiro inventa muito. Todo o ano o dicionário cresce.
A palavra troika é a que mais se ouve por estes dias em Portugal. Por outro lado, a palavra cultura parece estar ameaçada de extinção.
_ Troika soa a qualquer coisa de tortura medieval. A Cultura [ e ponha com C maiúsculo ] na visão de administradores e governantes é um bem supérfluo e perigoso. Logo a abater. Pode derrubar governos e acabar com regimes se bem dirigida. Se existirem métodos de Educação [ pode colocar com E maiúsculo ] sérios e intensos, naturalmente a Cultura se manifesta, porque a própria Educação empurra para ela. Qualquer investimento em Educação vai levar a pessoa naturalmente a procurar conhecimento. Cria um sentimento de curiosidade que é fundamental para se consumir e procurar Cultura. Tem de se estimular a curiosidade e a Educação é o melhor remédio para isso.
Quem são os seus interlocutores em Portugal?
_Falo muito com o Carlos do Carmo e o Paulo de Carvalho, e o Zambujo também.
São conversas preocupadas?
_Sim, mas equilibradas. Vocês têm uma coisa maravilhosa, as tertúlias. Participei de várias. Aqui não temos isso. Daí nascem coisas, nasce a força das ideias. Temos saraus musicais. Há um programa de TV feito pelo Jorge Vercillo. Ele fazia parte de um grupo, de que meu filho e o filho do Gonzaguinha também participavam, chamado Compositores Unidos , o CU. Eles estão voltando, eles falam que o CU está voltando. De repente eu faço o CU lá em Portugal. A dinâmica é de se trocar um papo bom enquanto se brinca fazendo música. Eu faço parte de um grupo chamado GAP, Grupo de Articulação Parlamentar.
A política ativa nunca o tentou?
_Não. Ainda não tenho coragem. Obrigava a apertar mão de gente que você não gosta. Ou sentar e comer na mesma mesa. Se bem que já apertei mão de quem eu não gosto para conseguir coisas para a minha classe.
Sobre estas comemorações do Ano de Portugal e do Brasil, acha que há muito mais divulgação em Portugal das coisas brasileiras do que das portuguesas no Brasil?
_É uma grande verdade lamentável. Primeiro porque o Brasil tem o problema da dimensão, e há uma produção imensa. Tem um mercado que não abraça sequer toda a música brasileira. O mercado é menor do que a nossa música. E de entre todos os países do mundo, talvez excluindo Cuba, tem a música anglo-saxónica tomando uma grande fatia do mercado. Então, para um país que tem um mercado menor do que a música que produz, e que tem por cima um consumo de alto impacte de música sobretudo americana, o que resta não dá espaço para outros países. Depois tem o monopólio da Rede Globo. Setenta por cento da fatia. É estúpido mas é assim mesmo. Como pode uma empresa dizer para o país inteiro o que é bom e o que não é, o que pode tocar ou não? Tem ainda o domínio da música brega que na verdade são três: a baiana, também conhecida por axé, o pagode, que é um desvio do samba e ocupa um nicho bem popular, e a sertaneja. E agora apareceu a música religiosa e evangélica, dos padres, que também quer o seu quinhão.
E onde entram os grandes compositores como o Ivan, o Chico, o Milton, o Gilberto...?
_Eu falo que estamos em processo de extermínio. Que daqui a trinta anos estaremos no submundo, que um acorde de décima primeira é razão para fuzilamento sumário [ risos ].
É muito difícil, senão impossível, um artista português ter aqui o estatuto que o Ivan, um Chico ou um Caetano têm em Portugal?
_A razão é que eles só chegam aqui apresentados por uma elite, logo ficam de imediato presos a esse círculo. É preciso fazer o processo de apresentação dessas figuras para o povão. O sucesso depende da forma como se apresenta. Em 1980 Egberto Gismonti teve uma música numa novela. Vendeu mais de cinquenta mil cópias de uma música até que bem complicada, o Pavão Misterioso , que estava no lixo. O sucesso nasceu de essa música estar associada a um sentimento do momento que a novela explorava muito bem. Dizem que a minha música é sofisticada mas vêm dez mil pessoas ver o show em praça pública. Boto todas as décimas primeiras aumentadas que eu posso e acho que ainda não corro risco de fuzilamento.
Um fenómeno como Amália só se imporia hoje se fosse reverente aos ritmos sertanejos?
_A Amália foi além do fado. O fado fez muito sucesso nos anos 1960 graças ao Francisco José. O último disco dele ficou semanas na frente do Roberto Carlos.
Já que a palavra amor foi das mais faladas, pergunto a terminar o que é para si o amor.
_Você é muito maldoso. O amor é quando você... - [ interrompe e diz ] puta que pariu, que pergunta - é quando você tem luz própria.
UMA BIOGRAFIA CHEIA DE MÚSICA
Filho do engenheiro naval Geraldo Lins, foi muito influenciado por diversos géneros musicais como jazz , bossa-nova e soul e tem como principal instrumento o piano, que toca desde os 18 anos. Formou-se em Engenharia Química no final dos anos 1960, quando iniciou a carreira musical em festivais. A canção O Amor É o Meu País , erroneamente tachada de ufanista, foi classificada em segundo lugar consecutivo no V Festival Internacional da Canção . O primeiro sucesso como compositor foi com Madalena , gravada por Elis Regina. Contratado pela editora Forma /Philips (ex- Polygram até chegar ao nome atual Universal Música) pelo então produtor, o compositor Paulinho Tapajós, grava três discos: Agora , Deixa o Trem Seguir e Quem Sou Eu? Nesse período, compôs músicas com Ronaldo Monteiro de Souza, mas depois teve em Vítor Martins o mais frequente parceiro. A primeira composição entre ambos deu-se quando do lançamento do quarto disco, Modo Livre , pela RCA (depois BMG, hoje Sony Music), gravadora esta que lançaria também o álbum subsequente, Chama Acesa .
Teve grandes sucessos como cantor com Abre Alas , Somos Todos Iguais nesta Noite e Começar de Novo - todas em parceria com Vítor Martins. Começar de Novo foi gravada por Simone no mesmo ano em que foi composta. Na voz de Simone, Começar de Novo foi tocada como tema oficial de abertura de Malu Mulher , tornando-se um grande sucesso da época e um marco na história da MPB.
Lançou inúmeros discos, muitos deles de grande sucesso, tendo trocado de gravadoras por diversas vezes. No decorrer dos anos 1970, a obra ganha grande temática política. A partir da segunda metade dos anos 1980 começa a enfatizar a carreira internacional, principalmente nos EUA onde foi regravado por inúmeros astros da música internacional, como Quincy Jones, George Benson, Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan, Carmen MacRae e Barbra Streisand.
Foi destacado compositor, tendo músicas gravadas por nomes consagrados como Elis Regina ( Cartomante , Madalena , Aos Nossos Filhos ), Simone ( Começar de Novo ), Quarteto em Cy ( Abre Alas ), Gal Costa ( Roda Baiana ), Jane Duboc ( De Alma e Corpo , Aos Nossos Filhos ), Zizi Possi ( Demônio de Guarda ) e Emílio Santiago ( Velas Içadas ). Comandou um programa televisivo na Rede Globo ao lado de Gonzaguinha e Aldir Blanc, o Som Livre Exportação . Foi casado com a cantora e atriz Lucinha Lins, com quem teve um filho, o cantor e ator Cláudio Lins. Torce pelo Fluminense.
Valendo-se ainda do filão engajado da pós-ditadura, cantou, ainda que com uma participação individual diminuta, no coro da versão brasileira de We Are the World , o hit americano que angariou fundos para África ou USA for Africa. O projeto Nordeste Já (1985) abraçou a causa da seca nordestina, unindo 155 vozes com as canções Chega de Mágoa e Seca d"Água . Elogiado pela competência das interpretações individuais, foi no entanto criticado pela incapacidade de harmonizar as vozes e o enquadramento de cada uma delas no coro.
Em 1991, com o amigo e parceiro Vítor Martins, fundou a gravadora Velas . Essa gravadora, totalmente nacional e independente, foi mais uma tentativa de que se desse espaço para cantores brasileiros já conhecidos esquecidos em gravadoras multinacionais e para o surgimento de novos valores no cancioneiro popular. Nomes como Chico César, Lenine, Guinga, tiveram grande apoio dessa gravadora para poder iniciar as carreiras artísticas. Essa gravadora também lançou discos de nomes já consagrados na música, como Zizi Possi (o elogiadíssimo Valsa Brasileira ), Fátima Guedes ( Coração de Louca , um dos pioneiros do selo, além de Grande Tempo , Pra Bom Entendedor... e Muito Intensa), Trabalhos Póstumos de Elis Regina ( Elis Regina no Fino da Bossa , Elis Vive , Elis Regina ao Vivo ) e outros. Em 1995 grava Lembra de Mim , tema da novela História de Amor , de Manoel Carlos, que faz um enorme sucesso.
Ivan Lins é autor da banda sonora dos filmes Dois Córregos e Bens Confiscados , de Carlos Reichenbach, e ganhou o Prémio de Melhor Trilha Sonora no terceiro Festival Luso-Brasileiro de Santa Maria da Feira . É também um dos compositores brasileiros mais gravados no exterior e já foi indicado para os Grammy. Lançou também um tributo ao « Poeta da Vila» , Noel Rosa ( Viva Noel , 1997), que contou com muitas participações especiais e também lançou Um Novo Tempo , somente com canções natalícias.
Cinco anos depois, veio o CD Cantando Histórias , que traz regravações dos antigos sucessos e contou com as participações especiais de Jorge Vercillo, Simone e Zizi Possi. Dois anos depois, veio Acariocando (2006). No fim no ano de 2007, Ivan Lins lançou o CD e DVD Saudades de Casa , com diversas colaborações, gravado em estúdio no Rio de Janeiro.
Ivan Lins por pouco não teve uma versão em inglês de sua canção Novo Tempo incluída no álbum Thriller de Michael Jackson. Durante uma visita ao Brasil em 1980, Quincy Jones ouviu a canção e pediu autorização para escrever uma versão que seria apresentada a Jackson. Lins não lhe deu resposta e Novo Tempo foi excluída da pré-seleção de faixas para o álbum.