Socialista independente, ministro do seu amigo António Guterres nas pastas de Finanças e Educação, é há cerca de três anos o presidente do Tribunal de Contas. A sua nomeação, sob proposta de José Sócrates aceite por Jorge Sampaio, levantou polémica, mas rapidamente este homem rigoroso, considerado em todos os quadrantes da vida política e partidária, impôs o seu trabalho, que até já tem trazido amargos ao Governo PS.Asua nomeação para pre- sidente do Tribunal de Contas (TC), sucedendo a Alfredo de Sousa, foi polémica . O senhor saiu directamente de deputado e vice-presidente da bancada do PS para a tutela de um órgão que, no fundo, se pode dizer que é o fiscal-mor do Governo. Essa situação, na altura, levantou muitas críticas. Vendo hoje, à distância, não acha que havia razão para algumas delas?.Penso que não. De qualquer modo, os factos demonstram que tenho tido uma preocupação muito grande no que se refere, por um lado, à preservação da independência e isenção deste órgão de soberania e, por outro lado, à necessidade de termos critérios de legalidade e de economicidade absolutamente claros e inequívocos..Que balanço faz da sua acção à frente do Tribunal de Contas? Sente-se satisfeito?.Não se trata de uma questão individual, trata-se de um balanço de um órgão e de uma instituição. Sinto-me satisfeito. Como sabem, é um tema que me ocupa há muitos anos, uma vez que em termos académicos foi sempre esta área em que me movi. Fui durante muitos anos assistente e colaborador próximo do meu saudoso amigo professor Sousa Franco. E o balanço que faço é positivo, uma vez que tivemos uma lei nova, a alteração da lei de organização e processo do Tribunal em 2006. Essa lei reforçou os poderes do Tribunal e os resultados foram francamente positivos, designadamente no que se refere ao controlo em relação a áreas que estavam menos sujeitas a essa fiscalização e a essa responsabilização. Refiro- -me, concretamente, a tudo o que diz respeito a empresas municipais, empresas do sector empresarial, os gestores públicos. Não fazia sentido que houvesse uma distinção quanto à responsabilidade financeira para utilização de dinheiros públicos entre os directores-gerais, que integram a administração central e os gestores públicos, que, afinal, movimentam tanto ou mais dinheiros dos contribuintes que aqueles..As contas apresentadas pelas administrações públicas e pelo sector empresarial do Estado são normalmente fiáveis?.Há várias situações e o Tribunal tem-no assinalado. É esse o nosso papel. A Constituição diz que nós devemos julgar as contas e, portanto, não lhes posso dizer em geral nada de muito significativo. Mas posso dizer no que se refere ao Orçamento do Estado, que é algo que nos preocupa porque influencia tudo o mais. No ano 2007, relativamente ao orçamento de 2008 e em resultado da acção do Tribunal, foi possível o cumprimento de 60% das recomendações que fizemos ao Governo, no que se refere à fiabilidade das contas..Houve 40% de recomendações que não foram seguidas. Ainda é significativo?.Estamos a falar de cerca de uma centena de recomendações, designadamente na famigerada questão que nos jornais era designada como desorçamentação, e em que o ministro das Finanças, pessoalmente, assumiu a necessidade de cumprir escrupulosamente as recomendações do Tribunal , para que não haja, para o futuro, qualquer dúvida. E o Tribunal assinalou-o no último parecer, o que é, naturalmente, digno de nota..Como se explica que no último relatório do Tribunal de Contas tenha sido assinalado que continua a subir o montante gasto de forma irregular? Tínhamos 700 milhões em 2006, passámos para 800 milhões em 2007..Nesse aspecto, estamos a falar [de tudo], já não da administração central, mas de todas as administrações?.Local, regional, empresas??.E sector empresarial. Tudo aquilo que corresponde à acção do Tribunal. É natural que esse valor tenha aumentado, porque o universo de entidades que nós temos fiscalizado também aumentou. Há, por isso, uma preocupação muito grande, que não é só uma preocupação do TC de Portugal, é uma preocupação das organizações congéneres da nossa na Europa e no mundo, que é a de melhorar a fiabilidade e melhorar os níveis de responsabilização em relação às contas públicas. Por isso, o que lhe digo é o seguinte: nós fazemos um balanço positivo em relação ao cumprimento das nossas recomendações. Esse balanço positivo deve-se significativamente ao facto de termos passado a sancionar o incumprimento das recomendações ou o incumprimento da colaboração com o Tribunal. Todos os juízes do TC têm poder sancionatório, o que antes não acontecia, e isto significou uma maior eficácia da nossa acção. Devo dizer-lhe que no cumprimento das recomendações, na maior parte delas, passámos de um tempo que era próximo de um ano a um ano e meio para o cumprimento das mesmas para cerca de 15 dias a um mês. Porquê? Porque as sanções podem ser aplicadas imediatamente. Basta remetermos aos destinatários, aos responsáveis, a comunicação de que se não cumprirem num prazo curto ser-lhes-á aplicada a sanção para que esse cumprimento se faça. E aí o nosso balanço é francamente positivo..Qual é o sector que normalmente lhe dá mais problemas? Autarquias, administração central, empresas??.Não podemos dizer que haja sectores que possam aqui ser referidos, pode-se é perguntar quais são as áreas de risco? Elas estão definidas no nosso plano estratégico. Em primeiro lugar, as grandes obras públicas. Em segundo lugar, as parcerias público-privadas. Em terceiro lugar, a Segurança Social, em virtude da necessidade da sustentabilidade desse sistema para garantir, no longo prazo, que todos os cidadãos possam, naturalmente, beneficiar do que está previsto na lei. Depois, o Quadro de Referência Estratégico Nacional, o QREN, portanto, a aplicação dos fundos comunitários em Portugal. E o endividamento do sector público administrativo. .E as autarquias? Não me falou nas autarquias..As autarquias aqui estão, designadamente no que se refere ao endividamento do sector público administrativo. Nesse aspecto, a lei de 2006 previu que todas as entidades que estão na esfera das autarquias passaram a ser sujeitas não apenas à jurisdição genérica mas também à jurisdição de visto, à jurisdição no que se refere à fiscalização prévia. E devo dizer-lhe que nós estamos a fazer um trabalho que tem sido articulado com o National Audit Office, que é o nosso órgão congénere do Reino Unido, no sentido de saber qual a eficiência da nossa acção. Isto é, quanto é que em cada ano os contribuintes poupam pelo facto de haver uma fiscalização. Isto ocorre relativamente aos três níveis fundamentais da administração, central, regional e local. Posso dizer-lhe, em primeira mão, que no ano de 2007, em termos apenas das nossas medidas directas, tivemos uma poupança de 200 milhões de euros, o que é um valor significativo. .É quase uma Expo?.200 milhões de euros é, de facto, um valor significativo no contexto das despesas públicas e, de algum modo, estamos a falar apenas de um ano e apenas das medidas directas, o que naturalmente significa que, para responder à sua pergunta "e o poder local?", pois bem, o poder local tem aqui um papel importante até pelo seu número e pelo conjunto de realidades que abrange..Deixe-me retirá-lo desta parte técnica. Acha que a sociedade civil acredita hoje mais na transparência das contas do Estado do que há três anos, quando tomou posse do cargo?.Tem razão para isso. Não apenas em virtude daquilo que tem sido feito no TC. Posso dizer-lhe no que se refere àquilo que nos chega directamente dos cidadãos, quer no que se refere a denúncias quer no que se refere a apreciações, que há uma maior consciência e uma maior preocupação dos cidadãos. E até um melhor conhecimento em relação ao que é o Tribunal de Contas. Mas também acrescento que há um dado extraordinariamente importante: é o aperfeiçoamento que foi feito no que se refere aos métodos de contabilização das finanças públicas. O facto de hoje haver um sistema de reporte a Bruxelas que envolve o Instituto Nacional de Estatística, o Banco de Portugal e o Ministério das Finanças, que é reconhecido pela própria Comissão Europeia - e que nós, Tribunal, também entendemos que é um sistema correcto. .Mas não ajuda muito mudar o Governo e descobrirmos todos que, afinal, o défice é maior do que estava apresentado ou do que estava previsto? Isso já aconteceu. .Sim, com certeza. Isso é negativo. Estamos a trabalhar todos para que isso não volte a acontecer. Porquê? Porque os cidadãos têm direito a saber exactamente qual a situação das finanças e, simultaneamente, qual o modo como o seu dinheiro é aplicado. De novo, não estamos sós. Várias vezes tenho assinalado as experiências dos países nórdicos e do Canadá, onde tem sido possível, através de um aperfeiçoamento deste sistema, reduzir não apenas a dívida pública mas também a despesa..A Saúde consome muito dinheiro dos impostos dos portugueses. Em relação ao Serviço Nacional de Saúde (SNS) , o anterior ministro Correia de Campos concordou com as recomendações que o TC tinha feito mas depois, de forma muito clara, deixou entender que se lá tivesse continuado, não iria mudar a forma de apresentação de contas. Isto transporta-nos para uma questão muito simples: que valor jurídico têm, afinal, as recomendações do TC? .As recomendações do TC têm o valor jurídico que lhes é atribuído pela própria lei, o seu incumprimento dá lugar a sanções, mas sobretudo a nossa preocupação não tem a ver com o sancionamento. A nossa preocupação tem a ver com dois aspectos: primeiro, demonstrar aos cidadãos que o seu dinheiro é melhor utilizado. Segundo, garantir que a administração vai funcionar melhor. E funcionar melhor ao serviço das pessoas. Esse aspecto é absolutamente fundamental. Costumo dizer há muitos anos aos meus alunos de finanças públicas que, no caso do SNS, o orçamento está na ponta da caneta do médico, uma vez que o mesmo doente pode envolver um encargo para o Estado de x ou de x vezes n, uma vez que é a menos previsível das despesas. .Os partidos políticos da oposição ainda recentemente acusavam o Governo de estar a esconder despesas do SNS, designadamente com o pessoal dos hospitais-empresas. Há aí um controlo especial do Tribunal de Contas?.Certamente que sim. Uma das grandes vantagens da nova lei de 2006 é que não há biombos que possam esconder o que quer que seja. Hoje podemos responsabilizar todos, não apenas os hospitais-empresas, que esses já estavam sob a nossa jurisdição em termos de auditoria e passaram a estar em termos de fiscalização prévia e concomitante. Mas agora podemos ir até aos privados que recebam subsídios e que os utilizem indevidamente. .Tenho curiosidade quanto ao montante das condenações e das multas. Tem um apanhado sobre isso? Do último ano, por exemplo?.Temos, temos. Há aqui dois tipos de questões. Há pouco falei-lhe de um número redondo, 200 milhões de euros. Nesse aspecto estamos a falar de recusas de visto, de dinheiro que não se gastou. Relativamente às condenações, o balanço de 2007 é um balanço positivo, ainda que seja o primeiro ano do novo paradigma. Tivemos, de facto, mais cobranças de multas e de reposições do que em anos anteriores por uma razão simples: é que passámos, de facto, a ter um novo regime que passou a abranger mais gente, mais entidades. Vou dar-lhe os números: em primeiro lugar, em 2007 , conseguiu-se uma coisa, e devo elogiar o Ministério Público por isso, que foi a cobrança voluntária de sanções. Ou seja, há entidades que, sabendo que vão ser condenadas, antes que o sejam, fazem, como a lei o prevê, o seu pagamento voluntário. Estamos a falar neste particular de cerca de 70 mil euros. E relativamente às condenações com reposição e multas em resultado de decisões da secção de julgamento estamos a falar de cerca de 250 mil euros. E relativamente a estes números que lhes referi estamos a falar de cerca de 50 responsáveis, o que é importante sobretudo se compararmos com outras situações e outros tribunais de contas. Nesse aspecto, há oito dias, em Paris, o senhor primeiro presidente do Tribunal de Contas francês, Philippe Séguin, pessoa bem conhecida, na sua alocução numa conferência sobre a fiscalização e o controlo, disse: "Neste momento, na Europa, ponham os olhos em Portugal, porque é o Tribunal que tem um regime jurídico que lhe permite uma acção com maior eficácia." Por duas razões: em primeiro lugar, tem mecanismos dissuasores, uma vez que todos os juízes podem aplicar sanções e isto permite, voluntariamente, logo o cumprimento das obrigações financeiras; e, simultaneamente, é uma instituição que está a afirmar-se como controladora efectiva da despesa pública. .As grandes obras públicas, que referia há pouco, são a primeira das prioridades do TC quanto à fiscalização, entraram agora no debate político com a eleição da nova líder do PSD, Manuela Ferreira Leite. O ano passado, o senhor já tinha dito, na Universidade do Porto, que a construção do novo aeroporto e o TGV iriam merecer uma fiscalização rigorosa. Mantém-se essa intenção?.Com certeza que sim. Seria estranho, aliás, que uma instituição como o Tribunal não se preocupasse com a utilização de montantes e opções tão significativas. Há que distinguir, porém, algo de fundamental: é que a partir do princípio da separação de poderes, o Tribunal o que deve é verificar a legalidade e a economicidade relativamente a estas medidas e não entrar propriamente na discussão política. Aí, o Parlamento, o Governo e as instituições funcionam. O Tribunal vai é verificar se essas decisões políticas estão a ser aplicadas em defesa dos contribuintes. .E o senhor, pessoalmente, com a sua experiência política, está convencido da necessidade destas grandes obras? .Eu não lhe respondo directamente, mas indirectamente lhe respondo. Digo que uma das críticas que tenho feito em relação ao curso dos acontecimentos na Europa é a falta de coordenação em relação às políticas de investimento. Falta de coordenação no que se refere ao governo económico europeu. E, por isso, hoje as políticas de investimento e de emprego são absolutamente fundamentais. E mais não posso dizer. .Quando se fala em acompanhar com rigor essas grandes obras, significa a criação de equipas especiais?.Pode ser. Nestas grandes obras, vamos intervir a dois níveis. Em primeiro lugar, relativamente à fiscalização prévia e concomitante. E aqui nós hoje temos equipas muito flexíveis que vão ao terreno verificar como é que as coisas estão a correr, porque a nossa lei hoje acabou com o