"Cresci vendo a destruição de Angola"

Leila Lopes é angolana e ganhou o título de mais bonita do mundo no Brasil... Uma bela coincidência para a lusofonia. Entrevista com a miss que diz ter aprendeu muito com a guerra no seu país.
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Uma Miss Angola ser eleita como a mais bela do mundo no Brasil tem o seu quê de coincidência e é um motivo para qualquer falante de português ficar, pelo menos, curioso. Embora esse facto não tenha feito correr os rios de tinta que merecia nos três pólos deste triângulo lusófono, esta foi a edição do Miss Universo em que a lusofonia ficou melhor classificada: além da coroada angolana Leila Lopes, a brasileira Priscila Machado ficou em segundo lugar e a portuguesa Laura Gonçalves esteve entre as dez primeiras, onde figurava também a Miss Venezuela, a luso-descendente Vanessa Gonçalves.

Para Angola esta foi a primeira vitória, e condensou nela muitos significados: o facto de ser uma angolana orgulhosa, o facto de ser negra, o facto de ser uma africana, o facto de ser lusófona... Todas essas características vão andar atreladas a Leila Lopes quando ela, representando o papel que agora lhe cabe, andar pelo mundo a mostrar-se. E o périplo já começou.

Mal tinha deixado o Brasil e já tinha compromissos agendados em Singapura e na Malásia. Entre uma viagem e outra, atendia telefonemas de jornalistas de todo o mundo. Uma entrevista a cada trinta minutos. Uma vida nova mesmo para Leila que, aos 25 anos, já deixara Angola para ir estudar Gestão em Inglaterra. E que, mesmo em Angola, já se mudara da sua natural Benguela para Luanda, no meio da conturbada adolescência.

Leila diz que nunca quis ser modelo. «É um mundo muito competitivo e não combinaria com o estilo de vida calmo de que gosto.» Antes do Miss Universo, queria retomar os estudos assim que entregasse a faixa à próxima Miss Angola, em Dezembro. Agora, prefere não falar de futuro. «Estou focada só no que vou fazer este ano.» Para a jovem angolana, o título representa mais do que fama, presentes, contratos publicitários e um ano a viver em Nova Iorque: a tímida rapariga de Benguela sabe que precisa de repensar o seu caminho.

Da guerra para a fama

A nova embaixadora da beleza nasceu em 26 de Fevereiro de 1986, numa família de classe média. Os seus pais - um comerciante e uma dona de casa - estão separados desde que ela era adolescente. Ao todo, Leila tem seis irmãos: quatro por parte do pai e dois por parte da mãe. É a mais velha.

«Fui uma criança com a infância que todos queriam ter, nunca me faltou nada.» A infância que Leila chama memorável, porém, coincide no tempo com os duros anos da guerra civil em Angola.

Leila diz não ter sofrido directamente a violência, já que os conflitos do interior não eram tão sentidos na capital da província, onde vivia. «A guerra afectou a minha vida porque cresci vendo muita destruição. Tinha colegas na escola que eram órfãos de pai e mãe», conta. A experiência deixou as suas lições. «Aprendi que, independentemente dos problemas, temos de ser fortes, encarar a vida e correr atrás dos nossos objectivos.»

Um dos seus primeiros desafios aconteceu aos 14 anos. Após a separação dos pais, a mãe de Leila decidiu ir viver para Luanda com os filhos. «Foi uma mudança que, na vida de um adolescente, chega a ser trágica. Tive de deixar os amigos, trocar de escola», relata. «Cheguei a Luanda com muito medo.» Os conflitos que moldaram o modo como Leila encara os seus problemas também estiveram por detrás daquilo que a miss considera «o maior objectivo da sua vida»: estudar no estrangeiro.

«Os trinta anos em guerra destruíram o país por completo e o ensino estava muito debilitado. Eu sonhava com uma formação melhor fora do país.» A oportunidade surgiu quando Leila já estava no meio do curso de Engenharia numa faculdade angolana. Participou num concurso público, ganhou uma bolsa de estudo e largou tudo para estudar Gestão em Inglaterra.

«Muita gente disse que eu ia atrasar a minha vida, que já estava quase formada, mas fazê-lo fora era o meu sonho», reforça. E foi assim que Leila trocou «um país que praticamente não sabe o que é Inverno por um Verão que mais parece Inverno».

Mais do que o clima, foi a dificuldade de adaptação com a língua que quase deitou tudo a perder. «A minha gramática era boa, mas o speaking era muito mau», diz Leila. Nos primeiros meses, enfrentou dificuldades não apenas na escola, mas também para realizar as tarefas comuns do dia-a-dia.

A culpa, mais uma vez, diz, foi da timidez. «Pus na cabeça que esse era mais um desafio que eu teria de ultrapassar.» Foi nesse contexto que começaram a surgir os convites de agências de modelos e de organizadores de concursos de beleza. Leila demorou a ceder. Sempre gostou de fazer as coisas à sua maneira e de reflectir antes de tomar uma decisão.

«Eu não me via como imaginava que uma miss tinha de ser. Aos poucos, pus na cabeça que podia ser essa pessoa.» Foram muitos «nãos» às investidas, até ao ano passado. Depois de Leila ter resolvido dizer sim, em poucos meses conquistou o título de mais bela entre as angolanas no Reino Unido e, em seguida, o Miss Angola.

Em vez da consagração, a eleição fez surgirem denúncias de uma suposta fraude na candidatura de Leila ao Miss Angola Reino Unido. Segundo as acusações, ela não estava radicada no país quando disputou o concurso, e os comprovativos de matrícula na universidade terão sido falsificados.

«Não faço a mínima ideia de onde surgiu essa história», declara. O assunto voltou à tona com o título de Miss Universo, e vários tablóides chegaram a publicar que poderia perder o título devido à irregularidade.

O posto, porém, está garantido, diz. «Eu tenho todos os documentos para provar que participei no concurso de uma maneira correcta. A organização ficou satisfeita com o que apresentei.»

Miss Sunshine

A despretensão com que Leila Lopes conta a sua trajectória até ao título contrasta com a imagem que os concursos de beleza modernos nos evoca. É claro que o investimento na preparação de Leila foi alto, mas o seu maior trunfo foi manter a naturalidade. A angolana caminhava na passerelle do concurso com a leveza de quem saiu de casa para dar uma volta na rua. Mais do que impressionar, esta postura gerou até desconfiança.

O incómodo ficou mesmo evidente numa entrevista que a concorrente francesa ao título, Laury Thilleman, deu ao portal premiere.fr após o resultado, que descreveu Leila Lopes como alguém «sempre de calças de ganga e sem maquilhagem».

Para a Miss França 2011, a vitória da angolana foi uma «surpresa» para todas as concorrentes. «Muitas meninas fizeram um grande esforço que não foi recompensado.» Leila responde a essas e outras críticas sem alterar em nada o seu tom de voz. «Eu gosto de ser o mais natural possível. Para mim, a beleza das coisas está na naturalidade.» Nos dias que antecederam o concurso, Leila optava pela maquilhagem básica nos compromissos das candidatas: base, blush, máscara «e mais nada».

Quanto à forma de se vestir, a coerência era a sua principal aliada. «Se ia ficar no hotel, usava calças de ganga. Para ir a um evento à noite, escolhia um vestido bonito», diz. Não passou despercebido que, enquanto algumas misses nunca abriam mão de mostrar as pernas, Leila, simplesmente, vestia calças se estivesse frio. Isso nada tem de desleixo, garante. Exercita o corpo, cuida da hidratação da pele e dos cabelos.

Diz que nunca fez uma cirurgia plástica, mas também não critica quem adere às intervenções estéticas para participar nos concursos. «Para mim, as pessoas fazem o que é melhor para elas.» Nela própria não quer mudar nada, como ficou bem claro na resposta que deu ao júri quando já estava entre as cinco finalistas do Miss Universo 2011. «Graças a Deus, estou muito satisfeita com a forma com que Deus me fez. Gosto de mim assim, não mudaria absolutamente nada. Considero-me uma menina bonita por dentro, tenho os meus princípios e os meus valores.»

Ferramenta do bem

A relação não obsessiva com o corpo e com a beleza tem as suas raízes também no significado que Leila dá ao título que ganhou. «A ideia que sempre tive de miss é que não é apenas uma menina bonita, que vai desfilar uma coroa. É uma pessoa que vai lidar com o povo e ser um exemplo para a população.» No caso dela, jovem de Benguela, isso significa dedicar-se a trabalhos com crianças desfavorecidas e na luta contra o VIH/sida no seu país. Visita orfanatos e hospitais e marca presença nas acções e eventos organizados pelo Comité Miss Angola para arrecadar fundos para instituições sociais.

«Quando insistiam para eu me candidatar ao Miss Angola UK, eu perguntava: que vantagem vou ter com isso?», conta. Foi quando lhe disseram que, se ganhasse o concurso, ela poderia começar a sonhar em disputar o Miss Universo. «Veio logo à minha mente a imagem da princesa Diana e da Angelina Jolie. Na hora pensei que, como Miss Universo, poderia fazer muito pelos povos do mundo inteiro.»

Se o compromisso com causas humanitárias nunca foi novidade entre as celebridades, também não é consensual. Não são poucos os que consideram muitas dessas bandeiras sociais instrumentos de marketing pessoal. Mas Leila, ao contrário de algumas estrelas, chama a atenção pela familiaridade com que fala dos problemas do seu país. Menciona com precisão dados sobre o problema da sida, numa prova de que não anda apenas a sorrir ao lado de criancinhas.

«Em Angola, a maioria das vítimas são mulheres, que têm gerado vidas já contaminadas», explica. E considera prioritário garantir o acesso dessas angolanas - muitas analfabetas - à informação. É verdade: em 2009, segundo dados da UNICEF, duzentas mil pessoas viviam com o vírus da sida em Angola. Dessas, 110 mil eram mulheres em idade fértil. «É preciso explicar que já é possível gerar vidas sem a infecção», insiste Leila. Além da prevenção da transmissão do vírus no parto, ela defende a promoção do uso dos preservativos e a necessidade de campanhas contra o preconceito.

Sendo agora a mais bela do mundo, a angolana pretende expandir essa actuação. «Já conversei com o comité do Miss Universo e falei sobre os meus projectos», conta. Além da missão de tentar elevar a auto-estima do seu povo, a Miss Angola quer usar a sua recém-adquirida notoriedade para ajudar os africanos.

Beleza negra

As estatísticas do Miss Universo mostram que o mundo ainda tem um longo caminho a percorrer até à igualdade racial. Conhecida no seu país como «Diamante Negro», Leila Lopes é apenas a quarta africana a levar o título de Miss Universo na fase moderna do concurso, iniciada em 1952.

Das suas três antecessoras, duas eram brancas: a sul-africana Margareth Gardiner, coroada em 1978, e Michelle McLean, da Namíbia, que venceu em 1992. Em 1999, Mpule Kwelagobe, do Botswana, consagrou-se como a primeira africana negra a conquistar o título. Antes dela, só duas negras tinham sido Miss Universo, ambas representantes de Tobago e Trinidad: Janelle Commissiong (1977) e Wendy Fitzwilliam (1998).

Após ter enfrentado e vencido o preconceito, Leila foi alvo de ataques xenófobos. A sua coroação não passou despercebida em comunidades neonazis da internet. Para esses grupos, Leila deu o recado na sua primeira entrevista após o título. Disse, com muita simplicidade, que o preconceito não a atinge e que os racistas deveriam procurar ajuda, «porque não é normal uma pessoa pensar assim no século XXI».

Beleza lusófona

Nunca uma final do Miss Universo 2011 consagrou tanto o português como a deste ano. Ao anunciarem as 16 finalistas, a língua de Camões tinha 25 por cento de hipóteses de levar o título.

Além da angolana Leila Lopes, a portuguesa Laura Gonçalves e a brasileira Priscila Machado estavam na disputa. A equipa teve ainda o reforço da Miss Venezuela, a luso-descendente Vanessa Gonçalves.

O pai de Vanessa Gonçalves é natural da Choupana, no Funchal. A sua mãe, embora nascida na Venezuela, é filha de dois portugueses de Tábua, distrito de Coimbra.

Embora a venezuelana não se tenha classificado quando as finalistas foram reduzidas para dez, as hipóteses lusófonas continuavam altas: as outras três candidatas continuavam na disputa.

Laura Gonçalves ficou para a história como a mais bem colocada entre as portuguesas que participaram no Miss Universo, mas não conseguiu espaço no Top 5. Ainda assim, a etapa das perguntas do júri teve duas respostas em português.

Priscila Machado ficou com o terceiro lugar. O anúncio da colocação transferiu imediatamente o seu apoio e o da plateia brasileira presente para a candidata angolana, que disputou o título com a representante da Ucrânia, Olesya Stefanko.

A vitória de Leila Lopes garantiu que o «muito obrigada» fosse em português.

Duas polegadas

A cada edição do Miss Universo, o Brasil revira os seus baús e relembra uma história que nunca superou: o segundo lugar da baiana Martha Rocha logo na primeira participação brasileira no concurso, em 1954.

Unanimidade até nos Estados Unidos, Maria Martha Hacker Rocha perdeu a coroa de Miss Universo para a norte-americana Miriam Stevenson, numa das finais mais disputadas da história.

As duas chegaram à final com a mesma pontuação, e o júri precisou recorrer a um critério de desempate para escolher a vencedora do título daquele ano.

Decidiu-se que venceria a melhor silhueta em fato de banho - a marca americana Catalina Swimwear já era, naquela época, patrocinadora do concurso. A fita métrica acabou com o sonho da brasileira.

Martha Rocha tinha 36 polegadas de busto, 23 de cintura e 38 de quadril (em centímetros, seriam 91, 58 e 96, aproximadamente). Já a candidata norte-americana apresentou 24 polegadas na cintura e os mesmos 36 no busto e no quadril.

Exibidas num tempo em que não se recorria às lipoaspirações, as medidas de Martha são de causar inveja até hoje. Na época, no entanto, o desequilíbrio entre sua medida de peito e de ancas acabou por lhe tirar o título.

É o que aponta a edição de 24 de Julho de 1954 do jornal The Miami News. Anonimamente, um membro do júri revelou: «O rosto da Miss Brasil era o mais lindo do concurso, mas nós não pudemos ignorar aquelas ancas.» Nem o americano que escreveu a reportagem conseguiu esconder a sua frustração com o resultado. «Na verdade, para os jornalistas que acompanhavam o evento, as ancas de Martha Rocha eram um trunfo.» A brasileira era a favorita.

Não ter vencido não foi o fim da carreira da modelo. Pelo contrário: Martha Rocha voltou ao Brasil e foi recebida como uma campeã. Conseguiu contratos e fama, não só na sua terra natal, mas também nos Estados Unidos.

O Brasil elegeu duas Miss Universo depois deste episódio: Ieda Maria Vargas, em 1963, e Martha Vasconcellos, em 1968. Nenhuma delas, porém, marcou tanto o país como a jovem traída pelas duas polegadas.

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