E a noite inventou-se assim

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Foi antes da sida. Foi antes dos 10 anos de Cavaco. Foi logo a seguir à revolução. Foi há 25 anos. Difícil lembrar esse país ainda a sépia que entrou nos anos 80 com a morte de um primeiro-ministro num acidente de avião. Esse país que via o Festival da Canção e a Visita de Cornélia e a Gabriela Cravo e Canela e o Passeio dos Alegres na TV pública (não havia mais nenhuma), se vestia de igual e não viajava, o país conformista, bafiento e complexado onde as noites pertenciam ao bas fond e os discos chegavam a conta-gotas, o país onde um concerto era um acontecimento extraordinário, controlado por polícias que ao mínimo pretexto desembainhavam o cassetete, sau- dosos do rigor mortis que dava pelo nome de "lei e ordem", o país em que, como diz o realizador Edgar Pêra, hoje com 44 anos, "o fascismo não acabou com o 25 de Abril, levou muito tempo a ir embora".

Um país onde esta frase - "a música foi o meu marxismo" - pertence e faz sentido. O dito é de João Menezes Ferreira, musicólogo, advogado e ex-deputado do PS que em 1975 se mudou para o lisboeta Bairro Alto, então ainda reduto de marginais, bordéis de cinco tostões e casas de fado, e assistiu à ascensão e queda daquilo que a esta distância se pode chamar um movimento.

Um movimento feito de apropriações estéticas da realidade e da afirmação irredutível do corpo e do olhar, que incensava artistas, poetas e bandas pop, quanto mais malditos e trágicos e inúteis melhor, como à volta se aclamavam partidos e famílias políticas, um movimento que tinha da liberdade uma leitura libertária, espampanante, iconoclasta, avessa a filiações. Que, na confluência de outras marchas rebeldes (os existencialistas parisienses dos anos 50 ou os wild boys motards americanos da mesma época), decretava o negro absoluto da pose, das roupas, de uma visão do mundo em que alegria, tragédia e energia se entrelaçavam e fundiam como numa canção dos Joy Division, e estabelecia a noite como o seu domínio.

nova onda. "A música era a inspiração do modo de vida, das preocupações, do modo de vestir, de tudo. Foi a minha aprendizagem da maneira de pensar. Veio mais daí que dos livros que se liam." É outra vez Menezes Ferreira, agora com 55 anos, à época com um programa semanal no Rádio Clube (A Idade do Rock) em que, diz, "fazia um misto de abordagem sociológica e divulgação musical, com uma ligação às tribos de jovens que se formavam devido a empatias musicais". Com viagens frequentes à Europa por via das negociações para a adesão de Portugal à então Comunidade Económica Europeia, o advogado assistia "lá fora" a concertos de bandas que nunca puseram os pés em Portugal (chegou a ver os Joy Division, pouco antes do suicídio do vocalista, Ian Curtis, em Maio de 1980) e trazia os discos que no país eram quase impossíveis de encontrar - então, cá, era preciso encomendar aquilo a que se dava o nome de "discos importados", coisa só possível em duas ou três lojas.

Sem MTV nem programas de videoclips, era de estrangeirados como ele, que fundou a revista Música&Som, e como Miguel Esteves Cardoso (que escrevia de Inglaterra para o semanário de música e espectáculos Sete a coluna Bolas para o Pinhal, sobre a cena musical anglo-saxónica), que chega a Portugal a guarda avançada daquilo a que se chamou new wave (nova onda), a música e a atitude que se seguiu à explosão e à ruptura do movimento punk. António Sérgio, o autor do programa Som da Frente, na Rádio Comercial, erguia madrugada dentro o estandarte de cada nova canção, cada nova voz, cada nova banda. Foi no Som da Frente que muitos ouviram pela primeira vez os New Order (e, claro, os Joy Division), os Cure e os Echo and the Bunnymen ou, para falar de uma banda que toda a gente veio depois a conhecer, os U2. Foi no Som da Frente que muitos descobriram um universo paralelo, uma comunidade de afinidades electivas.

à procura da tribo. É o caso de Maria Silva, agora jornalista, 41 anos. "Quando comecei a ouvir o António Sérgio percebi que era aquela a minha 'onda', era ali que me revia. Nenhuma das pessoas que conhecia - vivia numa vila, perto de Lisboa, onde estava tudo ainda na cena Pink Floyd, Queen, coisas que odiava - sabia do que eu estava a falar. Havia uma solidão, mas também a certeza de que, algures, havia outros como eu. E que era só uma questão de tempo até os encontrar. Lembro-me de ler, no Expresso, a primeira reportagem do Alexandre Melo sobre o Bairro Alto e perceber que era aquilo que eu queria." A oportunidade surgiu com os concertos de Vilar de Mouros, em 1982. "Quando vi o programa, soube que tinha de ir Stranglers, Echo, Durruti Column, U2. Fiquei com muita pena de não irem os New Order. Mas mesmo assim era um cartaz fabuloso. Comprei os bilhetes, e custaram o equivalente a 10 euros, uma fortuna. E cheguei ao pé dos meus pais - tinha 18 anos - e disse: 'Eu vou. Portanto é melhor deixarem-me ir.' Olharam para mim com uma cara muito esquisita e disseram que sim. Foi o meu momento de autodeterminação."

Décadas depois, quando é normal os pais deixarem sair à noite os filhos de 14 anos e levarem-nos aos concertos, o diálogo tem um sabor quase irreal. Como esta peregrinação que Maria fez, Portugal acima, nos ronceiros comboios da CP, em busca da sua tribo. "Na altura, eu vestia-me numa onda militar, com botas de montar, uniformes desenhados por mim, e cabelo em pé. Era um cruzamento do look neo-romântico com filmes da segunda guerra mundial, a onda punk e a de Manchester, de onde vinham as minhas bandas favoritas. Escusado dizer que não conhecia ninguém que se vestisse assim - para além dos tipos das bandas, que via nas capas dos discos, nas fotos dos jornais, num ou outro clip que passava na TV. O meu pai, quando me via na rua, não me falava, de vergonha." Ri. "Dar nas vistas não era para mim uma dificuldade, e reconhecer outros como eu não era difícil. Mal cheguei a Vilar de Mouros, vi-os. Eram umas dezenas no meio da multidão." Os "seus" reuniam- -se, antes e depois dos concertos, num barracão que fazia as vezes de bar e discoteca e que o gerente da lisboeta RockHouse, do Bairro Alto, resolvera relocalizar, para a duração do evento, nas cercanias do recinto dos concertos. E foi assim, no cume do Minho, que Maria travou conhecimento com a cosmopolita cena do Bairro Alto. "Quando voltei para baixo, comecei a frequentar o RockHouse, e depois o Frágile o Trumps (na Rua da Imprensa Nacional)." Aquilo que mais a impressionou foi a extraordinária semelhança de pensamentos, atitudes e poses entre gente de proveniências tão diversas. "Tínhamos um vínculo muito forte, que começava na música - selavam-se amizades por causa de uma canção - e continuava na maneira da vestir e no sentimento e no orgulho que tínhamos de ser únicos, e de estarmos isolados."

O isolamento era mais que um sentimento encenava-se, dia a dia, no escândalo dos passantes, nos dichotes e insultos, que chegaram, por vezes, à agressão. E que, por encanto, se calavam às portas do Bairro Alto, zona demarcada onde as cristas punk, erguidas a sabão, açúcar ou laca, e o negro total das roupagens e as suas formas inusitadas (ombros com chumaços gigantes, calças muito largas e curtas, botas da tropa, saltos agulha anos cinquenta, cinturas muito marcadas, minis-micro, cabedais, meias de rede rasgadas) não suscitavam mais que bons dias ou a pura e simples indiferença.

Um mistério que persiste ainda na memória de quem o viveu, como a escritora e crítica literária Helena Vasconcelos, então a viver com o artista plástico Julião Sarmento no Chiado e uma das mais assíduas e notórias frequentadoras do bar Frágil (inaugurado em Junho de 1982). "Eu saía sozinha, todas as noites... E nunca senti perigo. Mesmo nas figuras inacreditáveis em que me passeava. A partir do momento em que entravas ali estavas à vontade. Talvez porque as pessoas do Bairro Alto, por serem outcasts, não nos viam como fenómenos, bichos estranhos. Era o melhor do português, o que está habituado de há séculos e séculos a conviver com o que vem de fora."

Também Anamar (45 anos), que, a cursar teatro no Conservatório, foi convidada por Manuel Reis, o dono doFrágil, para fazer a porta, se maravilha com a simbiose operada entre a gente do bairro pobre, marginal, e os "fragilianos". Um convívio que se estreitava nas tascas tradicionais - o Arroz Doce, em frente ao Frágil (Rua da Atalaia), e a "do Sr. António" (A Flor da Branca, na Rua Diário de Notícias), frente ao RockHouse, em que "as nossas meias de rede e as nossas minis se cruzavam com os bêbados do bairro". Sem um confronto para a história, que guarda "a efervescência que contrastava com o fechamento da sociedade".

Observadora por natureza e por função, Anamar riscava a fronteira entre o fora e o dentro, o eles e o nós. "Novos ricos estavam banidos, aquele género que sai à noite para 'sacar umas meninas' também. Havia um intercâmbio corporal muito intenso, mas o que recordo mais é a sedução. E um ambiente intimista, que, apesar da catarse, era muito respeitador. As mulheres, fosse o que fosse que traziam vestido, e nós vestíamo-nos de formas incríveis, estavam sempre à vontade." Outra coisa curiosa, lembra, é a pouca importância das drogas. "Isso não havia muito, até pela falta de dinheiro."

Rui Reininho, o portuense líder dos GNR, na altura em Lisboa para frequentar o curso de cinema do Conservatório, concorda em absoluto. "Dinheiro não havia, e a graça seria um pouco essa. Não queria fazer juízos de valor, mas agora deve ser mais difícil sobreviver nos antros sem dinheiro." Quem não tinha onde ficar, conta, "acampava nas casas dos que viviam em Lisboa." E a maneira como as pessoas vestiam era importante, não pelas marcas - coisa que não existia - mas pela capacidade de inventar, de reciclar, de inventar poses. "Havia muita gente que fazia a roupinha, outros iam às casas de segunda mão, havia muito aquela onda retro, dos stocks americanos, daquelas roupas fantásticas que apareciam a dez tostões. Era uma aristocracia muito pobre?"

"Faz-te por ti mesmo." Edgar Pêra recupera o slogan e esse sentimento de "de repente, estar no mapa." No mapa do mundo, e a viver o mesmo momento, com a mesma banda sonora, a pensar da mesma forma. Conta que foi com os amigos Pedro Ayres Magalhães e Rui Pregal da Cunha, então dos Heróis do Mar, passar o fim de ano a Londres, de 81 para 82. "E estávamos em consonância." Não destoavam, não tiveram aquele sentimento provinciano, do portuguesinho de chapéu na mão. "Em alguns casos até éramos nós que intimidávamos. Porque não tínhamos vergonha de nada, andávamos à procura sem preconceitos."

Uma demanda sem freios que, entre as cerca de 3000 pessoas que faziam a comunidade do Bairro Alto e nas noites de festa transbordavam do Frágil para a esquina da Rua da Atalaia com a Travessa da Queimada, encontrava Anamar a escrever letras de canções sentada num banco junto à pista de dança, enquanto Al Berto escrevia um poema, o artista plástico Pedro Cabrita Reis combinava com Manuel Reis a nova decoração do bar, o crítico e jornalista Alexandre Melo discutia as vanguardas e outros as personas que cada um criara para aquele dia, o corte de um vestido ou de um penteado. Dali veio grande parte do establishment cultural de hoje - enquanto outros, diz Reininho, arderam como fósforos. "Há muitas vítimas da noite, deus nosso senhor levou muitos." Considerando-se "um fósforo de combustão lenta, dos de lareira", a voz do GNR arrepia-se com as noites de agora. "É horrível sair e não conhecer ninguém."

O tempo e a democracia percorreram o caminho aberto pela vanguarda. "A cena nocturna lisboeta é uma batalha que se ganhou, que ganhámos", conclui Pêra. "Ou se perdeu. Massificou-se, claro. Mas o inferno é muitas vezes o que queremos." Quase sempre?

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