Davos em tempos de grandes incertezas

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Davos 2024 decorreu esta semana. Como de costume, a reunião trouxe à estância de esqui suíça milhares de participantes, entre políticos, empresários, académicos, jornalistas, dirigentes de instituições multilaterais, ativistas da sociedade civil e lobistas. O presidente da Ucrânia esteve presente pela primeira vez, bem como o novo primeiro-ministro da China, Li Qiang, afilhado político de Xi Jinping. Ursula von der Leyen e António Guterres também voltaram a marcar presença. Por razões óbvias, os dirigentes russos não foram convidados desta vez.

Participar na reunião de Davos significa reconhecimento de que se tem poder. Não é, contrariamente ao que muitos pensam, uma mera tertúlia de bilionários. Vários sê-lo-ão, incluindo líderes de países corruptos. Mas também há muitos bilionários que acham que não vale a pena voar até à pequena localidade alpina em pleno inverno. Já têm um nível de influência global indiscutível, não precisam da validação de Davos ou de ouvir palestras, tantas vezes maçadoras, dos oradores convidados, nem tampouco das redes de contactos que são a principal razão de ser desta iniciativa anual. Na verdade, Davos é sobretudo uma oportunidade para fazer ou reforçar os contactos entre gente poderosa, para além de uma confirmação de que se pertence ao clube. As sessões abertas são muitas vezes uma repetição do que já foi dito noutros eventos ou propagandeado na comunicação social influente. Os assuntos mais delicados são discutidos em encontros informais, a nível bilateral ou de grupos muito exclusivos.

Este ano a atmosfera esteve cinzenta. De um lado, havia o brilho da situação económica e financeira internacional, reflexo de um final de 2023 positivo. Do outro, as nuvens sombrias de uma situação geopolítica incerta e cada vez mais perigosa. Na realidade, a questão geopolítica pesou fortemente nas análises e prognósticos de muitos dos intervenientes. Zelensky procurou dar uma réstia de esperança, mas os participantes sabem que muito depende da assistência que a Ucrânia venha a receber, ou não, para assegurar a sua defesa legítima, dos EUA, dos países europeus e dos outros aliados. O Médio Oriente, a China e Taiwan, partes importantes de África e da América Latina, todas estas regiões contêm cenários instáveis e explosivos. A expansão do populismo na Europa é outra preocupação de monta. Todavia, para um bom número de participantes, a grande apreensão reside na possibilidade do regresso de Donald Trump ao poder. O homem é um brutamontes que vive num mundo de desequilíbrios e de vingança pessoal. É um perigo cujos contornos são imprevisíveis.

O outro tema central disse respeito ao desenvolvimento da Inteligência Artificial (IA). As grandes empresas tecnológicas, todas elas norte-americanas, estiveram bem representadas. Conseguiram trazer este tema para a lista das grandes preocupações. É um facto que os países mais avançados irão investir seriamente nesta área. O próprio primeiro-ministro chinês foi claro sobre o assunto: a cooperação em matéria de IA e de comércio internacional constituíram o cerne da sua intervenção. A China precisa dos chips produzidos nos países mais avançados, pelo menos por enquanto, e de relações económicas internacionais sem entraves nem querelas. A dimensão demográfica da China é, simultaneamente, uma vantagem e um desafio à sua estabilidade social. É aquilo a que chamaria a complexidade do gigantismo. Uma complexidade que, por parte dos dirigentes chineses, exige uma política muito prudente, quer interna quer externa.

O problema é que muitos políticos por esse mundo fora têm uma certa dose de insanidade. Isso é especialmente verdade no caso dos regimes autoritários. Não se pode esperar um comportamento racional quando o futuro dos ditadores possa estar em jogo. Neste início de 2024, é indispensável estar preparado para más surpresas. Essa é uma das lições que retiro da observação da semana em Davos.

Guterres também fez uma curta intervenção. Falou fundamentalmente das alterações climáticas, da necessidade de reconquistar a confiança das populações nos governos e nas instituições multilaterais. E mencionou, inevitavelmente, as questões humanitárias. Fez igualmente referência ao trabalho da ONU na regulação da IA. Tudo muito acertado e revelador da vasta agenda que as Nações Unidas têm em cima da mesa. Mas, num contexto dominado pelas tensões geopolíticas, faltaram umas frases claras e marcantes. Pareceu ingénuo e repetitivo. Perdeu uma excelente oportunidade de fazer ouvir, alto e bom som, as propostas da ONU em matéria de paz e de segurança internacionais.

Conselheiro em segurança internacional. Ex-secretário-geral-adjunto da ONU

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