Daniela Nascimento
Daniela NascimentoPEDRO CORREIA / GLOBAL IMAGENS

"Temos uma Europa que exclui, marginaliza e desprotege seres humanos”

Investigadora do Centro de Estudos Sociais, da Universidade de Coimbra, fala sobre os desafios atuais na defesa dos Direitos Humanos e considera que “a dimensão e a escala das violações sistemáticas” desses direitos nos afasta cada vez mais do principal objetivo da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
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Entre a teoria e a prática: desafios contemporâneos à concretização dos Direitos Humanos  é o título da conferência conduzida por Daniela Nascimento, investigadora do Centro de Estudos Sociais, da Universidade de Coimbra. O encontro, organizado pela Academia das Ciências de Lisboa decorre online (via Zoom) amanhã, a partir das 18.00 horas. A antecipar a conferência, inserida no ciclo Diversidade Cultural, Desenvolvimento e Direitos Humanos, entrevistamos a especialista em relações internacionais e estudos da paz.

É coautora do livro O humanitarismo em Mudança: do socorrismo aos intervencionismos. O humanitarismo baseia-se em princípios como a neutralidade, a imparcialidade e a independência. Presentemente, a ação humanitária está, genericamente, a cumprir estes princípios?

O humanitarismo clássico rege-se efetivamente por esses princípios pensados para assegurar o seu principal objetivo: aceder às vítimas das crises e prestar assistência sem qualquer distinção e sem tomar partido nas disputas e guerras que alimentam essas crises. Mas como eu e o colega José Manuel Pureza, com quem escrevi o livro, deixamos claro na obra, o humanitarismo tem passado por várias roupagens, todas elas trazendo transformações e adaptações significativas relativamente àquela que foi a sua conceção inicial e dita clássica. Hoje, em virtude de uma mudança também ao nível da natureza das guerras e das próprias crises humanitárias, é cada vez mais difícil, e por vezes até questionável do ponto de vista ético, manter esses princípios. Como ser neutral numa crise criada e perpetuada por atores que se servem da vulnerabilidade humana e a instrumentalizam para alcançar objetivos políticos e militares? Ao mesmo tempo, não é moralmente aceitável abandonar ou negligenciar as necessidades humanitárias das vítimas só porque estão do lado errado  em termos das agendas e dos interesses de muitos dos atores internacionais que financiam a ajuda humanitária. Não são tempos, nem contextos fáceis nem para as organizações humanitárias, nem para as vítimas das crises. E isso é, em si, trágico e preocupante.

Subordina a sua conferência ao tema Entre a teoria e a prática: desafios contemporâneos à concretização dos Direitos Humanos. Tendo de elencar os principais desafios à implementação efetiva de tais direitos, quais prioriza?

Um dos principais desafios é o de concretizar os direitos tal como estão definidos e consagrados juridicamente. Tendemos a ser cada vez mais céticos quanto a esses direitos, porque assistimos a uma erosão progressiva dos mesmos ao nível das práticas, dos comportamentos e das decisões políticas em muitos países. Para serem garantidos, os Direitos Humanos requerem ação e vontade política e essa nem sempre existe ou nem sempre é coerente. Um dos princípios fundamentais associados aos Direitos Humanos é o de que a soberania dos Estados significa responsabilidade e que os Estados são os principais responsáveis por garantir e respeitar os Direitos Humanos. E isso nem sempre acontece. Fazer cumprir esse pressuposto de forma continuada e coerente é, a meu ver, o principal desafio que se coloca aos Direitos Humanos hoje.

Num artigo que assina intitulado Entre o Passado e o Futuro: que lugar para os Direitos Humanos na Europa, escreve o seguinte: “Num tempo em que uma alegada ‘guerra contra o terrorismo’ tem servido de pretexto para uma preocupante limitação de uma série de DH e liberdades fundamentais, a UE tem a obrigação acrescida de evitar que este cenário se agrave e coloque definitivamente em causa todo o movimento em prol dos DH e da justiça”. Que obrigação recai sobre a UE nesse contexto? Porque refere tratar-se de uma “alegada guerra contra o terrorismo”, com ênfase na palavra “alegada”?

Este texto foi escrito há já bastantes anos, na sequência dos ataques terroristas de 11 de Setembro e que, de certa forma, deu início à guerra contra o terror iniciada pelos EUA, apoiada por vários países europeus, e a qual foi, de certa forma, aproveitada para cumprir uma outra agenda geopolítica. Nesse contexto, foram efetivamente muitas as políticas e medidas adotadas e que, na prática, resultaram na limitação e erosão de direitos e liberdades fundamentais um pouco por toda a Europa: restrições à liberdade de movimento, ao direito ao asilo, às garantias de justiça e julgamento justo de todos os suspeitos associados a atos ou redes terroristas. O que, para mim, foi mais preocupante foi que se sobrepuseram agendas e objetivos securitários a garantias de direitos e liberdades fundamentais e até a princípios humanitários. É óbvio que o terrorismo, seja de que natureza for, é inaceitável, mas não se pode, nem deve, combater com discurso e práticas de guerra, e muito menos com a subordinação e esvaziamento dos direitos e liberdades. O combate ao terrorismo exige uma ação muito mais estrutural, de prevenção e orientada às causas políticas e socioeconómicas que o alimentam.

Ainda sobre a guerra. Vivemos tempos de conflito na Europa, no Médio Oriente, em África, entre outras latitudes. Todos os dias recebemos notícias de atentados aos Direitos Humanos. A que ponto a preocupa esta situação e como a analisa?

É obviamente uma realidade que me preocupa, desde logo porque significa que, por todo o mundo, milhões de pessoas estão privadas dos seus direitos e liberdades mais fundamentais em resultado de atos e políticas deliberadas. E preocupa-me também porque a escala e a dimensão de violações flagrantes e sistemáticas dos Direitos Humanos à escala global nos afastam cada vez mais daquele que era e foi sempre o principal objetivo do sistema de proteção universal de Direitos Humanos. A adoção da Declaração Universal de Direitos Humanos, a 10 de dezembro de 1948, não serviu apenas para ser um ato simbólico. Serviu de pontapé de saída à institucionalização de um regime internacional assente em pilares normativos que se pretendiam fortes e mecanismos que pudessem contribuir para a efetivação desses mesmos direitos. Sou obviamente da opinião de que muito se fez desde então e que foi possível, ao longo das últimas décadas, consolidar a proteção dos direitos a vários níveis um pouco por todo o mundo, mas não posso ignorar o tanto que ainda há por fazer e, ao mesmo tempo, lamentar o tanto que se tem instrumentalizado e usado os Direitos Humanos para alimentar agendas de poder e dominação que em nada beneficiam a luta pelo verdadeiro respeito e proteção desses mesmos direitos. Custa-me muito que a luta tão fundamental pelos Direitos Humanos à escala global, e que deveria ser diária e de todos, se tenha tornado tão associada a discursos cínicos e hipócritas. Creio que a dado momento se perdeu o verdadeiro sentido deste projeto e isso é bastante preocupante e angustiante.

Dentro das fronteiras da Europa e da União Europeia (UE) vivemos um complexo fenómeno de migração. Aos problemas antigos da integração das comunidades migrantes e dos seus descendentes, acrescem novos desafios, como condições climáticas adversas, conflitos armados, entre outros. Sobre o fenómeno, fala de crise de Direitos Humanos, o que subentende que estes não estão a ser aplicados. Como avalia o momento presente à luz dos DH na Europa?

A UE, pelo seu histórico associado a um projeto de paz e respeito pelas liberdades fundamentais, tem uma responsabilidade óbvia de agir, interna e externamente, de acordo com esses princípios, sob pena de cair, como de resto já acontece, numa descredibilização total. Se pensarmos na forma como a UE tem lidado com as questões migratórias, por exemplo, voltamos a ter a mesma lógica de securitização que se faz à custa do desrespeito flagrante pelos direitos fundamentais de todos aqueles que procuram segurança na Europa, sob pretexto de que se está a garantir a segurança, estabilidade e coesão das sociedades europeias. As decisões, as políticas e os instrumentos que a União tem promovido, adotado e implementado, sobretudo desde aquele que foi considerado o pico  da designada crise dos refugiados, em 2015, são, em grande medida, de sentido contrário à resposta ao drama humano que os fluxos migratórios forçados significam e implicam. Os vários desenvolvimentos securitários a que temos vindo a assistir ao longo dos últimos anos, como a criação e reforço do papel e atuação da Frontex, os acordos com a Turquia, com a Líbia, com a Tunísia e com vários outros países na fronteira externa com capacidade para reter os fluxos migratórios antes que cheguem à Europa, mas cuja atuação descumpre frequente e continuadamente os princípios de respeito pela dignidade humana, foram acompanhados pela adoção de legislação e políticas restritivas e excludentes. Também do ponto de vista dos discursos políticos se tem vindo a reforçar uma postura de resistência e repressão relativamente à entrada de migrantes e refugiados, exacerbada por movimentos nacionalistas, racistas e xenófobos e que têm ganhado espaço no espetro político dos países europeus, sem que a UE tenha capacidade de reagir e, sobretudo, sancionar práticas e legislação que viola princípios fundamentais de Direitos Humanos no espaço europeu. A meu ver, a UE tem falhado em distanciar-se desta postura mais resistente e restritiva, como é visível no mais recente Pacto sobre Migração e Asilo. Na prática, temos uma Europa que exclui, marginaliza e desprotege seres humanos em total desrespeito pelos direitos dos migrantes, refugiados e requerentes de asilo tal como proclamados no Direito Internacional, mas também das liberdades fundamentais dos cidadãos europeus. E isso é inaceitável numa perspetiva de Direitos Humanos.

Considerando o contexto socioeconómico e político atual em Portugal, quais são os principais obstáculos e oportunidades para a promoção e proteção dos DH, face a desafios como a desigualdade económica, a imigração e a integração de minorias étnicas?

O principal desafio é o de fazer cumprir os direitos tal como estão consagrados. Portugal ratificou e é parte da maioria dos tratados internacionais de Direitos Humanos, integra sistemas de proteção de Direitos Humanos a nível das Nações Unidas e do Conselho da Europa, pelo que aquilo que é fundamental é assegurar vontade política para cumprir as responsabilidades associadas: proteger e respeitar direitos civis e políticos e garantir direitos económicos, sociais e culturais a todos os cidadãos que estão sob sua jurisdição, independentemente da sua origem. Temos o enorme privilégio de viver em democracia, pelo que o combate às desigualdades económicas, os desafios da integração se deve fazer com investimento em políticas públicas sérias e que combatam discursos populistas e xenófobos que apenas servem para fragilizar os Direitos Humanos e as liberdades de todos. Todos perdemos quando prevalecem lógicas, políticas e práticas de exclusão.

A Human Rights Watch refere no seu Relatório Mundial de 2023 que “estamos a assistir a uma mudança no poder mundial. Qualquer Estado que reconheça o poder que advém de trabalhar em concertação com outros para melhorar o estado dos Direitos Humanos pode proporcionar uma nova liderança. Há mais espaço, e não menos, para os Governos se levantarem e adotarem planos de ação que respeitem os direitos em causa”. Em seu entender é presentemente possível tal cenário?

Vivemos num mundo cada vez mais polarizado e com agendas muito radicalizadas, pelo que essa ambição e ideal de concertação em prol da melhoria do estado dos Direitos Humanos me parece cada vez mais difícil. Mas concordo obviamente com essa ideia, no sentido em que só percebendo os ganhos de um mundo mais respeitador dos direitos, mais justo e igualitário é que se conseguirá essa mobilização. Os apelos têm sido constantes, as lutas também e isso é obviamente essencial e de valorizar, mas não me parece, contudo, que estejamos no momento mais propício a que se concretize.

Face ao surgimento de movimentos sociais e ativismos cada vez mais diversificados, como pode a abordagem dos Direitos Humanos incorporar as reivindicações de grupos historicamente marginalizados e sub-representados, no sentido de promover uma inclusão mais ampla e uma justiça verdadeiramente igualitária?

A luta pelos Direitos Humanos fez-se sempre e historicamente com o contributo fundamental de movimentos sociais e de ativismo, com agendas mais amplas ou mais específicas, mas sempre pautadas por uma visão interdependente e indivisível dos direitos e pela defesa dos direitos de todas as pessoas, independentemente da sua condição, pertença, origem ou identidade. Esse é o valor fundamental dos direitos Humanos concebidos enquanto universais no sentido da universalidade da condição humana. Se os Direitos Humanos são os direitos que as pessoas têm pelo simples facto de serem seres humanos então a luta deve ser essa mesma, com vista a um mundo mais justo, mais igualitário e mais inclusivo. É essa a única e verdadeira agenda de Direitos Humanos que nos deve mobilizar e pela qual devemos continuar sempre a lutar.

Acesso à conferência: https://videoconf-colibri.zoom.us/j/93023760525
ID Reunião: 93023760525

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