Sistema de proteção de crianças em Portugal: o colo da lei e das boas práticas

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Todos sabemos que as crianças e jovens devem crescer num ambiente favorável ao seu pleno desenvolvimento de forma a garantir o seu bem-estar físico e mental. No entanto, isso pode ser particularmente difícil quando a família enfrenta situações de doença (incluindo doença mental), carência económica, desemprego, conflituosidade, dificuldades de integração social, migração forçada ou guerra. As crianças e jovens sujeitas a experiências traumáticas, tal como o abuso sexual ou maus-tratos físicos/psicológicos, têm maior risco de desenvolver problemas de saúde mental, dificuldades de aprendizagem e de relacionamento com os outros. Estas crianças serão adultos com maior probabilidade de apresentarem doenças como hipertensão, diabetes, obesidade e cancro bem como problemas de saúde mental.

Algumas famílias podem ter dificuldade em reconhecer as necessidades da criança/jovem ou em perceber quando é necessário pedir ajuda. Nesses casos, as crianças/jovens vêem-se muitas vezes como os protagonistas da história infantil “A casinha de chocolate”: abandonadas, pela própria família, no meio de uma floresta desconhecida, tendo que enfrentar sozinhas os perigos que vão surgindo até encontrarem de novo o caminho para casa. E, ao contrário do “João” e da “Maria”, que conseguem heroicamente sair sãos e salvos da floresta, muitas crianças que vivenciam experiências adversas desenvolvem ansiedade, culpabilidade, baixa auto-estima, instabilidade emocional, isolamento social e falta de esperança no futuro.

Em Portugal, a filosofia da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo reside na intervenção dos tribunais como última instância, deixando, primeiro, às comunidades (às entidades com competência em matéria de infância e juventude e às Comissões de Proteção de Crianças e Jovens) o mister e a obrigação de primeiro acudir a quem lança um SOS. É, assim, essencial, que todas as pessoas que contactam com famílias vulneráveis e com crianças/jovens, designadamente no âmbito da sua atividade profissional, tenham um papel ativo no reconhecimento das dificuldades que as famílias não conseguem enfrentar sozinhas e que muitas vezes escondem por vergonha, culpa e desânimo. É necessário conjugar a interdisciplinaridade, apostar na solidariedade comunitária (que passe por uma eficaz denúncia) e promover a inter-institucionalidade de forma a avaliar, tão corretamente quanto possível, qual é o “interesse maior da criança”.

Mas, se por um lado é necessário atuar rapidamente para proteger a criança/jovem, as respostas existentes nem sempre são as ideais. Segundo um relatório da UNICEF divulgado no início deste ano, Portugal é, entre 42 países da Europa e Ásia Central, o país onde há mais crianças institucionalizadas, com 95% das crianças acolhidas ao abrigo do sistema de proteção a residir em acolhimento residencial. Segundo a UNICEF “as crianças institucionalizadas em unidades de grande escala enfrentam frequentemente negligência emocional e taxas mais elevadas de abuso e exploração, o que as expõe a problemas de saúde mental, angústia psicológica e trauma”.

Na verdade, as nossas políticas sociais e as nossas práticas judiciárias têm estado até agora dominadas pela reparação das falhas parentais. É altura de substituirmos esse paradigma por uma abordagem centrada na avaliação pluridisciplinar das necessidades da criança para apoiar o seu efectivo desenvolvimento. Independentemente da tipologia da resposta oferecida, uma criança com medo e insegurança deve encontrar uma rotina e a previsibilidade de comportamentos dos adultos; uma criança emocionalmente confusa deve ter acesso a uma verdade que não seja crua e factual, mas que seja honesta, securizante e protetora, com quem quer que venha a ter de estabelecer laços; uma criança vítima de abandono afetivo ou real deve tornar-se a protagonista, num cenário onde aos adultos garantam presença física e afetiva, com tempo para escutar com os ouvidos, tempo para escutar com o coração, tempo para brincar, tempo para partilhar refeições.

Nesse sentido, o Projeto Europeu “Let's Talk About Children”, coordenado em Portugal pela Universidade de Coimbra, está a implementar uma metodologia desenvolvida na Finlândia cujo objetivo é identificar precocemente famílias em situação de vulnerabilidade e, através de intervenções multidisciplinares, promover as competências parentais, o desenvolvimento psicossocial das crianças e a saúde mental de toda a família. Para isso, está a ser implementado um programa de capacitação dirigido a profissionais de saúde (psiquiatras, pedopsiquiatras, médicos de medicina geral e familiar, enfermeiros, psicólogos), da área da educação (psicólogos e professores) bem como técnicos de serviço social que contactem com crianças e famílias.

Para além de ser importante dar respostas eficazes e especializadas em saúde aos vários elementos da família (por exemplo, consultas de Pedopsiquiatria, Psicologia e Psiquiatria) é também fundamental atuar noutros fatores que influenciam a saúde mental das crianças/jovens (por exemplo: condições de habitabilidade precárias, carência económica e dificuldades de integração social). Espera-se que esta abordagem multifatorial conduza a uma modificação gradual e sistémica no modo de atuação dos profissionais e das próprias instituições para que, em articulação próxima, consigam dar respostas cada vez mais eficazes às crianças/jovens em risco.

Só poderemos considerar que atingimos este objetivo quando qualquer criança residente em Portugal, independentemente da sua nacionalidade, possa dizer, de viva e consciente voz, que «o meu passado familiar não tem necessariamente de determinar o meu futuro». Afinal de contas, e acreditando no enorme poder de resiliência das nossas crianças, "embora ninguém possa voltar atrás e fazer um novo começo, qualquer um pode começar agora e fazer um novo fim".

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