Ser ou não ser Stanley Kowalski.
Ser ou não ser Stanley Kowalski.

100 anos de Marlon Brando. Um homem chamado desejo

Assinala-se neste dia o centenário do ator que, para muitos, encarnou a arte de representar, criticando a fama que o manteve refém de um certo vazio existencial. Uma figura de fascínio e contradições, como qualquer grande lenda, embora singular na sua imagem. Recordamo-lo sem tabus.
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Dele se disse que foi “o melhor ator de sempre”... Talvez possamos começar por aí. Ou então por um parágrafo da biografia El Hombre Salvaje, escrita pelo espanhol Luis Gasca (estudioso do cinema que foi diretor do Festival de San Sebastián), cujo resumo também oferece um bom arranque, evocando a mítica cena de Um Elétrico Chamado Desejo em que o polaco Stanley Kowalski grita por Stella, com o peitoral meio descoberto: “A T-shirt rasgada, manchada de cerveja e suor, o rosto, de uma só vez, brutal e doce, o cabelo encaracolado e brilhante, o fogo nos seus olhos, iriam fazer daquele rapaz chamado Marlon Brando o sex symbol de toda uma época. E um dos homens mais insatisfeitos do seu tempo.” Será esta a introdução certa? Todas as palavras parecem ficar um pouco aquém da medida justa. Aquém do impulso preciso com que este ícone nascido há cem anos no Nebrasca se fez corpo e alma de uma ideia de cinema assente na corrente elétrica da representação.

Filho de pai severo, que quis corrigir-lhe a rebeldia matriculando-o numa academia militar, e de mãe poética, uma atriz amadora cuja frustração levou pelos caminhos do alcoolismo, pode dizer-se que Brando se inscreveu na história do mundo e do cinema através de uma sensibilidade “suja” e revoltada. Isto muito antes de vestir a pele de Kowalski e gritar “Stella!”, ou de envergar, para além da T-shirt, o blusão de cabedal preto e a boina do motard de O Selvagem (1953), de László Benedek, filme que imprimiu em Hollywood a sua imagem jovem, sexual, indisciplinada, correspondente à própria natureza do intérprete. Afinal, ele era aquele que gostava de andar de mota pelas ruas de Nova Iorque a altas horas da madrugada, frequentar os clubes noturnos do Harlem e explorar o erotismo do encontro fugidio com outros corpos.

As origens do Método: Stella Adler

Na imensidão do que se escreveu sobre Marlon Brando ao longo das décadas, colocando o Actors Studio no centro do seu período formativo, pouco se vê referido, com a devida especificidade e importância, o nome de Stella Adler (1901-1992). Com efeito, houve esta outra Stella, fora do palco e do grande ecrã, que marcou definitivamente o percurso do jovem ator: a professora de interpretação da New School for Social Research, para onde Brando foi estudar pouco depois de se ter juntado às duas irmãs mais velhas em Nova Iorque, e onde aprendeu as bases da sua forma de representação. O que significa, muito concretamente, que foi Adler quem transmitiu a Brando o famoso “Método” de Constantin Stanislavski, tendo estudado com discípulos diretos desse mestre russo e ajudado a cimentar nos Estados Unidos os seus ensinamentos sobre a arte dramática.

Assim, quando falamos do Actors Studio, do professor Lee Strasberg, e do modo como Brando se tornou a quintessência do Método, é preciso ter em conta que, antes de frequentar essa escola (e antes do contacto frutífero com o realizador responsável pelo seu lançamento, Elia Kazan), a figura de Stella Adler deve ser recordada como a verdadeira mentora do génio, a mulher que descortinou o seu talento em bruto, e a brutalidade do seu talento, quando outros ainda não o tinham compreendido: “Não é um brutamontes, e muito menos um louco. É um poeta, um artista. Por vezes pergunto-me como é que os jornalistas não o veem. Falam indiscriminadamente sobre ele, sem saber como apreciar um artesão.”

Em que consistia então o Método que formou também Paul Newman e James Dean? Basicamente, trata-se de um princípio segundo o qual a verdade interior da interpretação se deve tornar tangível pelo corpo. E a expressividade corporal/carnal revelou-se, de facto, a primeira arma de Brando, que a passou do palco para o cinema, desde logo, através da ilustre peça de Tennessee Williams, Um Elétrico Chamado Desejo (1951), sob a direção de Elia Kazan, o mesmo realizador dos outros dois sucessos da fase inicial da carreira do ator, Viva Zapata! (1952) e Há Lodo no Cais (1954), este último o filme que lhe valeu um dos seus dois Óscares.

Já tinha, por essa altura, encarnado Marco António em Júlio César (1953), de Joseph L. Mankiewicz, e estava prestes a disputar o carisma com Frank Sinatra na comédia musical Eles e Elas (1955), também de Mankiewicz, mas teria de atravessar toda a década de 60 numa crise mais ou menos constante de projetos e polémicas pessoais (ou de rodagem), até ser bafejado pelo talento de um jovem Francis Ford Coppola, que, em 1972, lhe devolveu a dignidade na tela com o grandíssimo papel de Don Vito Corleone em O Padrinho. Seguiu-se O Último Tango em Paris (1972), de Bernardo Bertolucci, por certo o retrato mais cru da sua tristeza íntima, e aquele sublime “The horror... the horror” do Coronel Kurtz em Apocalypse Now (1979), antes de entrar numa nova fase de esquecimento de si próprio, cedendo ao desleixo da imagem. Essa que, nos primórdios, lhe tinha dado a fama quase de bandeja.

As causas cívicas, a vida amorosa e a tragédia familiar

Homem de muitas inquietações políticas e sociais, Marlon Brando nunca separou propriamente o cinema das causas que defendia. Não admira, por isso, que Stanley Kramer, ele próprio dedicado a um cinema-espelho da sociedade americana, tenha produzido o primeiro filme da carreira do ator, O Desesperado (1950), de Fred Zinnemann, onde este interpreta um veterano de guerra paraplégico, em processo de readaptação à vida quotidiana. Apenas um dos exemplos dessa faceta da postura artística que o manteve sempre envolvido, por um lado, com o movimento dos direitos civis (foi um dos rostos bem visíveis na marcha de 1963, em Washington), e por outro, com a causa dos indígenas americanos. Recorde-se que em 1973, quando venceu o seu segundo Óscar, Brando, ausente da cerimónia, fez-se representar pela atriz e ativista nativa americana Sacheen Littlefeather, que subiu ao palco para anunciar a recusa da estatueta dourada como forma de protesto.

Mas esta não foi a única vez que se mostrou pouco agradecido a Hollywood. Em várias das suas declarações públicas, transpareceu o incómodo com as consequências da fama – dizia sentir-se um animal de zoo para os fãs –, e antes do renascimento pela mão de Coppola, viu com desagrado o seu percurso até aí: “Vinte anos que engordaram as minhas células negativas, os meus pensamentos e as minhas sensações mais banais e falsas. Vinte anos queimados no altar da vaidade, da felicidade pessoal. Coisas que não contam.”

Palavras de quem não conseguiu escapar aos escândalos contínuos, fosse pelos contornos dos seus três casamentos, fosse pelo apetite sexual que o definiu enquanto estrela desejada e transbordante de desejo. Uma estrela que brilhou cada vez menos nos últimos anos de vida (morreu a 1 de julho de 2004), sobretudo pela tragédia dos filhos; Christian, que matou a tiro o namorado da meia-irmã, Cheyenne, e esta que tirou a própria vida cinco anos mais tarde... Como sair da pele de Brando? No documentário Listen To Me, Marlon, de Stevan Riley, ouvimo-lo assim, numa das suas sessões de auto-hipnose: “Marlon, escuta a minha voz. Deixa-te ir, simplesmente. Deixa-te ir como uma nuvem no céu. Deixa-te levar para esse estado especial, o estado de paz do miúdo que recordas a olhar para as folhas que caem do ulmeiro.”

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