Ela foi a grande guerra, tantas vezes mal escrita, com maiúsculas, porque se houve coisa tão substantiva foi ela. Ela é para ser escrita terra a terra, como a terra rasa da Flandres, onde os campanários, as escolas das aldeias e as árvores dos caminhos foram reduzidos a pó em cinco anos de morteiros. Ela foi a mãe de todas as guerras. E para explicar tanta grandeza da guerra é indecente alinhar outras palavras senão as coisas, entre as quais os homens feitos coisas..O português André Brun era um escritor do teatro levezinho e galhofeiro (A Vizinha do Lado, A Maluquinha de Arroios...) e já tinha 36 anos quando foi recrutado. Teve a sua a guerra, conheceu os seus homens e deles escreveu A Malta das Trincheiras. E deu um subtítulo, Migalhas da Grande Guerra, porque era preciso contar o muito pequeno para percebermos aquele mundo. O mundo estava naqueles túneis de terra preta, enlameada ou gelada, pouco mais largos do que os ombros de homens - as trincheiras..Ao batalhão de Infantaria 23 calhou-lhe guardar 18 quilómetros da frente. Tão pouco, isto é, enorme: quanto mais estreito o nicho, maior a probabilidade de lhe caírem obuses em cima. O autor, estando entre parênteses das operetas, porque agora é soldado das trincheiras, não desperdiça a oportunidade da ironia amarga: "Esta guerra é aquela que melhor se adapta ao espírito português." Porque paradinha, a malta a aguardar. Brun enternece-se com o soldado da frente, sentado numa ruína "a fingir que pensa e a ouvir crescer a barba." Os obuses martelam o matadouro, os homens aguardam, que remédio!.O inferno tem matizes com todos os seus cinzentos. O escritor recrutado tem todo o tempo para os descrever. "De perto, a heroicidade confunde-se com coisas [veem, André Brun fala delas, as coisas] que de heroico não têm a mínima parcela." Ao ir da terceira linha da frente (a partir da qual já caem obuses e se deixou para trás a zona de conforto dos generais com botas engraxadas), passando para a segunda linha e cada vez mais próximo da linha da frente, calcando lama ou toscas passadeiras, será que se chegou ao inferno?.Qual quê! Há ainda maior inferno, porque à frente da frente há ainda a terra de ninguém, falso nome, porque a noite, "picada de estrelas e lavada de luar", é atravessada por atamancadores, que vão recompor o arame farpado e os parapeitos das trincheiras, e por patrulhas de ambos os lados que se encontram, fingindo por vezes que não se veem. Ou não... Os homens barbeiam-se de cor, sem espelho. Os lãzudos, como Brun chama aos companheiros (em francês são os poilus, peludos) habituam-se e um, que é apanhado a mirar por cima do parapeito, explica o que faz: "Para ver de onde ela vem, meu capitão." A morte tratada em coisa do quotidiano..Ela, a morte a entreter-se, com a sua música de metralha na caça cega. E nesse dia-a-dia de espera resignada, André Brun tem tempo de ver, à luz do poente, que "um grande cavalo preto arrasta o arado sobre o qual se senta, cachimbando, um velho de cabelos brancos". Um velho camponês flamengo, cercado de jovens ex-camponeses transmontanos e algarvios, a lembrar que os homens, as coisas, enfim, talvez ainda haveriam de ter outra oportunidade..Voltemos atrás. Semanas ou meses antes deste relatório tão curativo de André Brun, tinha aparecido uma foto na revista Ilustração Portuguesa, datada da Pré-História e no cais de Alcântara, de um mundo outro, e a caminho dos portos franceses de Brest e do Havre e, daí, para a Flandres, a da modernidade coisificada. Em 1917, a tropa portuguesa partia a combater com ou contra outros europeus. Os mancebos eram chamados aos quartéis e chegavam com um lençol grosso agarrado a um cajado. Nas estações da província - Régua, Coimbra, Entroncamento... -, os portugueses viam passar os seus jovens. Então, a foto, assinada pelo grande Joshua Benoliel. Um magala que marcha com os camaradas, afasta-se deles e vira-se para quem se despedia dele. O homem agarra o queixo da sua mulher. Foi capa da Ilustração Portuguesa, a 12 de fevereiro de 1917, e é hoje a desta edição do 1864..No centenário do começo desta guerra das guerras, em 2014, o maior prémio literário francês foi para Au Revoir Là-Haut, de Pierre Lemaître. O romance, depois de se enlamear pelas mesmas trincheiras de André Brun, conta também o após-guerra, ainda estupefacto. A França, como outros países da guerra, quer iludir-se numa homenagem, ressarcir-se do indizível. Ergue monumentos ao Soldado Desconhecido e promete sepultar cada um dos mortos em campa com nome. Au Revoir Là-Haut, embora romance, recorda um facto histórico: o espertalhão que ganhou o concurso nacional dos funerais não só escolheu o pinho mais barato, como os encurtou para 1,5 metros o comprimento dos caixões. A cadáver que não cabia partia-se o pescoço à sacholada..Mas a ressurreição da Grande Guerra já tinha acontecido antes, num cais de Alcântara. Um homem acariciou o queixo da sua mulher.
Ela foi a grande guerra, tantas vezes mal escrita, com maiúsculas, porque se houve coisa tão substantiva foi ela. Ela é para ser escrita terra a terra, como a terra rasa da Flandres, onde os campanários, as escolas das aldeias e as árvores dos caminhos foram reduzidos a pó em cinco anos de morteiros. Ela foi a mãe de todas as guerras. E para explicar tanta grandeza da guerra é indecente alinhar outras palavras senão as coisas, entre as quais os homens feitos coisas..O português André Brun era um escritor do teatro levezinho e galhofeiro (A Vizinha do Lado, A Maluquinha de Arroios...) e já tinha 36 anos quando foi recrutado. Teve a sua a guerra, conheceu os seus homens e deles escreveu A Malta das Trincheiras. E deu um subtítulo, Migalhas da Grande Guerra, porque era preciso contar o muito pequeno para percebermos aquele mundo. O mundo estava naqueles túneis de terra preta, enlameada ou gelada, pouco mais largos do que os ombros de homens - as trincheiras..Ao batalhão de Infantaria 23 calhou-lhe guardar 18 quilómetros da frente. Tão pouco, isto é, enorme: quanto mais estreito o nicho, maior a probabilidade de lhe caírem obuses em cima. O autor, estando entre parênteses das operetas, porque agora é soldado das trincheiras, não desperdiça a oportunidade da ironia amarga: "Esta guerra é aquela que melhor se adapta ao espírito português." Porque paradinha, a malta a aguardar. Brun enternece-se com o soldado da frente, sentado numa ruína "a fingir que pensa e a ouvir crescer a barba." Os obuses martelam o matadouro, os homens aguardam, que remédio!.O inferno tem matizes com todos os seus cinzentos. O escritor recrutado tem todo o tempo para os descrever. "De perto, a heroicidade confunde-se com coisas [veem, André Brun fala delas, as coisas] que de heroico não têm a mínima parcela." Ao ir da terceira linha da frente (a partir da qual já caem obuses e se deixou para trás a zona de conforto dos generais com botas engraxadas), passando para a segunda linha e cada vez mais próximo da linha da frente, calcando lama ou toscas passadeiras, será que se chegou ao inferno?.Qual quê! Há ainda maior inferno, porque à frente da frente há ainda a terra de ninguém, falso nome, porque a noite, "picada de estrelas e lavada de luar", é atravessada por atamancadores, que vão recompor o arame farpado e os parapeitos das trincheiras, e por patrulhas de ambos os lados que se encontram, fingindo por vezes que não se veem. Ou não... Os homens barbeiam-se de cor, sem espelho. Os lãzudos, como Brun chama aos companheiros (em francês são os poilus, peludos) habituam-se e um, que é apanhado a mirar por cima do parapeito, explica o que faz: "Para ver de onde ela vem, meu capitão." A morte tratada em coisa do quotidiano..Ela, a morte a entreter-se, com a sua música de metralha na caça cega. E nesse dia-a-dia de espera resignada, André Brun tem tempo de ver, à luz do poente, que "um grande cavalo preto arrasta o arado sobre o qual se senta, cachimbando, um velho de cabelos brancos". Um velho camponês flamengo, cercado de jovens ex-camponeses transmontanos e algarvios, a lembrar que os homens, as coisas, enfim, talvez ainda haveriam de ter outra oportunidade..Voltemos atrás. Semanas ou meses antes deste relatório tão curativo de André Brun, tinha aparecido uma foto na revista Ilustração Portuguesa, datada da Pré-História e no cais de Alcântara, de um mundo outro, e a caminho dos portos franceses de Brest e do Havre e, daí, para a Flandres, a da modernidade coisificada. Em 1917, a tropa portuguesa partia a combater com ou contra outros europeus. Os mancebos eram chamados aos quartéis e chegavam com um lençol grosso agarrado a um cajado. Nas estações da província - Régua, Coimbra, Entroncamento... -, os portugueses viam passar os seus jovens. Então, a foto, assinada pelo grande Joshua Benoliel. Um magala que marcha com os camaradas, afasta-se deles e vira-se para quem se despedia dele. O homem agarra o queixo da sua mulher. Foi capa da Ilustração Portuguesa, a 12 de fevereiro de 1917, e é hoje a desta edição do 1864..No centenário do começo desta guerra das guerras, em 2014, o maior prémio literário francês foi para Au Revoir Là-Haut, de Pierre Lemaître. O romance, depois de se enlamear pelas mesmas trincheiras de André Brun, conta também o após-guerra, ainda estupefacto. A França, como outros países da guerra, quer iludir-se numa homenagem, ressarcir-se do indizível. Ergue monumentos ao Soldado Desconhecido e promete sepultar cada um dos mortos em campa com nome. Au Revoir Là-Haut, embora romance, recorda um facto histórico: o espertalhão que ganhou o concurso nacional dos funerais não só escolheu o pinho mais barato, como os encurtou para 1,5 metros o comprimento dos caixões. A cadáver que não cabia partia-se o pescoço à sacholada..Mas a ressurreição da Grande Guerra já tinha acontecido antes, num cais de Alcântara. Um homem acariciou o queixo da sua mulher.