Beethoven em Portugal: dos pioneiros aos atrasos históricos

O génio alemão demorou a impor-se no nosso país e só no século XX se tornaria presença corrente nos programas de concerto. <em>Quando se celebram os 250 anos do seu nascimento (foi batizado a 17 de dezembro de 1770), o DN republica este texto originalmente publicado a 15 de janeiro de 2020.</em>
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A fama de Ludwig van Beethoven (1770-1827) depressa se espalhou por toda a Europa. Se bem que o compositor, fixado em Viena desde 1792, nunca se tenha afastado mais do que um raio relativamente curto da capital imperial austríaca, a sua música, editada em partitura e reeditada por várias casas espalhadas pela Europa, depressa se tornou conhecida de músicos e amantes da música, inclusive em Portugal.

Em França, por exemplo, fez-se o ciclo integral das suas nove sinfonias entre 1828 e 1831, iniciativa impulsionada pelo grande maestro François Habeneck, à frente da Orquestra do Conservatório, que criou para esse específico efeito. Mas sinfonias de Beethoven avulsas já eram tocadas em Paris desde os primeiros anos de oitocentos.

A presença de música de Beethoven em concertos em Portugal foi dificultada, nesta época, por vários fatores: as Invasões Francesas, a transferência da corte ("proprietária" da única orquestra no país, à época) para o Rio de Janeiro, a instabilidade política e as lutas liberais, culminando na guerra civil.

Para tocar sinfonias é preciso orquestras - e orquestras de nível elevado, tratando-se de Beethoven; como para tocar muita da sua música são precisos músicos de excelência, pois, é bom não o esquecer, grande parte das obras de Beethoven (sonatas, quartetos, etc.) eram, na altura, obras de vanguarda, pela novidade dos desafios que colocavam aos intérpretes.

Nesta época conturbada da história portuguesa destaca-se ainda assim a figura do compositor e pianista João Domingos Bomtempo (1775-1842). Foi o maior compositor português da "era de Beethoven" e a ele devemos a primeira música de autor português a levar em conta o estilo consagrado pelo classicismo vienense de Haydn, Mozart e Beethoven. Devemos-lhe também a fundação da primeira Sociedade de Concertos na capital portuguesa, seguindo o exemplo do que tinha visto em Londres, nos anos que ali passara. Foi essa a primeira tentativa no nosso país de constituir uma orquestra capaz de apresentar regularmente a música orquestral mais recente e de melhor qualidade que se fazia pela Europa. Foi no entanto de duração efémera essa instituição por força da reinstauração do absolutismo por D. Miguel e das simpatias abertamente liberais de Domingos Bomtempo. Mas não sabemos se alguma sinfonia de Beethoven figurou nos concertos da Sociedade.

Já em 1835, pacificado o país, Bomtempo vê coroado o seu esforço de ver fundado o Conservatório Nacional, do qual é muito justamente nomeado diretor. Será aí, entre alunos de vários instrumentos, que mais amplamente se irá difundindo o repertório instrumental de Beethoven, sobretudo as suas sonatas e variações para piano.

Mas o gosto do público ia para a ópera italiana e francesa e, na música instrumental, para coisas mais ligeiras, disso dando genial conta o famoso episódio da Sonata Patética/Pateta n"Os Maias (1888). Pesem os esforços de alguns músicos e compositores com formação no estrangeiro (geralmente Paris), era esse o quadro geral.

Um quarteto de fatores contribuirá para alterar esta situação já perto do final do século: o pianista e compositor (e pedagogo e divulgador) José Vianna da Motta (1868-1948), desde cedo apadrinhado por D. Fernando II e de formação e vivência germânicas (viveu em Berlim de 1882 a 1914); o violinista, maestro, pedagogo e promotor Bernardo Valentim Moreira de Sá (1853-1924); o fenómeno Richard Wagner, vulgo wagnerismo, que gerou um interesse novo pela cultura germânica; e a emergência da Alemanha como grande potência europeia e detentora de uma cultura musical pujante que importava descobrir e conhecer - sendo inclusive a cultura e a música alemãs "usadas" pelo Partido Republicano como arma política e contrapeso à influência inglesa, mormente após o Ultimato (1890). Da conjunção dos quatro resultou uma maior atenção à música germânica, equilibrando os pratos com a música italiana (e francesa), até aí toda-dominante; e um maior peso à música instrumental (de que Beethoven era símbolo maior).

O portuense Bernardo Valentim Moreira de Sá foi o mais importante promotor da vida musical do Porto - e um dos a nível nacional - na época. Fundou o Orpheon Portuense (1881), a Sociedade de Quartetos (1874) e a Sociedade de Música de Câmara (1883), instituições que dotaram a cidade de meios (inclusive para convidar grandes músicos internacionais) e de fóruns onde se fazia ouvir a música de todos os grandes compositores, incluindo naturalmente Beethoven.

O Quarteto Moreira de Sá (do qual fez parte, entre a grande violoncelista Guilhermina Suggia) foi o primeiro quarteto de cordas estável que neste país existiu e a ele se deve, com grande probabilidade, a primeira audição de quartetos de cordas de Beethoven no nosso país. Mas Moreira de Sá também deu a ouvir grande parte da restante música de câmara do compositor (sonatas para violino e piano, trios com piano, trios de cordas, quintetos), promoveu a audição dos concertos para instrumento solista e orquestra e até "montou" sinfonias de Beethoven com uma orquestra semiprofissional.

A Vianna da Motta ficámos a dever, por exemplo, a primeira integral, por um pianista português, das sonatas para piano de Beethoven: tocou as 32 sonatas do autor numa série de recitais realizada no Salão do Conservatório Nacional, por ocasião do centenário da morte do compositor, em 1927. Mas o pianista tinha no repertório a totalidade da sua música com piano, isto é, além das 32 sonatas, ainda os cinco concertos para piano, a Fantasia Coral e toda a música de câmara (e é muita!) com parte de piano.

Vianna da Motta foi sempre um admirador da tradição musical germânica, no piano encabeçada pelas figuras de Bach e de Beethoven. Ao mesmo tempo, enquanto aluno de Liszt e de Von Bülow, "bebeu" os ensinamentos de Carl Czerny, o mais influente aluno de Beethoven e fundador da escola pianística que se reclama descendente direta do estilo defendido e praticado pelo próprio Beethoven, que ele prolongou enquanto professor (e diretor) do Conservatório Nacional, entre 1917 e 1938.

Nas primeiras décadas do século desempenharam ainda um papel, conquanto efémero, as orquestras Sinfónica de Lisboa e Sinfónica Portuguesa, que programaram sinfonias de Beethoven nos seus concertos. Mas seria preciso esperar até ao dia 28 de fevereiro de 1925 - 101 anos depois da estreia da obra em Viena - para que em Portugal pela primeira vez se ouvisse (no Teatro São Luiz) a Nona Sinfonia de Beethoven, a mais do que famosa obra (hoje Património Mundial da UNESCO) que, no final, junta à orquestra um coro, cantando a Ode à Alegria (ou Hino à Alegria), de Schiller.

Não é tanto desinteresse o que isto espelha, mas a falta de estruturas musicais à altura de fazerem uma sinfonia destas.

Já o Porto teria de esperar até 2 de junho de 1948 para ouvir pela primeira vez ao vivo a Nona Sinfonia, por uma orquestra e coro madrilenos em visita à cidade. Um último exemplo de atraso dá-o a data de estreia da única ópera de Beethoven - o Fidelio -, que só chegou ao Teatro São Carlos em fevereiro de 1952, mais de 140 anos depois da estreia.

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