A 26 de novembro de 2015, o rosto de Aníbal Cavaco Silva manteve-se crispado, sem nunca se abrir ao longo da cerimónia da tomada de posse do governo de António Costa. Quinze meses depois - na última linha do livro de 590 páginas sobre os seus tempos em Belém, Quinta-feira e Outros dias, que ontem apresentou -, o ex-presidente da República antecipa que esta "é uma história que não faz parte deste volume". Nada mais enganador..É no único elogio que dispensa a José Sócrates, primeiro-ministro socialista com quem coabitou de 2006 a 2011, que Cavaco Silva regressa a novembro de 2015, para melhor atacar o Governo a que deu posse contrariado: o do PS de António Costa, com o apoio parlamentar do BE, PCP e PEV. "Devo reconhecer que, na definição e execução das políticas económicas e sociais, o primeiro-ministro não se deixou captar pelo PCP ou pelo BE. Sempre o vi bem consciente de que o caminho defendido por esses partidos seria desastroso para Portugal e para os portugueses. O modelo leninista que querem implementar só tem gerado miséria e totalitarismo. A experiência mostra que, se o primeiro-ministro tivesse ido por aí, a herança deixada pelos governos a que presidiu teria sido muito pior.".Sem dedicar uma linha aos resultados económicos do atual Governo socialista, Cavaco sentencia da sua cátedra de professor catedrático - condição que invoca logo na segunda linha do livro, quando se interroga "como foi possível" chegar onde chegou: "Não existe na Europa, nem tão-pouco no mundo, qualquer país que seja desenvolvido e que registe um caminho de sucesso tendo partidos de extrema-esquerda a determinar a condução da política económica." Este parágrafo da página 484 retira qualquer surpresa ao anunciado próximo volume que publicará "em devido tempo". No mais, o livro é um ajuste de contas com Sócrates, com um relato exaustivo da versão de Cavaco do que foram as 188 reuniões semanais..O antigo Presidente da República escreve várias vezes que desconfiava das "boas notícias" sucessivas que lhe trazia o primeiro-ministro de então. Pondo na boca de Sócrates muitas frases, Cavaco assume sempre um tom professoral como quando em maio de 2010, perante a crise internacional e os mercados que podiam "derrotar" o país, escreve: "O primeiro-ministro seguiu a minha exposição, mas, pela sua reação, percebi que os seus conhecimentos de macroeconomia não chegavam para a entender.".Sócrates e o PS são acusados por Cavaco de tudo tentarem, "sem olhar a meios, para ganhar as eleições e para preservar a maioria absoluta no Parlamento". Estamos em 2009: "O controlo e a manipulação da comunicação social, de cuja fama não se livravam, e a pressão sobre os empresários - fragilizados pelo grau de endividamento -, seriam certamente armas que iriam ser utilizadas." Outro exemplo, segundo Cavaco, das relações pouco transparentes entre o socialista e a comunicação social é o da compra da TVI pela PT, no qual Sócrates lhe pediu para "pôr fim ao inquérito" parlamentar. Na volta, Cavaco respondeu: "O senhor primeiro-ministro sabe que isso é uma ideia absurda." O episódio das escutas de Belém é reduzido a uma "historieta de verão", "uma intriga política insidiosa", durante as férias algarvias da família Cavaco, "alimentada por setores do PS com a participação ativa de alguns órgãos de comunicação social", com a qual quiseram envolver o Presidente "na campanha eleitoral das eleições legislativas de 27 de setembro" de 2009..Este terceiro volume das memórias políticas de Cavaco é mais uma acha no mito também alimentado pelo próprio de que é "um intruso" na política, na qual chegou por "mero acaso", uma contradição de termos quando o próprio, para se comparar a Mário Soares, recorda "o ressentimento" do fundador do PS por ter "obtido mais de 50 por cento dos votos em quatro eleições" e ter desempenhado "as altas funções de primeiro-ministro e de Presidente da República mais tempo que ele". Sim, Cavaco ainda se diz um intruso, quando a política foi tudo menos um acaso na sua vida. Estas quase 600 páginas provam-no.