Levantou-se de repente e de modo totalmente desnecessário uma celeuma à volta do pai-nosso e de uma possível nova versão..Assim, a actual versão diz: "Pai nosso, que estais nos céus, santificado seja o vosso nome, venha a nós o vosso reino, seja feita a vossa vontade assim na Terra como no Céu. O pão nosso de cada dia nos dai hoje, perdoai-nos as nossas ofensas assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido e não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal." Na nova tradução, passaria a dizer: "Pai nosso, que estás nos céus, santificado seja o teu nome, venha a nós o teu reino, seja feita a tua vontade, como no céu, assim também na terra. O pão nosso de cada dia dá-nos hoje. Perdoa-nos as nossas ofensas, como também nós perdoamos a quem nos tem ofendido, e não nos leves à provação, mas livra-nos do Maligno.".Fica aqui a minha oposição a esta nova versão, sobretudo se se quiser introduzir na liturgia. Apresento algumas reflexões sobre o assunto..1. Não tenho objecção especial a que se introduza o "tu" dirigido a Deus. Mas, mesmo assim, chamo a atenção para o perigo de uma possível banalização que se tornou corrente nos dias de hoje. É preciso perceber que Deus se revelou como Abbá, querido Papá, mas ao mesmo tempo perceber que Deus é Deus, infinitamente para lá do "tu cá, tu lá", como alguns comentadores já chamaram a atenção, de modo agudo e até com alguma acidez. É como os pais e os professores. Alguns querem ser tão próximos e "amigos" e iguais dos filhos e dos alunos que, depois, perdem toda a autoridade e, de "amigos", passam a ditadores brutais, sem honra nem glória. Porque não sabem ser pais nem professores..2. O que me preocupa é sobretudo pretender trazer de novo o diabo, sob a designação de "o Maligno", pois ele tem muitos nomes, como Demónio, Belzebu, Mafarrico, Satanás, Satã, Lúcifer... Mas comecemos pela tentação, agora substituída pela provação..Como já aqui escrevi (ver "As tentações e o Diabo"), por influência também do Papa Francisco, está-se a rever, em várias línguas, a tradução dopai-nosso nesta questão da tentação, porque há o perigo de pensar que é Deus que leva à tentação. Como acontece no latim, "et ne nos inducas in tentationem"; no italiano, "e non c"indurre in tentazione"; no alemão, "und führe uns nicht in Versuchung"; no ingês, "and lead us not into temptation"; no francês, "et ne nous soumets pas à la tentation"..., sempre com o sentido de: não nos leves, não nos submetas à tentação. Portanto, há aqui sempre o pressuposto erróneo de que Deus é o responsável pelas tentações que podem levar ao pecado, pois seria Ele que nos conduz à tentação. Ora, se Deus é Amor, não tenta as pessoas. Na Bíblia, na Carta de São Tiago, lê-se: "Ninguém diga, quando for tentado para o mal, 'é Deus que me tenta', porque Deus não é tentado pelo mal, nem tenta ninguém. Cada um é tentado pela sua própria concupiscência, que o atrai e seduz." Deus nada tem que ver com o mal, pois Deus é o Bem e o anti-mal..Significativamente, nas línguas que já mudaram, adoptou-se a tradução que já consta na tradução portuguesa actual: "Não nos deixeis cair em tentação" ou na tentação..3. Mas fica a pergunta: é o diabo que tenta?.Nem de propósito, o Papa Francisco acaba de dizer, numa catequese sobre o pai-nosso: "Temos de excluir que seja Deus o protagonista das tentações que surgem no caminho dos homens. Como se Deus estivesse à espreita para armar ciladas aos seus filhos. Os cristãos não têm um Deus invejoso, que compete com o Homem, ou que se diverte, pondo-o à prova." Mas também afirmou: "Alguns dizem: para quê falar do diabo, que é uma coisa antiga, que não existe? Olha para o que diz o Evangelho: Jesus foi tentado por Satanás.".Começo por esclarecer que o diabo não faz parte do credo cristão. E, neste tema, é também Immanuel Kant que tem razão, ao colocar na boca de um catequizando iroquês uma excelente pergunta, a partir do pressuposto de que o diabo é preciso para explicar a tentação: se os diabos nos tentam, quem tentou os anjos, para, de anjos bons, se tornarem anjos maus, diabos?.Quando se fala no diabo, é essencialmente para encontrar uma resposta para o mal, personificando-o. Ora, colocar o diabo ao lado de Deus, como se fosse um anti-Deus, no quadro de um dualismo maniqueu, é uma contradição. O diabo não explica nada. O mal é inevitável por causa da finitude. Deus não pode criar outro Deus e, por isso, o mundo finito, em processo, encontra becos sem saída, contrariedades, conflitos, sofrimentos... Mas há quem não acredita em Deus e acredita no diabo..O diabo não é preciso para explicar as tentações. O ser humano, dada a sua natureza finita, carente, tensional, animal-racional, é sempre tentado, isto é, seduzido pelas "vantagens" aparentes do mal, e pode cair na tentação e, em vez de praticar o bem, praticar o mal e o pecado. E o que é o pecado? Aquilo que, pelo mau uso da liberdade, nos faz mal, a nós e aos outros. Por isso, tem sentido pedir a Deus que não nos deixe cair em tentação, na tentação, e que sejamos responsáveis, convertendo-nos..E há tantas tentações a seduzir-nos! A tentação da vaidade, da corrupção, da vingança, da preguiça, da utilização dos outros como simples meios, da ostentação, a tentação do laxismo caótico, de legislar a favor de interesses próprios ou do partido em vez do interesse do bem comum, a tentação de ensaio de jogos políticos indecorosos a pensar apenas nas eleições, a tentação da luxúria, a tentação do consumismo idiota, a tentação de não pagar o salário justo, a tentação do poder como domínio, a tentação de promessas eleitorais irresponsáveis e não cumpríveis, a tentação da retórica sofista, a tentação do roubo e de uma deletéria administração na banca e, a seguir, claro, a tentação do "esquecimento" e da mentira, a tentação do clericalismo e do carreirismo na Igreja, a tentação do poder e dos abusos sexuais... Atente-se: tudo isso nos aparece como vantajoso e, portanto, sedutor. Então, o que é preciso? Estar atento para não ir no engano; pelo contrário, ser ético, manter a dignidade, estar atento para não cair na tentação. O que é que se pede então a Deus? Que tenhamos atenção, que não pratiquemos o mal..3. Senhores bispos, ele há tanta coisa na Igreja que precisa urgentemente de ser mudada! Quanto ao pai-nosso, por favor, deixem estar como está. Tanto mais quanto a mudança só vai criar mais confusões, desnecessárias. Esteve bem o bispo de Lamego, António Couto, quando, a este propósito, sobriamente, disse à jornalista Natália Faria, do Público: "É polssível que haja um aspecto ou outro... mas temos de usar os rituais que são universais. Isto está tudo testado."