Cultura
16 fevereiro 2021 às 20h44

Carmen Dolores: de ingénua a grande senhora do Teatro português

Ao longo de mais de 60 anos fez teatro, cinema e televisão, disse poesia e representou clássicos com um profissionalismo reconhecido por público e crítica. Carmen Dolores, que morreu esta segunda-feira aos 96 anos.

O ator tem de saber ouvir o público no seu silêncio", escreveu Carmen Dolores em O Palco da Memória, o segundo de três livros em que evocou mais de 60 anos de carreira, que são, afinal, parte importante da História do Teatro (e um pouco do Cinema) português nas últimas décadas. Ela, que começou como heroína ingénua sob a direção de António Lopes Ribeiro, e que, como admitiria nessas mesmas memórias, "acabaria por preferir papéis de mulheres perversas, bem diferentes da sua própria natureza."

Carmen Dolores Cohen Sarmento nasceu em Lisboa a 22 de Abril de 1924, filha de María del Pilar Cohen e do jornalista (de vários títulos, incluindo o DN) José Sarmento. Da mãe, de origem espanhola, dizia ter herdado a boa disposição, do pai, morto precocemente quando ela tinha 15 anos, o amor aos livros, mas seria o irmão mais velho, António, a levá-la para o Radioclube Português, onde Carmen, com 14 anos, começaria a recitar poesia. Nesses tempos em que a rádio criava "estrelas" de popularidade invejável, António Lopes Ribeiro ouviu-a e convenceu-se que aquela doçura iria bem à sua Teresa de Albuquerque uma vez que, depois de uma série de filmes propagandísticos do Estado Novo, o realizador se propunha mudar de registo e adaptar Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco. Com os dias divididos entre o 6º ano do Liceu Filipa de Lencastre e a rádio, Carmen não foi fácil de convencer, mas, apoiada pelos irmãos, acabou por ir ver o que dava.

A estreia foi um sucesso. Ao papel de Teresa de Albuquerque seguir-se-iam outros filmes como A Vizinha do Lado, também de Lopes Ribeiro, Camões, de Leitão de Barros ou Três Espelhos, de Ladislao Vadja. No papel de heroína tão ingénua como trágica, recebia milhares de cartas de admiradores. Eles dirigiam-lhe declarações de amor, elas faziam-lhe confidências e pediam conselhos. Muitos anos mais tarde, em entrevista a Ana Sousa Dias (transmitida pela RTP) a atriz recordaria em particular uma dessas cartas em que uma jovem lhe dizia: "A Carmen, que já morreu de amor, talvez compreenda o meu caso."

Em 1945, estreava-se também no teatro, em papéis bem mais exigentes do que os oferecidos pelo Cinema português da época. Integrou a companhia Comediantes de Lisboa, dirigida por Lopes Ribeiro e seu irmão, Ribeirinho, formada por grandes nomes da época como Lucília Simões, Maria Lalande, João Villaret ou António Silva. À peça de estreia, Electra, a Mensageira dos Deuses, de Jean Giraudoux seguir-se-iam, entre outras Fim do Caminho, de Jean Giorno ou O Cadáver Visto, de Tolstoi, já como protagonista, ao lado de Villaret. Carmen daria tal conta de si que, na época de 1951-52, entraria na Companhia Rey Colaço-Robles Monteiro, sediada no Dona Maria II, e aí interpretou textos de Gil Vicente, Garrett, Pirandello, Luiz Francisco Rebello ou António Ferreira. A menina ingénua de modos hesitantes cedera lugar à mulher de teatro decidida a ir mais longe do que a mesquinhez do meio cultural da época recomendava.

Consciente já do poder transformador do teatro, no princípio da década de 1960 forma, com outros profissionais como Fernando Gusmão, Ruy de Carvalho, Rogério Paulo e Armando Cortez, a Companhia Teatro Moderno de Lisboa que, por escolha dela, se instalou no então novo Cineteatro Império, na Alameda Dom Afonso Henriques. O repertório escolhido (que ia de Strindberg a Steinbeck) incomodava o regime. Depois de uma muito polémica encenação da peça de José Cardoso Pires, O Render dos Heróis, foi-lhes recusada autorização para encenarem Os Porquinhos da Índia, de Ivan Jamiaque. Na falta desse espetáculo, a Fundação Gulbenkian cortou-lhes o subsídio de que dependiam e a companhia encerrou portas. Nos anos seguintes voltou à rádio e participou em dezenas de noites de teatrais transmitidas semanalmente, nas décadas de 60 e 70, pela RTP.

Mas a paixão pelo Teatro falou sempre mais alto do que os condicionalismos políticos ou orçamentais, ou do que o cansaço, como reconhecem os seus pares. Em declarações à agência Lusa, o encenador Carlos Avilez, que com ela trabalhou como ator, mas também a dirigiu no Teatro Experimental de Cascais, recorda "a magnífica voz, a sensibilidade e a elegância". E acrescentou: "Não conheço quem não gostasse da Carmen, fala-se dela e a classe inteira mostra um respeito e uma admiração. Ainda bem que chegou a ser homenageada em vida."

Nos anos 80 voltaria ao cinema, em dois filmes de José Fonseca e Costa, Balada da Praia dos Cães e A Mulher do Próximo e não hesitaria em participar em diversos projetos televisivos, desde a série Cobardias (baseada no texto do dramaturgo Miguel Rovisco) a telenovelas como Passarelle, A Banqueira do Povo ou A Lenda da Garça.

Carmen Dolores despedir-se-ia dos palcos em 2005, no Teatro Aberto, com a peça Copenhaga, dirigida pelo seu amigo João Lourenço, ao lado de Luís Alberto e Paulo Pires, mas não seria esquecida quer pelo público quer pelos seus pares. Em 2018, Diogo Infante (que ainda muito jovem a dirigira em O Jardim Zoológico de Cristal, de Tennessee Williams) escreveu a dramaturgia e levou ao palco do Trindade, aquele em que ela se estreara em 1945, a peça Carmen, que, a partir dos escritos da atriz, reconstituía alguns dos momentos mais marcantes da sua vida e carreira. Na estreia desta peça, a sala principal daquele teatro passou a chamar-se Carmen Dolores e o Presidente da República entregou-lhe as insígnias de Grande Oficial da Ordem de Mérito.

Ao tomar conhecimento da morte da atriz, Marcelo Rebelo de Sousa, em comunicado no portal da Presidência da República, afirmou que "esse reconhecimento, expressivo, simultâneo e constante, do público, dos pares e dos responsáveis políticos, é tão significativo quanto justo, tendo em conta o talento de Carmen Dolores, a sua carreira distinta e uma certa ideia de estar em palco e de estar no espaço público." O Presidente enalteceu a carreira da mulher de teatro, descrevendo-a como "atriz de repertório", que "interpretou, com rigor e elegância, os clássicos e os clássicos modernos"

Mulher de palavras, que também soube ser de causas e atos, Carmen Dolores foi ainda, com Manuela Maria, Armando Cortez e Raul Solnado, entre outros, um dos grandes nomes do teatro português que mais se bateu pela construção da Casa do Artista.

"O reconhecimento, expressivo, simultâneo e constante, do público, dos pares e dos responsáveis políticos, é tão significativo quanto justo, tendo em conta o talento de Carmen Dolores, a sua carreira distinta e uma certa ideia de estar em palco e de estar no espaço público.", Marcelo Rebelo de Sousa, Presidente da República.

"Uma atriz comprometida com a arte de pensar e de agir, num processo completo, que encantou o público, mas educou também e deu a conhecer, através da sua voz única, a diversidade e a riqueza da literatura portuguesa", Graça Fonseca, Ministra da Cultura.

"Não conheço quem não gostasse da Carmen, fala-se dela e a classe inteira mostra um respeito e uma admiração. Ainda bem que chegou a ser homenageada em vida.", Carlos Avilez, encenador, diretor do Teatro Experimental de Cascais

"Foi minha mãe, minha confidente, minha musa inspiradora, mas sobretudo minha amiga e é dessa de quem sentirei mais falta... Obrigado querida Carmen, por tudo!", Diogo Infante, ator.

"O extraordinário talento de Carmen Dolores andava de mãos dadas com uma enorme dignidade e elegância", Tiago Rodrigues, diretor artístico do Teatro Nacional D. Maria II.