"Quem está a ganhar são os suspeitos e arguidos dos crimes graves"

O procurador da República, Rui Cardoso, tem seguido atentamente o impacto no combate ao crime resultante do acórdão do Tribunal Constitucional que invalidou a conservação dos metadados das comunicações de todos os cidadãos para a investigação criminal.
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Fez uma análise, publicada neste mês na Revista do Ministério Público (MP) às implicações práticas que tem o acórdão do Tribunal Constitucional (TC), com base numa decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), que considerou inválida a conservação por um ano de metadados para fins de investigação criminal (Lei 32/2008). Quais foram as principais conclusões?

O acórdão do TC é merecedor de diversas críticas. Os grandes problemas que causou na investigação e julgamento de muitos crimes, e por isso na proteção das suas vítimas, que têm sido constantemente noticiados, foram agravados por uma leitura errada que desse acórdão tem sido feita por muitos tribunais, quer na primeira instância, quer nas Relações. Dele estão a retirar conclusões que o TC manifestamente não tira e que são até contrárias à jurisprudência do TJUE.

Olhando para os acórdãos que já foram publicados, onde se pode ver as decisões que estavam sob recurso, claramente se conclui que houve um entendimento de que os metadados de comunicações nunca poderiam ser utilizados como prova no processo penal por força do que foi decidido pelo TC.

Ora, não foi isso que disse o TC. O que foi alvo do acórdão do TC foi aquela específica Lei 32/ 2008 que, por um lado, previa a conservação dos metadados pelas operadoras para a finalidade processual penal e, por outro, definia as condições de acesso.

Ora os metadados de comunicações podem ser obtidos de muitas formas, inclusive com interceções telefónicas e pelos próprios interessados que podem apresentar a sua faturação detalhada como prova , obtendo-a nos termos da lei, juntos às operadoras. Os metadados por si não têm nenhum vício.

CitaçãocitacaoA questão que se tem colocado é se é válido hoje utilizar para prova no processo penal os dados que as operadoras conservam para efeitos de faturação. A minha resposta é, sem hesitação, que sim. Mas não tem sido esse o entendimento dos tribunais.

A questão que se tem colocado é se é válido hoje utilizar para prova no processo penal os dados que as operadoras conservam para efeitos de faturação. A minha resposta é, sem hesitação, que sim. Mas não tem sido esse o entendimento dos tribunais.

O Tribunais não compreendem isso porquê?

Desde o princípio que houve algumas incompreensões sobre o regime dos metadados que se foram sedimentando incorretamente, cuja gravidade não tinham grandes consequências, mas que agora, face à decisão do TC têm tido e muitas. Gerou um confluência de problemas.

Por um lado, incompreensão face ao regime que existia. Depois a decisão do TC. Tudo somado gera interpretações que não são mesmo as mais corretas, agravando as consequências.

Agravando as consequências ao ponto de desproteger as vítimas. Recentemente ficámos a saber que uma jovem desaparecida só foi encontrada oito meses depois, porque o MP demorou cinco meses a poder aceder aos dados da localização do telemóvel, depois de uma juíza ter recusado o acesso aos metadados da faturação. Há, de facto, muitos processos invalidados por causa disto?

CitaçãocitacaoDo que me chega ao conhecimento, tem havido recusa quase generalizada pelos tribunais de acesso e utilização desses dados, que as operadoras conservam para efeitos de faturação; e, quando tinham sido obtidos em inquérito, não são valorados em julgamento.

Do que me chega ao conhecimento, sim, tem havido recusa quase generalizada pelos tribunais de acesso e utilização desses dados, que as operadoras conservam para efeitos de faturação; e, quando tinham sido obtidos em inquérito, não são valorados em julgamento.

Ainda que, em meu entender, isso seja legalmente admissível e a tal não se oponha o acórdão do TC, nem tão pouco o TJUE. Isso tem sucedido (e noticiado na comunicação social ou mesmo publicado em acórdãos dos tribunais superiores) em muitos processos por crimes muito graves, nomeadamente sexuais cometidos sobre crianças, mas também homicídios e raptos. São processos reais, com vítimas reais.

E os processos em que a prova dos metadados com base na Lei 32/2008 tinha sido utilizada antes do acórdão?

Como o TC manteve os casos julgados, foram poucos os recursos de revisão interpostos. Não obstante, nos sete cujos acórdãos do STJ estão publicados online, todos eles improcedentes, só num caso tinha havido efetiva aplicação dos metadados cuja conservação e obtenção se incluía nas normas declaradas inconstitucionais. Nos demais, ou não havia sequer metadados de telecomunicações, ou eram resultado de interceções telefónicas, por isso fora do âmbito dessas normas.

Num dos acórdãos que cita no seu artigo o juiz diz que «não podemos tentar tornear o referido acórdão do Tribunal Constitucional, "deixando entrar pela janela" aquilo a que ele "fechou a porta". Esse acesso aos metadados da faturação não é isso?

Essa leitura resulta, em meu entender, de uma leitura indevida e sem fundamento dos acórdãos do TC e do TJUE. Nem um nem outro alguma vez disseram (pelo contrário) que os metadados das telecomunicações não podem ser usados como meios de prova no processo penal.

CitaçãocitacaoO que estava em causa era apenas a conservação universal realizada por imposição dos Estados para esses efeitos. Mas os metadados (ou pelo menos alguns deles) podem ser licitamente obtidos por outras formas, como interceções de comunicações ou até serem fornecidos pelas pessoas deles titulares (com as faturações detalhadas).

O que estava em causa era apenas a conservação universal realizada por imposição dos Estados para esses efeitos. Mas os metadados (ou pelo menos alguns deles) podem ser licitamente obtidos por outras formas, como interceções de comunicações ou até serem fornecidos pelas pessoas deles titulares (com as faturações detalhadas).

Por outro lado, os vícios que o TC apontou à Lei 32/2008 não existem para o Código do Processo Penal (CPP) e para a lei que permite às operadoras a conservação para efeitos de faturação. Em meu entender, isso é perfeitamente legal e conforme com a jurisprudência do TC e do TJUE, tribunal este que já expressamente o admitiu.

Porém, não tem sido esse o entendimento de muitos juízes de instrução, o que tem inviabilizado a obtenção dessa prova em tempo útil, como sucedeu num caso recente com uma criança muito noticiado.

Acresce que estes dados não são tão ricos como os outros que já foram destruídos...

O que têm a menos?

Como são para efeitos de faturação, a operadoras só podem conservar os necessários para esse fim. Quer a localização celular, quer o endereço IP, só poderão ser guardados se forem necessários para faturação, o que não podemos saber antecipadamente se acontece, com exceção, talvez, dos casos em que o cliente esteja no estrangeiro. Isto além do prazo de conservação que nesse caso é só de seis meses e antes era um ano.

E faz muita diferença para uma investigação que esses metadados só tenha um histórico de seis meses em vez de um ano?

Depende de quão rápida chegou a notícia do crime ao Ministério Público e às polícias. Se for tardia, o que frequentemente acontece, os seis meses podem já ter passado. Daí que esses outros seis meses podem fazer toda a diferença.

Passou quase um ano (abril de 2022) desse acórdão e ainda estamos sem nova legislação, um atraso que terá a ver com a intenção de aguardar pelo processo de revisão constitucional que está a iniciar, que que há uma proposta para permitir aos serviços de informações que acedam ao metadados. O que este atraso está a provoca na prática?

Se é isso que se aguarda, não se consegue perceber o motivo. Não há qualquer projeto de revisão constitucional que proponha qualquer alteração relevante nesta matéria. Apenas CHEGA, PS e PSD apresentaram propostas sobre o problema dos metadados das telecomunicações. A proposta do CHEGA nada altera verdadeiramente. As do PS e PSD só propõem alterações para permitir o acesso a esses dados pelos serviços de informações, não pelos tribunais.

CitaçãocitacaoNão aparenta boa saúde o Estado de Direito quando se pretende permitir aos serviços de informações aquilo que se nega aos tribunais. Não havendo nova lei, há que fazer uma reinterpretação do ordenamento vigente, sem as normas declaradas inconstitucionais. O que, porém, tem tido resultados muito insatisfatórios.

Não aparenta boa saúde o Estado de Direito quando se pretende permitir aos serviços de informações aquilo que se nega aos tribunais. Não havendo nova lei, há que fazer uma reinterpretação do ordenamento vigente, sem as normas declaradas inconstitucionais. O que, porém, tem tido resultados muito insatisfatórios.

Toda a UE está num impasse a tentar uma nova legislação que seja validada pelo TJUE. Há uma solução que acautele direitos fundamentais dos cidadãos e a necessidade deste meio de prova para combater o crime?

O problema é que os critérios para a admissibilidade da conservação universal dos metadados - aquela que é imprescindível, pois, no momento da comunicação, não se sabe nem pode saber se aqueles dados respeitam a uma vítima ou a um agente do crime, ou se não têm qualquer relevância - indicados pelo TJUE e depois pelo TC ou são manifestamente inconstitucionais, por poderem discriminar determinados grupos de pessoas, com base no seu passado ou na sua morada ou na sua raça, ou são inexequíveis (como é que, antecipadamente, se pode saber que pessoas andam a preparar um crime grave e onde é que estão quando comunicam eletronicamente?) ou são completamente irrelevantes.

CitaçãocitacaoHá já vários Estados-Membros, com problemas graves de terrorismo e criminalidade violenta - para quem estes metadados são imprescindíveis para a investigação - a subtilmente ameaçar deixar de reconhecer estas decisões do TJUE.

E isso é insuperável em todos os países da UE, havendo já vários Estados-Membros, com problemas graves de terrorismo e criminalidade violenta - para quem estes metadados são imprescindíveis para a investigação - a subtilmente ameaçar deixar de reconhecer estas decisões do TJUE.

Falo de França, por exemplo, cujo representante no TJUE deixou subentendido nas suas alegações que poderia acontecer isso no futuro. Seria uma coisa gravíssima no seio da UE.

Esse equilíbrio que refere não foi acautelado pelo TJUE, nem pelo TC. A conservação universal tem de existir porque, repito, não sabemos quando vão ser necessários.

O equilíbrio já existia. Estava nas garantias em relação à proteção dos dados, encriptação, etc.. Por outro lado, só podiam ser acedidos para fins específicos de investigação criminal, para crimes graves e com autorização de um juiz. Nunca houve qualquer devassa generalizada.

E garantir uma fiscalização eficaz, coisa que a CNPD não assegurou desde a decisão do TJUE em 2016?

Em teoria, as operadoras podiam ter andado anos a vender os dados a quem quisessem e ninguém sabia porque a CNPD recusou fiscalizar. É preciso ainda não esquecer que há muitos outros dados importantes que são conservados por tempo indeterminado e ninguém se preocupa. Quanto tempo guardam os bancos os nossos dados? Tudo o que compramos com cartão, todos os nossos movimentos ficam registados. Os fornecedores globais de internet guardam tudo também, as nossas interações, preferências, pesquisas, contactos. Há uma perversão de valores muito grande.

Quem ganha e quem perde com a atual situação?

Segundo o TJUE e o TC, ganham todos os cidadãos, que vêm os metadados respeitantes às suas telecomunicações destruídos e por isso protegidos da devassa por parte do Estado. Mas isso é algo muito abstrato, pois não havia qualquer devassa generalizada desses dados.

CitaçãocitacaoNão há notícia em nenhum país da Europa de violação desses dados. Os mesmos ficavam conservados por um período (um ano, em Portugal) e só podiam ser acedidos por ordem de um juiz, num processo por um crime grave, e se respeitassem a suspeito, arguido ou vítima, e quando fossem indispensáveis para a prova. Isso era e é imprescindível para a proteção de todas as pessoas, pois todas são potenciais vítimas de crimes graves.

Não há notícia em nenhum país da Europa de violação desses dados. Os mesmos ficavam conservados por um período (um ano, em Portugal) e só podiam ser acedidos por ordem de um juiz, num processo por um crime grave, e se respeitassem a suspeito, arguido ou vítima, e quando fossem indispensáveis para a prova. Isso era e é imprescindível para a proteção de todas as pessoas, pois todas são potenciais vítimas de crimes graves.

Já referiu alguns casos de crimes graves em que isso aconteceu. Há ainda os casos de raptos, situações de pornografia infantil, que se têm visto nos acórdãos. Para além disso, boa parte desses dados são e continuarão a ser conservadores pelas operadoras para efeitos de faturação, sob pena de terem de fechar a atividade.

CitaçãocitacaoPor isso, quem ganhou foram apenas aqueles que, sendo suspeitos ou arguidos por crime grave, assim viram impossibilitado o acesso aos metadados das suas telecomunicações, mais facilmente podem ficar impunes e, assim continuar as suas atividades criminosas.

Por isso, quem ganhou foram apenas aqueles que, sendo suspeitos ou arguidos por crime grave, assim viram impossibilitado o acesso aos metadados das suas telecomunicações, mais facilmente podem ficar impunes e, assim continuar as suas atividades criminosas. Todas as demais pessoas perderam: por um lado, aos seus dados nunca haveria acesso, e, por outro, ficaram muito mais desprotegidas.

Como se sai deste impasse? Como se endireita o que "nasceu torto", usando as suas palavras do artigo?

A Constituição poderia deixar clara a possibilidade de acesso a esses dados em processo judicial para a prevenção, investigação e repressão de crimes graves. A lei ordinária também deve ser alterada, o que pode ser feito sem desrespeito pela doutrina do TC.

CitaçãocitacaoNão há direitos fundamentais absolutos. A questão é ter o equilíbrio adequado com outros. Quer o TJUE, quer o TC estavam convencidos, não sei se ainda estão, que havia outras formas de obter esta prova. Só que não há.

Não há direitos fundamentais absolutos. A questão é ter o equilíbrio adequado com outros. Quer o TJUE, quer o TC estavam convencidos, não sei se ainda estão, que havia outras formas de obter esta prova. Só que não há.

Estamos perante uma desproteção total de todas as pessoas que o tribunal devia ter ponderado. O dever principal dos Estados é proteger as pessoas contra ameaças reais. Houve uma grande insensibilidade que acho incompreensível, com consequência graves.

Mas é imprescindível que o TJUE e o TC reponderem as suas posições, designadamente ao nível da proporcionalidade entre o risco muitíssimo abstrato de violação indevida de metadados conservados e o perigo muitíssimo concreto de desproteção da vida, liberdade, autodeterminação sexual, etc., de todas as pessoas, incluindo crianças. Até lá, há que interpretar e aplicar melhor o direito vigente, o que, em minha opinião, não está a ser feito pela generalidade dos tribunais.

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