Lisboa "vestiu-se" de multidão e Papa disse aos jovens que "Deus não aponta o dedo"

Um autêntico "banho" de pessoas, um autêntico festival de juventude, de música e de mensagens. Assim foi o primeiro encontro do Papa, às claras, com Lisboa, na tarde desta quinta-feira. De Papamóvel, praticamente sem proteção, surpreendeu a cidade, percorrendo ruas, o Marquês e o Parque Eduardo VII. Na homilia, questionou os jovens sobre "o que podem levar aos outros?" e disse-lhes que eles são o futuro, mas também o presente, e é hora de agir. De manhã, na Católica, pediu que arriscassem.
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Depois dos recados aos políticos e à Igreja, dirigidos no primeiro dia desta visita a Portugal, por ocasião da Jornada Mundial da Juventude (JMJ), a decorrer até domingo, o Papa Francisco dirigiu-se esta quinta-feira, pela primeira vez, aos jovens, num grande encontro, no Parque Eduardo VII, para onde os peregrinos se começaram a dirigir desde manhã cedo. Pelas 16h00, já a colina do parque estava à pinha e, à volta do Marquês, já milhares de peregrinos estavam concentrados para o verem. Pode mesmo dizer-se que Lisboa viveu um festival de juventude, de música e de mensagens. Foi o primeiro verdadeiro banho de multidão desde a chegada e repetiu-se pelas 19:00, quando regressava à Nunciatura, depois de a celebração ter terminado em euforia no Parque Eduardo VII, onde estiveram meio milhão de pessoas, segundo os números oficiais.

O Presidente da República foi dos primeiros a chegar e a ser confrontado com os recados enviados por Francisco, no dia anterior, aos políticos, nomeadamente pela promulgação da Lei da Eutanásia, mas respondeu que não era o local indicado para se falar do assunto. Outras figuras foram chegando, como o primeiro-ministro, António Costa, que dizia no final ter sido um "momento extraordinário", referindo-se "à vitalidade dos jovens e à força que o Papa tem transmitido nos seus apelos para que se mobilizem".

António Costa disse ainda aos jornalistas que as mensagens do Papa, e sobretudo a que enviou esta quinta-feira aos jovens, de convocatória para a resolução dos problemas globais, "é para todos, crentes e não crentes". As reações sucederam-se, mas ao início da tarde já se esperava que fosse este o impacto do primeiro encontro do Papa com os jovens e com os demais peregrinos.

De tal forma que o Papa Francisco antecipou a sua saída da Nunciatura Apostólica para as 16h45 (estava prevista para as 17h00), no Papamóvel - onde foi acompanhado pelo cardeal-patriarca de Lisboa -, para se dirigir ao Marquês e saudar a multidão que o aguardava.

Ao fim de 24 horas, o Papa chegava aos lisboetas e emocionava-os, deixando-se ver sentado no Mercedes que o transportava sem qualquer proteção, numa verdadeira aventura quanto à segurança pessoal. Mas o Papa acenava, cumprimentava, sorria. O barulho era ensurdecedor e ouvia-se mais uma vez o grito desta Jornada: "Esta é a juventude do Papa".

Ao longo do percurso, bandeiras, muitas, portuguesas, espanholas, italianas, moçambicanas, norte-americanas, francesas, croata, suíça, brasileira, argentina, da União Europeia. Lisboa foi uma cidade de bandeiras, de vivas ao Papa e de emoção. Às 17h00 entrou na Colina do Encontro, por um corredor, entre peregrinos, e parou para cumprimentar alguns, contornando, mais uma vez, a segurança.

De telemóveis em punho, às cavalitas, alguns entre choros e risos, os jovens gritavam pelo Papa. Nas colunas de som ouvia-se o coro e a orquestra que interpretava uma rapsódia de hinos de jornadas passadas, Roma (2000); Sydney (2008); Cracóvia (2016) e Panamá (2019).

E o Papa teve de dar mais uma volta à Colina do Encontro. No palco, jovens reforçavam: "Esta é a juventude do Papa", seguindo-se depois o hino da JMJ de Lisboa. Durante o tempo em que o Papa se preparava para a celebração na sacristia, os ecrãs gigantes passavam um vídeo cronológico sobre a história da JMJ, desde 1986 até 2023.

Quando o Papa regressou ao palco, nova ovação e gritos: "Papa Francisco". Depois, a música, "Joyful, joyful", interpretada pela cantora Mimi Froes, acompanhada pelo coro e orquestra. A celebração de acolhimento começava de forma festiva e as primeiras palavras foram do cardeal patriarca, D. Manuel Clemente, para agradecer ao Papa por estar nesta JMJ, dizendo acreditar que, daqui, os jovens poderão levar uma ação promissora para os seus países.

Depois, seguiram-se testemunhos de jovens, inspirados nas cartas que o Papa recebe diariamente, cerca de duas mil. Foram 50 jovens de 20 países que os leram, como forma de revelar o que sentem e o que pensam os jovens de agora. A cerimónia não podia deixar de ter bandeiras, uma marca desta JMJ. E pelo parque desfilaram 180, tantas quantos os países inscritos na Jornada, que desfilaram ao som da música um "Um Dia de Sol", original de Héber Marques, um cristão evangélico, feita para este momento. Outros símbolos e ícones, como uma cruz com quase quatro metros, foram levados ao palco, quando se ouvia Mariza a cantar o fado "Foi Deus", de Amália Rodrigues.

Depois foi a vez da liturgia da palavra, com as leituras do dias e a homilia de Francisco. Fez-se silêncio para o ouvirem e, mais uma vez, o Papa surpreendeu. Não tanto pela mensagem, mas pela forma como a transmitiu, pedindo a certa altura que todos repetissem com ele que "a Igreja tem espaço para todos, todos, todos", que Deus ama "todos como são, sem maquilhagem".

No início, agradeceu aos que ali estavam e ao patriarca português: "Queridos jovens. Sede bem-vindos e obrigado por estardes aqui. É bom estarmos juntos em Lisboa". E, de imediato, fez uma convocatória, uma espécie de chamamento, dizendo-lhes: "Amigos, não estais aqui por acaso. O Senhor chamou-vos, não só nestes dias, mas desde o início dos vossos dias. Sim, Ele chamou-vos pelo nome. Chamados pelo nome: tentai imaginar estas três palavras escritas em letras grandes e, em seguida, pensai que estão escritas dentro de vós, nos vossos corações, como que formando o título da vossa vida, o sentido do que sois. Chamados pelo nome: não é um simples modo de dizer, é Palavra de Deus. Se Deus te chama pelo nome significa que, para Ele, não és um número, mas um rosto".

Francisco fez mesmo questão de dizer que, hoje, muitos "sabem o teu nome, mas não te chamam pelo nome. Com efeito, o teu nome é conhecido, aparece nas redes sociais, é processado por algoritmos que lhe associam gostos e preferências. Mas tudo isso não interpela a tua singularidade, apenas a tua utilidade para pesquisas de mercado".

A ilusão da realidade virtual voltou ao seu discurso, pedindo que tenham cuidado, e dirigiu-se diretamente aos jovens que lhe enviaram cartas, citando excertos. "Alguns disseram-me: 'Assusta-me porque sei que há pessoas que não me aceitam e que acham que não há um lugar para mim (...), eu própria chego a questionar-me se há um lugar para mim ou não'". Ou ainda: "Sinto que na minha paróquia não há espaço para errar".

Mas, diz-lhes o Papa, "quero ser claro convosco, que sois alérgicos às falsidades e a palavras vazias: na Igreja há espaço para todos e, quando não houver, para todos, façamos com que haja, mesmo para quem erra, para quem cai, para quem sente dificuldade". E lembrou: "O Senhor não aponta o dedo".

"A Igreja é, e deve ser cada vez mais, aquela casa onde ressoa o eco da chamada pelo nome que Deus dirige a cada um. O Senhor não aponta o dedo, mas alarga os braços: assim no-lo mostra Jesus na cruz. Não fecha a porta, mas convida a entrar; não mantém à distância, mas acolhe. Nestes dias transmitamos a sua mensagem de amor, que liberta o coração e deixa uma alegria que não desaparece."

O Papa impeliu ainda os jovens a questionarem-se sobre "o que podem levar aos outros" e quando se questionarem sobre o medo de não serem capazes, porque "todos temos os nossos temores", pensem que todos "somos humanos" e que "Deus chama-nos precisamente nos nossos medos. Não chama aqueles que se sentem capazes, mas torna capazes aqueles que chama".

Francisco tem dito e repetido nestes dois dias que os jovens não são só futuro, são também o presente. E na mensagem final disse-lhes para fazerem duas coisas:"Primeiro, chamemo-nos pelo nome e lembremos uns aos outros a beleza de ser amados e preciosos! Segundo: ponhamos as nossas questões a Jesus, que nestes dias espera muitas chamadas da nossa parte. Estejamos em conexão com Ele. Conectados com o amor, a alegria crescerá".

O que trouxe a euforia para o final da celebração. As reações de quem lá estava não se fizeram esperar: a Igreja "é de todos e para todos", repetiam muitos, como um alerta para a própria Igreja portuguesa.

Durante a manhã, na Universidade Católica, o Papa ouviu a reitora da instituição, Isabel Capeloa Gil, a dizer que a universidade que dirige cultiva o saber, mas também humaniza, anunciando a criação de uma nova cátedra para apoiar as áreas sociais. Francisco ouviu também quatro jovens - Tomás, Mariana, Beatriz e Mahoor, uma estudante iraniana, ajudada pela Católica -, contarem os seus testemunhos sobre como exercem a sua fé no dia-a-dia, como as suas vidas mudaram com a encíclica Laudato Si" ou com o movimento Economia de Francisco, ou, simplesmente, como o disse Mahoor, como se pode voltar a sentir forte depois de perder tudo (lar e família).

Quando foi a sua vez de falar, o Papa dirigiu-se aos jovens, mas também à sociedade civil e aos académicos. Aos jovens disse para desconfiarem das "fórmulas pré-fabricadas, das respostas que nos parecem ao alcance da mão, extraídas da manga como se fossem cartas viciadas de jogar; desconfiemos das propostas que parecem dar tudo sem pedir nada".

Mas disse-lhes também para não terem medo, sobretudo de se "sentirem inquietos, de pensar que tudo o que possamos fazer não basta". "Neste sentido e dentro duma justa medida, ser descontente é um bom antídoto contra a presunção da autossuficiência e o narcisismo. O ser incompleto caracteriza a nossa condição de indagadores e peregrinos", acrescentou. O Papa voltou a repetir que se vive um momento histórico, que os desafios são enormes e fez um apelo, para que os jovens "abracem o risco de pensar, que sejam protagonistas duma nova "coreografia" que coloque no centro a pessoa humana". "Sede coreógrafos da dança da vida".

Aos académicos e à universidade, que se comprometem a formar as novas gerações, disse-lhes que "seria um desperdício" perpetuar sistemas elitistas e desiguais. No final, uma questão para os jovens: "Que quereis ver realizado em Portugal e no mundo? Que mudanças, quais transformações? E como pode a universidade, especialmente a Católica, contribuir para isso?", interrogou.

Francisco visitou depois, em Cascais, a Scholas Occurrentes, um projeto criado por Jorge Bergoglio quando ainda era bispo de Buenos Aires. Assim que chegou , e perante uma sala de paredes pintadas, comentou: "Isto é uma capela sistina pintada por vós", elogiou. Ali respondeu também às questões dos jovens, cerca de 70, que enchiam a sala. Falou com um jovem guineense e um muçulmano, e pediu a todos os crentes que rezassem por ele.

Àqueles que não têm credo, que lhe enviassem "boas ondas". Mas deixou-lhes uma mensagem: "Uma vida sem crise é como água destilada. Não sabe a nada, não serve para nada. É preciso assumir a crise e enfrentá-la".

E lembrou que "todos passamos por momentos obscuros, de caos. O caos deve ser transformado num cosmos. Esse deve ser o caminho". Por vezes, comentou, "mais vale sujarmos as mãos do que sujarmos o coração".

No final, Francisco deu a última pincelada num mural com mais de três quilómetros, benzeu a Oliveira da Paz e ouviu o fado Recado, à capela, por Cuca Roseta, saindo depois ao som da Ave Maria, também pela fadista, madrinha daquele projeto, que diz ser "incrível".

No regresso, sempre acompanhado por peregrinos e curiosos, voltou a abençoar duas crianças junto à Nunciatura Apostólica e uma mulher em cadeiras de rodas. Mas o momento alto deste convívio entre jovens e o Papa estava mesmo reservado para a tarde, no Parque Eduardo VII. Onde lhes deixou um apelo: "sejam protagonistas", e não conformistas.

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