Maria, vamos chamar-lhe só assim, é vítima de assédio laboral por parte do diretor do serviço onde trabalha em Coimbra. Tudo começou após o nascimento da filha mais nova. Ao fim de algum tempo, avançou com queixas no sindicato, na ordem, na ACT e no Tribunal Trabalho. Quando chegou à primeira audiência para julgamento, a juíza pressionou para que chegasse a acordo. Aceitou. Três anos depois está a reativar os processos, o assédio mantém-se. O hospital considerou que o seu caso era um conflito laboral..Ao DN, Maria apresenta-se como mulher de 44 anos e médica diferenciada em doenças raras no Centro Hospitalar Universitário de Coimbra (CHUC), área que abraçou, sobretudo a nível da pediatria, assim que se licenciou em medicina naquela cidade e que ingressou, em 2002, no internato geral, no Hospital dos Covões. Foi aqui que acabou por fazer a especialidade, entre 2005 e 2011. Depois, podia ter escolhido fazer só atividade laboratorial, mas não. Quis ser médica, e o contacto com os doentes e a vertente clínica eram quase como uma imposição no seu percurso profissional, no qual apostou "tudo" ao longo dos anos, com mais formação dentro e fora do país, com investigação e agora com o doutoramento..Ao mesmo tempo que se formava teve o primeiro filho, tudo corria bem na vida que tinha escolhido, sentindo-se realizada por, graças ao seu currículo na área pediátrica, o serviço onde trabalha, desde 2016, e é vítima de assédio, desde 2018, alcançasse a certificação de Centro de Referência..Mas, hoje, Maria olha para os últimos seis anos e desenha uma linha profissional de "isolamento", "sofrimento", de "assédio laboral" das "mais variadas formas" e com "episódios inesquecíveis". Assume mesmo que "o assédio é algo insidioso, que nos destrói. Não vivi os dois primeiros anos da minha filha mais nova, tão embrenhada que estava em tentar defender-me". E não tem medo de assumir: "Hoje vivo com antidepressivos, ansiolíticos e com comprimidos para dormir"..O advogado de Maria reconhece-lhe o profissionalismo como médica e, como pessoa, "é uma grande mulher, uma lutadora. Ao longo deste processo quase que tirou um curso de Direito para poder defender-se", sublinhando que "é muito importante que os médicos, enquanto potenciais ou verdadeiras vítimas de assédio, saibam quais são os seus direitos e como devem lidar com a situação"..O assédio está inscrito na legislação portuguesa desde os primeiros anos da década de 2000, a última alteração ocorreu num 16 agosto, com a Lei 73/2017. Mesmo assim, e apesar de ser uma prática "repudiada" pela Organização Internacional do trabalho, pelo Código do Trabalho e pela Comissão de Igualdade, continua a existir..Na classe, Ordem e Federação Nacional dos Médicos (FNAM) assumem que "é uma prática reiterada". O advogado de Maria diz que "é uma violência que destrói as pessoas", acreditando que, finalmente, se está a iniciar "o caminho que a violência doméstica já fez até aqui". Como homem do Direito, acredita que um dia se fará justiça no caso de Maria, que só aceitou falar ao DN por ainda ter uma réstia de esperança de que "algo possa mudar"..Mas o contar a sua história tinha condições, referia o hospital onde trabalha, pois o caso é conhecido entre os pares e pelas duas administrações a quem se queixou, mas não revela nomes, por não querer que tal possa "afetar ou prejudicar os doentes" que são tratados no serviço..Não tem medo, tem feito tudo dentro da lei, desde que sentiu estar a ser vítima de assédio laboral, palavra que ouviu pela primeira vez da boca do advogado que ainda a acompanha e que pertence ao Sindicato dos Médicos da Zona Centro, ao qual recorreu, meses depois de o comportamento do diretor de serviço ter mudado em relação a si, para procurar saber se o que lhe estava a fazer era legal. "Foi o meu advogado que me disse pela primeira vez: "Maria isso é assédio laboral". Na minha vida, procurei sempre estar esclarecida sobre os meus deveres e direitos, o que acho que, nos tempos que vivemos, é cada vez mais importante, mas, até março de 2018, nunca tinha interiorizado que, afinal, estava a ser vítima de violência moral", comenta ao DN..Destaquedestaque"A pressão (da juíza) foi tanta que o meu advogado disse-me: "A decisão é sua, mas se teimarmos em prosseguir para julgamento, ela pode prejudicar-nos". Em poucas horas tive de olhar para trás e decidir se continuava pela justiça ou se tentava resolver a situação ali. Aceitei.".Depois desta primeira reunião, Maria percebeu que a situação poderia tomar outras proporções e passou a fazer tudo o que o advogado lhe disse para ter provas que fundamentassem o que estava a passar. O objetivo era tentar, em primeiro lugar, uma solução interna, através da cadeia hierárquica. Se não resultasse, então tinha para si que iria até ao fim, avançando para outras entidades, Ordem dos Médicos (OM), Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT) e Tribunal do Trabalho. Foi o que fez, tendo a chegado à barra do tribunal contra o diretor de serviço e contra o presidente do Conselho de Administração do CHUL, como responsável máximo da instituição, em fevereiro de 2020..Mas logo na primeira audiência percebeu que "a juíza não estava preparada para este processo, não fazia ideia das especificidades e características do desempenho da atividade de um médico. E pressionou muito para que se chegasse a um acordo. Disse sempre que o acordo seria possível se me devolvessem as funções que desempenhava antes da minha filha nascer. Ela não entendeu o que era isto, defendendo que ambas as partes tinham de desistir em 50%. Ora, isto não pode ser assim na atividade médica", desabafa.."A pressão foi tanta que o meu advogado disse-me: "A decisão é sua, mas se teimarmos em prosseguir com o julgamento, ela pode prejudicar-nos". Em poucas horas tive de olhar para trás e decidir se continuava pela justiça ou se tentava resolver a situação ali. Aceitei o acordo. Tive de desistir de todas as outras queixas e informar as entidades de que tinha chegado a acordo", conta..Naquela tarde, saiu do tribunal com o sabor amargo de que tinha perdido, para ela não tinha sido feita justiça, mas teve de mudar o raciocínio, até porque iria recuperar algumas das suas funções, como voltar à sua consulta e a ver os seus doentes: "Não ganhei, mas também não perdi", dizia para si. Mas o CHUC não tem cumprido o acordo. Três anos depois Maria coloca tudo de novo em cima da mesa e começa a reativar os processos, podendo entrar com novo processo no Tribunal do Trabalho com provas já recolhidas nestes últimos três anos. O assédio continua, mas não vai desistir. "Investi muito na minha formação para desistir de tudo, só porque alguém quer. Sinto que ainda não é a hora. Tenho uma réstia de esperança de que haja alguém que chegue, como o diretor executivo do SNS, que me deu alguma esperança ao falar das chefias e das lideranças, no sentido em que estas não podem prejudicar os hospitais, e faça alguma coisa.".Na vida de Maria, há um antes e um depois de ser vítima de assédio laboral. O antes circunscreve ao período de formação e atividade no Hospital dos Covões e a alguns meses no serviço onde está, no Hospital Universitário de Coimbra, para o qual mudou depois da fusão destas duas unidades em centro hospitalar.."Com a fusão em centro hospitalar, houve serviços que se fundiram e desapareceram, e eu acabei por sair do serviço onde me formei nos Covões para integrar o hospital universitário. A fusão é de 2011, mas só em 2015 é que se começaram a verificar mudanças no terreno"..Na altura, "falei com colegas que me aconselharam a aceitar a mudança, até para seguirmos com o projeto de transformar o serviço num centro de referência para a área das doenças raras. Tudo me pareceu bem, mudámos em 2016 e fomos recebidos de braços abertos no novo serviço. Íamos como os colegas que iriam fazer a parte clínica, pois a maior ia dos colegas do universitário dedicava-se mais ao laboratório. Com a nossa entrada, o serviço alcançava atividade plena. Sentia mesmo que éramos vistos como uma mais-valia e continuei a trabalhar como sempre, sobretudo no hospital pediátrico, onde tinha uma consulta, tomava conta do internamento e dos pedidos de colaboração de todos os serviços"..Mas, no final de 2016, engravida e faz o que fez nos Covões aquando da gravidez do primeiro filho. "Começo por alertar a direção do serviço e pedir que indiquem alguém que me possa substituir para dar formação. O coordenador do serviço diz-me que irá colocar o interno de último ano da especialidade a acompanhar-me uns tempos no pediátrico, para assumir as funções enquanto estivesse fora. Em maio de 2017, entro de licença de maternidade, a minha bebé nasce no início de junho"..Nesta altura, corria o processo de certificação do serviço em centro de referência. A resposta positiva chegou em agosto. "Ficámos todos muito contentes", afirma, mas é aqui, e quando olha para trás, que percebe que algo começa a mudar. "Em agosto, o responsável de setor liga-me a perguntar se já tinha perspetiva de quando voltava, porque tinha de comprar passagens para ir ver o filho que estava fora em Erasmus. Disse-lhe com toda a sinceridade não fazer ideia. A licença era de X dias, mas estava a pensar gozar as férias daquele ano e ainda tinha 42 folgas por tirar", relata ao DN. "A conversa ficou por ali, mas a minha vida piora muito. Em outubro, a minha mãe morre subitamente. Foi um duro golpe. E quando se começa a aproximar o fim da licença tento confirmar com o diretor de serviço se posso gastar as tais férias do ano e se ele me autoriza gozar as 42 folgas. Precisava de tempo", recorda Maria, que ainda hoje não encontra outra explicação para o que tem vindo a passar senão "o facto de ter engravidado, ter tido uma filha e de ter querido gozar os meus direitos.".Destaquedestaque"Foi o meu advogado que me disse pela primeira vez: "Maria isso é assédio laboral". Na minha vida, procurei sempre estar esclarecida sobre os meus deveres e direitos, mas, até àquela altura, março de 2018, nunca tinha interiorizado que estava a ser vítima de violência moral." .Tenta o contacto com o diretor de serviço por email e através da sua secretária. "Queria organizar a minha vida, queria saber se dispunha daquele tempo. Fiz inúmeros contactos, mas nunca consegui chegar à fala com ele. Contacto o coordenador de setor que me diz que ele estava de férias, mas, sinceramente, para mim, os emails enviados e todas as minhas tentativas de contacto eram apenas para me sentir mais confortável e confirmar o gozo de férias, porque achava que tal era óbvio. E como não obtive resposta, dei como dado adquirido que iria gozar as férias daquele ano. As minhas férias iniciavam-se a uma segunda-feira no início de dezembro, e na tarde desse dia, estava em casa, fui ao meu email e tinha, finalmente, uma resposta do diretor de serviço, que tinha estado em silêncio de outubro a dezembro, a dizer-me que as férias não estavam aprovadas. Não queria acreditar. Respondi de seguida, sem resposta. Telefonei à secretária e só depois de muita insistência consegui reunião no dia seguinte às 9:00"..No dia seguinte estava à porta do gabinete do diretor de serviço. "Tive de deixar a minha bebé com outra pessoa. Estava desesperada com os horários e ele chegou muito atrasado", mas o pior estava para vir. "Vivi um episódio que para mim era de filme. Assim que entro no gabinete digo-lhe que o meu pedido para a reunião era para tentar esclarecer o que se tinha passado, porque vi o email e não queria acreditar. A falta de resposta fez-me tomar como adquirido a aprovação das férias, mas ele levanta-se de repente, abre a porta que dá para o corredor que serve de sala de espera aos doentes e aos gritos diz-me para sair, porque me está a pôr na rua. Estava nervosíssima, não percebia o que estava a acontecer, mas pensei: "Ou me levanto e me vou embora sem resolver nada da minha vida, ou fico e resolvo."".Ficou. "O diretor continuava aos gritos enquanto saía e entrava no gabinete a mandar-me sair. Eu continuava sentada. Até que diz à secretária para chamar a segurança do hospital para me retirarem. A própria secretária ficou incomodada e tentou serenar a situação. Não ligou a ninguém. Eu ia repetindo que se me deixasse falar e resolver a minha vida ia-me embora. Ele acabou por se sentar e ouvir, mas sempre a dizer-me que não havia nada a conversar e que estava a perder tempo. Tive de lhe dizer, então, que se não validava as férias iria aos recurso humanos dizer que não as gozava para benefício do serviço e tinham que mas pagar.".Maria diz que nesta altura o rosto do diretor voltou a alterar-se, sublinhando: "Ele percebeu que faria mesmo isso, e que iria passar por uma vergonha, pois nunca os recursos humanos pagaram férias a ninguém. E diz-me: "Eu aprovo as férias, mas vai fazer um pedido com a data de hoje" - ou seja, ignorando todos os emails que estavam para trás. Nunca ele tinha tido este comportamento comigo, portanto a razão para tal tinha de estar nalguma coisa que aconteceu enquanto estive de licença, mas fiz o que me pediu, enviei o pedido e mais tarde sou informada que tinha uma falta injustificada naquela segunda-feira, que resolvi colocando um dia de férias".. As férias decorreram enquanto Maria fazia o luto pela mãe e com uma bebé de meses. Volta ao serviço no início de janeiro, perde as 42 folgas que tinha e logo nos primeiros dias percebe que o episódio de dezembro estava a ter repercussões. "Fui para o serviço no pediátrico onde sempre cumpri horário e funções e, ao fim de uma semana, comecei a perceber que algo se passava. O interno que me tinha substituído continuava por lá e quando lhe peço o telefone de urgência do serviço, que deve estar na responsabilidade de um especialista, pois é para onde os colegas nos ligam em caso de dúvidas, ele hesita, fica atrapalhado, mas dá-me o telefone. Meia hora depois volta e diz que o diretor de serviço lhe ligou a dizer que o telefone era para ficar com ele. Eu sou especialista, ele, interno, ainda sem exame da especialidade, e estava a dizer-me que ia assumir a responsabilidade do telefone de urgência?", comenta.."Respondi-lhe que recebia ordens do diretor de serviço e tinha de ser ele a dar-me essa ordem por escrito. Aqui fiquei com mais certezas de que algo se tinha passado na minha ausência. O diretor fez o email e entreguei o telefone"..Depois, o seu nome deixa de constar da escala. "Começa a penalização em termos de funções e de remuneração e decido falar com o coordenador do serviço para perceber o porquê da mudança de comportamento. Após longa conversa, ele diz algo que me magoou bastante: "Olha, quando a minha mãe morreu, fiquei dois dias em casa"..Ao que respondi que cada um vive o luto à sua maneira, eu precisava de tempo. E diz-me outra coisa:.Citaçãocitacao"Por tua causa não tive férias". Perguntei porquê? Pediste férias e negaram? Não havia o interno que indicaste a substituir-me? Ele falou comigo como se eu lhe tivesse deixado o serviço na mão, o que não aconteceu. Resolvi tudo, mas com esta conversa percebi que ele estaria envolvido nesta mudança.".Ficou alerta, sentia que a situação poderia tomar outra dimensão. "Sou sindicalizada há muitos anos, mas achei que era cedo para recorrer ao gabinete jurídico", confessa, mas a seguir retiraram-lhe mais tarefas. "Começam a aparecer escalas de urgência no Hospital Universitário, nos adultos, nos dias em que tinha consulta no Hospital Pediátrico. Dei o benefício da dúvida, achei que poderia ter sido engano, mas aconteceu em dois meses seguidos. Enviei um email a questionar se era engano, não tive resposta. Percebi que o plano era afastar-me das consultas, da parte clínica e dos meus doentes e decido ir ao sindicato para saber se tal era legal, eu sou uma médica diferenciada e estavam a tirar-me funções. Quando conto a história, o advogado diz-me que tal é assédio laboral, avisando-me que a prática se torna recorrente e que tinha de passar a registar todas as ocorrências por escrito e a ter testemunhas. Em março de 2018, submeto o primeiro requerimento ao conselho de administração e ao gabinete jurídico do CHUC, não dando o nome de assédio moral, mas dizendo que estava a ser alvo de discriminação desde que voltei de licença de maternidade"..O documento entrou, mas é ignorado, mais uma vez "o jogo do silêncio, muito útil nestas situações, porque permite que a coisa vá andando até que alguém desista. Mas em julho recebo um envelope, que me é entregue pela secretária da direção do serviço, com a resposta do meu diretor ao conselho de administração. Ou seja, eu já estou a lidar com uma pessoa que é meu chefe e está em vantagem, e ainda lhe dão a possibilidade de ler o que escrevi e de rebater sem a administração fazer mais nada? Na resposta do diretor de serviço nada é rebatido, mas justificava a minha saída das consultas do pediátrico com queixas de doentes. Eu nunca tinha tido conhecimento de queixas. Estive fora do serviço de maio de 2017 até janeiro de 2018, as queixas eram de março deste ano, quando eu já estava afastada da consulta e reportavam a dois casos em que os pais das crianças se queixavam de hematomas depois da recolha de sangue pelos enfermeiros. Ora, isto, nada tinha a ver comigo. Mas, mesmo assim, a administração considerou que o diretor de serviço estava a proceder bem"..A partir daqui, "todas as semanas tinha de escrever documentos e exposições para me defender. Era um desgaste imenso. Pedi uma reunião com o diretor clínico da altura que me diz: "O que pretende com este episódio?". Respondi que pretendia retomar as funções que tinha antes de ter ido de licença de maternidade. Este Conselho de Administração nunca mostrou vontade de resolver nada"..Depois disto, há outro episódio inesquecível: "Um dia chego ao serviço e sou chamada pela secretária da direção, que me diz que os meus colegas estão à minha espera para uma reunião na biblioteca. Fico baralhada e digo-lhe que não combinei nada com ninguém. Ela diz que foi o diretor que convocou a reunião, mas ninguém me tinha dito. Entro e tenho todos os colegas sentados numa mesa comprida, e sento-me onde havia lugar, à cabeceira em frente ao diretor de serviço, que me diz: "Estivemos a pensar e achamos que para compensar as escalas de urgência que não fez, o ideal era que nos dias em que ficar escalada não goze o horário de amamentação"..O assédio laboral também se faz disto, dizendo aos colegas que estão a ser prejudicados por termos decidido ter um filho. O diretor disse mesmo que se eu insistisse no horário eles tinham de assegurar essas horas"..CitaçãocitacaoO assédio laboral também se faz disto, dizendo aos colegas que estão a ser prejudicados por termos decidido ter um filho. O diretor disse mesmo que se eu insistisse no horário eles tinham de assegurar essas horas"..Estes é um dos episódios que não esquece, quase não conseguindo acreditar que o viveu em pleno século XXI, e com tantas políticas e estratégias para a igualdade e contra a discriminação. Sabia qual era a resposta certa na hora, mas não a podia dar.."Tinha de ser por escrito e disse que ia pensar. Quando saí da sala, só uma das colegas vem ter comigo para me dizer: "Fui totalmente contra ao que se passou ali dentro. E vou dizer-lhe outra coisa. Esta não é a primeira reunião que há sobre si. Ontem fomos todos chamados à pressa e disse-nos que aqueles que não se juntassem a ele também saíam da escala e o trabalho ia sobrar para os outros"..Confessa que ficou em choque. Quando chegou a casa enviou um email a dizer que "o horário de amamentação tinha sido desenhado para colmatar necessidades das crianças e que não iria subverter isso. Não abdicava"..Corria maio de 2018 e "decidi com o meu advogado ativar todos os mecanismos legais. Recorri à Ordem, à ACT e ao Tribunal do Trabalho. De março de 2018 até julho de 2019, continuei a ser escalada sistematicamente para o hospital universitário nos dias da minha consulta. Estive meses sentada a uma secretária a preencher folhas de Ecxel e a fazer trabalho de interna de primeiro ano, quando sou médica diferenciada. Isto não é humilhação? Tive internos que fizeram estágios comigo e me perguntavam porque estava de castigo. E ouvir isto custa muito"..As démarches para deixar de ver doentes continuaram e chegaram ao ponto de lhe quererem retirar a vertente da investigação. "Fiz finca-pé. Como centro de referência, fazemos investigação, mas aqui tem de ser o próprio médico a dizer que quer sair da investigação e eu disse que ficava", mas um ano mais tarde soube pela comissão nacional que a direção do serviço a substitui por outro colega. "Foi expulsa daquele lugar e substituída por um colega recém-especialista que não tinha as qualificações dela na área de doenças raras pediátricas e só soubemos seis meses depois de isto acontecer", explica o advogado de Maria..Citaçãocitacao"Perdi 50% das funções que tinha como especialista e mesmo assim o assédio continua. Depois da sentença levaram dois meses para me deixarem voltar à consulta, o advogado teve de intervir, retiraram-me a maioria dos doentes do pediátrico, só que alguns pais pediram para continuar comigo e aí não tiveram hipóteses"..Em 2019, e com a documentação que foi juntando decidiram que era hora de avançar para o Tribunal de Trabalho e, no dia 20 de fevereiro, de 2020, tem a primeira audiência. "Tive de tomar comprimidos para evitar crises de pânico e assim que entrámos a juíza começou a pressão para um acordo. Acabei por aceitar na esperança que fosse uma solução"..Mas não. A seguir, perde a atividade exclusiva em doenças raras em crianças. O tempo passa a ser dividido entre dois hospitais. "Perdi 50% das funções que tinha como especialista e mesmo assim o assédio continua. Depois da sentença levaram dois meses para me deixarem voltar à consulta, o advogado teve de intervir, retiraram-me a maioria dos doentes do pediátrico, só que alguns pais pediram para continuar comigo e aí não tiveram hipóteses"..Em 2020, entrou nova administração no CHUC, segundo diz "mais sensível ao problema e mais interventiva, sobretudo o diretor clínico, mas depois, por algum motivo, não consegue fazer nada. Sabe, há diretores que são nomeados e que acham que o cargo é para a vida e mesmo a administração não os consegue retirar de lá"..Ao fim de três anos, "o assédio mantém-se", nesta altura estará de férias que foram marcadas há meses, mas na véspera de sair não estavam validadas pelo diretor de serviço, mais uma vez o advogado teve de intervir junto do CHUC.."Dá muito trabalho lutar contra o assédio. É de uma violência e de um desgaste enorme. Deixei de ter a alegria que tinha em ir para o trabalho, passei a tomar comprimidos. Tenho colegas que me dizem para desistir, que tenho razão, mas que nunca vou conseguir provar que a tenho. Pelo caminho, perdi pessoas que deixam de me conhecer", mas à pergunta como aguenta e porque não desiste, Maria tem a resposta na ponta da língua: "Sou uma pessoa persistente. Investi imenso na minha carreira em termos científicos para pura e simplesmente deixar tudo só porque há pessoas que assim o querem. Tenho um doutoramento em curso e não faz sentido sair da instituição sem o terminar, não estaria a respeitar os doentes que estão a contribuir para este trabalho.".Por fim, assume de sorriso nos lábios, "é o que lhe digo. Tenho uma réstia de esperança no SNS e em que alguma coisa possa mudar"..O DN contactou o Centro Hospitalar Universitário de Coimbra (CHUC) para saber o que tem feito para travar a prática de assédio laboral já que tinha conhecimento de ter sido uns dos hospitais que foi a Tribunal de Trabalho responder como arguido, mas também por saber que houve outros e que recentemente tem novas queixas no hospital pediátrico..A resposta refere que a instituição sabe que "a figura jurídica do assédio moral está definida na Lei n.º 73/2017, 16 Agosto que estabelece os requisitos que devem estar preenchidos para estarmos perante este tipo de ilícito". Assumindo que, em 2022, "não recebeu nenhuma queixa da classe médica relativa a situações de potencial assédio moral".."Nenhuma foi classificada juridicamente como tal já que, se o tivesse sido, obrigatoriamente teria sido proposta a abertura de processo disciplinar. Todas as participações/queixas médicas (duas em 2018 e duas em 2021) foram qualificadas como situações de conflito laboral e não de assédio". Ou seja, o caso de Maria em 2018 foi considerado um conflito laboral, não assédio..Em 2023, "no Grupo de Pessoal Médico, foi instaurado, um processo disciplinar, por assédio moral, fruto de participação de médicos. Por fim, o CHUC diz que, para lidar com esta temática, criou o Gabinete de Prevenção do Assédio Moral e Sexual (GPAMS), cujo coordenador é o médico psiquiatra Dr. João Redondo, que iniciou a sua atividade em 2014. Este Gabinete foi extinto no presente ano, para ser integrado na Unidade de Prevenção da Violência contra os Profissionais de Saúde (UPVCPS)", com a mesma coordenação e que se encontra já a desenvolver o seu trabalho no universo do centro hospitalar".