Sociedade
16 abril 2021 às 22h29

"No futuro, teremos vacinas mais adequadas a idosos, doentes crónicos e até a jovens"

O SARS-CoV-2 transportou a ciência para um novo mundo de vacinas? Não. As vacinas que existem estavam a ser investigadas há décadas. Mas porque é umas têm mais efeitos secundários do que outras? O que se pode esperar do futuro? A imunologista Helena Soares, chefe de laboratório do CEDOC, explica.

Aos 43 anos, a imunologista Helena Soares lidera a equipa do Laboratório de Imunologia e de Patogénese do Centro de Estudos de Doenças Crónicas (CEDOC) da Universidade Nova de Lisboa. Como imunologista acredita que as vacinas são o futuro, quer na prevenção quer como terapêutica, e desde o início da pandemia que a sua equipa deitou mãos à obra para investigar a resposta imunitária por parte dos doentes ao vírus e a resposta às vacinas. Helena Soares participou na customização de um teste serológico e agora está a participar juntamente com colegas de outros institutos científicos numa campanha que será levada a cabo pelo Ciência Viva - "Conversa com Cientistas - Décadas de Ciência para Dias de Vacina" - precisamente porque considera ser importante desfazer as dúvidas e os receios da população.

O combate ao SARS-CoV-2 veio abrir as portas a um novo mundo para a investigação de vacinas?
É importante que as pessoas tenham a noção que as vacinas de ARN mensageiro como as de adenovírus, que estão a ser usadas no combate ao SARS-CoV-2, já têm 20 a 30 anos de investigação. O que aconteceu agora foi que o SARS-CoV-2 surgiu numa altura em que já havia um amadurecimento deste tipo de tecnologia. Diria que a pandemia foi uma questão de oportunidade, se quisermos foi o empurrão final que proporcionou que esta tecnologia começasse a ser aplicada em força logo no início em busca de uma vacina. Por exemplo, em relação às vacinas de ARN já temos uma aprovada para o ébola que estava a ser desenvolvida há vários anos. Em relação às vacinas de adenovírus, também houve várias tentativas e projetos desenvolvidos para doenças genéticas, para o cancro e para outras infeções.

Mas pode dizer-se que estas são as vacinas de segunda geração em relação às vacinas clássicas?
Tanto as de ARN mensageiro como as de adenovírus são consideradas novas estratégias de vacinação e já com a aprovação das agências regulamentadoras, mas já tinham um longo percurso antes da pandemia.

O que as distingue em relação às vacinas clássicas?
Nas vacinas clássicas o que se faz é administrar no sistema imunitário o vírus na sua totalidade, mas inativado - assim não se consegue replicar no organismo - ou atenuado, em que lhe foi retirada a capacidade de causar a doença. As vacinas clássicas incluem ainda vacinas que usam fragmentos do vírus, normalmente uma proteína viral. Nas que estamos a falar, de ARN mensageiro, como a da Pfizer e a da Moderna, ou de adenovírus, como a da AstraZeneca e a da Johnson & Johnson, o que se faz é: em vez de se administrar a proteína no sistema imunitário administra-se moléculas precursoras, que depois vão dar origem à proteína.

Em vez de se ir direto à proteína para obter proteção injetam-se moléculas no organismo que depois procuram dar a mesma resposta...
Basicamente é isso. Em vez de se dar o produto já feito damos os ingredientes para que as células produzam a proteína que origina a resposta imunitária protetora. Nas de ARNm em vez de se administrar a proteína Spike diretamente, está a administrar-se um precursor, que são as moléculas de ARNm, contidas numa esfera de lípidos. Uma vez entregues nas nossas células, as moléculas de ARN são descodificadas na proteína viral Spike que irá ativar o nosso sistema imunológico. As vacinas de adenovírus têm um mecanismo semelhante, com a diferença que o precursor é constituído por moléculas de ADN, que contém as instruções para as nossas células produzirem a proteína Spike que irá iniciar a resposta imunitária protetora e proteger da covid-19.

Destaquedestaque "Há agentes infecciosos que são mais sofisticados do que outros e que colocam mais obstáculos na obtenção de vacinas.".

Há pouco referiu que estas vacinas são investigadas há décadas mas porque não chegaram ao mercado antes. Há alguma explicação?
Por um lado, por uma questão de amadurecimento. O processo científico é um processo demorado que requer otimizações sucessivas que demoram anos. Aliás, é importante frisar que para além da covid-19 as vacinas de ARNm foram também aprovadas neste ano para o ébola. Por outro lado, há agentes infecciosos que são mais sofisticados do que outros e que colocam mais obstáculos na obtenção de vacinas. É o caso do VIH, que se consegue esconder no sistema imunitário e alcançar uma vacina para este vírus é tecnicamente mais difícil. Há vírus para os quais é mais linear desenvolver vacinas do que outros, por isso não podemos comparar eficácia de desenvolvimento de vacinas para doenças diferentes. Mas há outras vacinas que estão a ser desenvolvidas utilizando estas novas plataformas e num futuro próximo ainda vão ser mais.

Segundo a OMS, há 87 vacinas a fazer ensaios clínicos para o SARS-CoV-2. O que é que aí vem?
O que aí vem é algo muito interessante que mostra a robustez da ciência. Há muitas formulações a serem desenvolvidas para se obter vacinas. Há vacinas que estão a usar plataformas mais clássicas ou variações das plataformas mais clássicas - em que a proteína do vírus foi produzida de maneira diferente. E há outras vacinas, por exemplo de aplicação nasal, que poderão ser muito importantes, porque, por ativarem a resposta imunitária na mucosa, bloqueiam a infeção e a transmissão viral. Mas a quantidade de vacinas que estão a ser desenvolvidas é também importante porque, no futuro, poderá permitir a sua melhor adequação aos vários segmentos da população. Ou seja, quanto mais vacinas tivermos maior possibilidade teremos de vacinar eficazmente idosos versus doentes crónicos versus população mais jovem.

Isso quer dizer que teremos vacinas para várias faixas etárias e para pessoas com algumas patologias?
Para cada faixa etária é de mais, mas pode haver vacinas mais adequadas a uma faixa etária - a da AstraZeneca já é recomendada para pessoas com mais de 60 anos em muitos países, entre os quais Portugal. É claro que estou a pensar em termos teóricos, mas acho que este é o caminho, obviamente não são vacinas personalizadas ou para faixas etárias com diferença de cinco ou de dez anos, mas são vacinas que sendo todas eficazes poderão ser mais adequadas a um determinado perfil populacional.

Voltando às vacinas de ARN e de adenovírus, há cientistas que defendem que são mais rápidas de produzir, mais potentes e eficazes do que as clássicas. Concorda?
A grande vantagem que têm particularmente as vacinas de ARN é a de que a sua plataforma produtora tem uma grande facilidade em se adaptar a alterações do vírus existente e a novas doenças. Aliás, esta é uma das grandes razões por que estas vacinas estão a ser investigadas há décadas. Neste momento, serão um complemento e não uma substituição das vacinas clássicas. Até porque também têm limitações, como os requisitos de armazenamento a temperaturas negativas (-20º C ou -70º C).

Qual o impacto concreto que podem ter no futuro?
O impacto concreto é conseguirem responder mais rapidamente a futuras pandemias, precisamente porque assentam numa plataforma mais flexível e mais rápida de ser reativa.

Destaquedestaque "O perfil de efeitos secundários tem que ver com a maneira como o antigénio é veiculado, ou dentro de uma esfera de lípidos no caso da ARN ou rodeadas por um invólucro (casca) de adenovírus, no caso das vacinas adenovirais".

Em relação às vacinas no mercado, há duas que têm estado envoltas em mais polémica devido aos efeitos secundários que já geraram [AstraZeneca e J&J]. É possível explicar-se porque é que estas vacinas estão a ter mais reações do que as outras [Pfizer e Moderna]?
A resposta imunitária é contra a mesma proteína, mas na sua formulação as vacinas são diferentes - é necessário referir que os efeitos adversos detetados são extremamente raros e que ainda não foi definida uma relação direta de causalidade, embora haja um aumento de eventos de tromboembolismo particulares na população feminina jovem. Mas em relação às vacinas o perfil de efeitos secundários tem que ver com a maneira como o antigénio é veiculado, ou dentro de uma esfera de lípidos no caso da ARN ou rodeadas por um invólucro (casca) de adenovírus, no caso das vacinas adenovirais.

Isso justifica que as da Pfizer e da Moderna tenham efeitos secundários mais sentidos na segunda toma e a da AstraZeneca na primeira?
Sim. Até agora já se percebeu que as de ARN mensageiro estão a dar mais efeitos na segunda dose e as de adenovírus na primeira, mas sempre num perfil de efeitos secundários fracos ou moderados, como dores de cabeça, dores no corpo, febre. É uma situação que tem que ver com a forma como o sistema imunitário reconhece a esfera de lípidos e o ARN mensageiro ou a cápsula do adenovírus. Por isso há pessoas que não sentem absolutamente nada e outras que têm efeitos.

Os efeitos adversos mais graves têm suscitado insegurança por parte das populações. Há quem ache que está a servir de "cobaia". Há razão para se pensar assim?
Não. Refiro mais uma vez que estas vacinas estão a ser produzidas há décadas. Houve um grande investimento da ciência básica na investigação destas vacinas, apesar de agora serem associadas a companhias farmacêuticas. Mas há outra coisa. É que além deste investimento da ciência em relação ao SARS-CoV-2 também já se tinha aprendido bastante com os surtos SARS-CoV-1 (2001) e do MERS (2012). Ou seja, a proteína Spike já estava identificada como a principal proteína que ativa o sistema imunitário nos dois surtos por coronavírus que antecederam esta pandemia. O conhecimento adquirido nas tentativas de fazer uma vacina para o SARS-CoV-1 e para o MERS foi agora utilizado. O que permitiu poupar imenso tempo. Os ensaios clínicos feitos reuniram todas as condições de segurança, conseguiu poupar-se tempo, porque em vez de as três fases serem feitas umas a seguir às outras, houve uma sobreposição destas. Por outro lado, as companhias assumiram o risco de começarem a produzir as vacinas antes de as entidades reguladores terem dado a sua aprovação, o que até agora não tinha acontecido. Portanto, a segurança foi verificada e completamente vigiada, sendo que a plataforma de produção das vacinas agora autorizadas beneficiou de avanços na investigação de 20 e 30 anos. Isto é importante que fique esclarecido.

O SARS-CoV-2 trouxe a discussão sobre a importância das vacinas como forma de prevenção e até de terapêutica. É o futuro?
Eu sou imunologista e acho que a vacinação como prevenção é essencial, se bem que houve um período, sobretudo nos países ocidentais, em que o desenvolvimento de vacinas pode ter sido considerado menos prioritário. Mas, sim, o futuro passa por prevenir doenças e isso é o que fazem as vacinas. Embora tenham sido tradicionalmente investigadas para doenças infecciosas, as vacinas já têm uma aplicação preventiva e terapêutica, nomeadamente em doenças genéticas e cancerígenas.

É abusivo dizer que o futuro será mais a investigação de vacinas do que de medicamentos?
Em termos teóricos, qualquer que seja a doença, a prevenção é sempre mais desejável do que o tratamento, e que o tratamento mais precoce é mais desejável do que num estádio mais avançado da doença. Hoje já temos alguns casos, como o do papilomavírus, em que a vacina é administrada de forma preventiva para impedir o aparecimento do cancro da cérvix.

Como cientista o que a preocupa mais em relação à pandemia?
O cansaço geral da população, que é compreensível, na adesão às medidas profiláticas, uso de máscara e de distanciamento. As vacinas têm um papel fundamental, mas a curto e médio prazo, ainda será necessária a adesão da população a estas medidas. E tem de se arranjar uma forma de combater este cansaço.