Sociedade
08 junho 2023 às 23h15

Incentivos a cirurgias permitem recordes em 2023, mas 30% ainda são tratados fora de tempo

Até maio, unidades do SNS realizaram quase 250 mil cirurgias, mais 20 mil do que em 2022 no mesmo período. O presidente da Associação dos Administradores Hospitalares diz que isso se deve, em grande parte, aos incentivos à produção adicional, que podem terminar a 30 de junho. O receio é o aumento significativo das listas de espera.

O combate à pandemia de covid-19 travou os cuidados nalgumas áreas do Serviço Nacional da Saúde (SNS), nomeadamente na cirúrgica, mas logo no primeiro ano, em 2020, o governo aprovou uma portaria para contemplar a produção adicional, fora do horário de trabalho, com vista à recuperação das listas de espera. A mesma portaria foi revista em janeiro de 2023 e mantida até 30 de junho, mas o que acontecerá a partir daqui, o Ministério da Saúde ainda não anunciou.

O certo é que este regime permitiu que, em 2022, se alcançasse "o maior número de sempre de intervenções no SNS", 758 mil, e que, nos primeiros quatro meses de 2023, se tivesse batido também um recorde: 246 541, comparativamente com o mesmo período dos últimos quatro anos.

Os dados são da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS), que considera tratar-se de "um número histórico de doentes operados, o maior de sempre quando comparamos os registos dos períodos homólogos dos anos anteriores", justifica, em resposta escrita. Quanto ao número real de doentes em lista de espera, esse, não sabemos.

O DN solicitou-o à ACSS , porque o número real integra os novos doentes inscritos e os que estão em acumulado, mas este organismo apenas disponibilizou o número de doentes inscritos em cada ano e que constam das LIC (Listas de Inscritos para Cirurgia), referindo, contudo, que dos inscritos em 2022 (218 189), 69,1% foram atendidos dentro do Tempo Máximo Garantido em Resposta (TMGR) e, em 2023, que já vai com 241 482 inscritos, esta percentagem é de 72%.

O presidente da Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares (APAH) confirma ao DN que a percentagem de doentes operados fora do tempo adequado (180 dias) ronda, de facto, os 30% e os 20% para os doentes que aguardam uma primeira consulta, mas sublinha que, "enquanto tivermos estes números, temos de ficar preocupados e manter o esforço e os incentivos para que o aumento na produção continue a acontecer".

DestaquedestaqueDos 218 mil doentes inscritos para cirurgias em 2022, 69,1% foram atendidos no tempo adequado. Dos 241 mil já inscritos em 2023, foram atentidos neste tempo 72%, mas o presidente da APAH diz que o número dos doentes a ficar de fora ainda nos deve preocupar.

Para Xavier Barreto, o facto de se estar agora a bater recordes e a conseguir recuperar a atividade protelada durante a pandemia deve-se, "em larga medida, ao recurso da produção adicional, que é crescente em grande parte dos hospitais".

E alerta: "Tem-se dito que esta portaria pode terminar mesmo a 30 de junho; sabemos que, eventualmente, o foco da tutela será incentivar cada vez mais os hospitais e os serviços à criação de Centros de Responsabilidade Integrada (CRI), onde o pagamento adicional continuará a ser pago, mas receamos que, com a escassez de recursos humanos, as listas de espera aumentem e o tempo de espera também".

Até porque, sustenta, "ainda estamos a sofrer com o excesso de procura, como efeito do encerramento de serviços durante a pandemia. Não sei se tal se vai manter por muito mais tempo, mas a verdade é que, neste momento, temos muito mais procura do que capacidade para produzir. E este diferencial traduz-se num aumento das listas de espera".

Chegados a 30 de junho, o Ministério da Saúde pode sempre dizer que mantém a portaria que regula a produção adicional ou pode dizer que os hospitais têm de criar mais CRI - serviços e equipas que acabam por funcionar num modelo de gestão diferente do resto do hospital, que já recebem de acordo com a produtividade, tendo mais autonomia na organização. Porém, para o representante de quem gere os hospitais "é urgente que se reflita também [sobre] como organizar e melhorar os cuidados tendo em conta os recursos existentes".

Mas não só. A curto prazo, sublinha, "é preciso arranjar soluções para dar mais condições de trabalho e salariais aos profissionais, condições que os fixem no SNS". Xavier Barreto argumenta que a realidade das listas de espera "não é um fenómeno exclusivo do nosso país, outros sistemas de saúde de países civilizados também o têm", mas "estes estão a arranjar formas de o controlar e, para que o SNS possa garantir respostas no tempo adequado aos utentes, é urgente refletir-se esta realidade".

Neste momento, e ao abrigo da portaria que foi atualizada a 6 de janeiro de 2023, as equipas de cirurgia estão a ser pagas por produção adicional (por cirurgia fora do seu horário normal) entre 45% a 55% do valor total de cada uma, embora este limite possa ir até aos 70% no caso dos CRI". Ou seja, "se estamos a falar de uma cirurgia que tenha um custo total no SNS de cinco mil euros, entre 45% a 55% deste valor é pago à equipa, sendo que esta inclui o cirurgião principal, o assistente, o anestesista, enfermagem e assistentes operacionais".

Questionado pelo DN se este pagamento adicional não faz descer a atividade programada normal, o representante dos administradores hospitalares explica que "houve sempre o compromisso dos hospitais de não reduzir a produção-base". Se tal está a acontecer ou não, também não se sabe, porque o número de produção-base por hospital, e até por especialidade, também não está disponível no SNS.

Destaquedestaque"A questão sobre as listas de espera, apesar dos recordes, é que ainda há doentes a não serem atendidos no tempo adequado e, com "a escassez de profissionais no SNS, concretamente de médicos, receamos que, no futuro, o problema se agrave ainda mais."

O DN sabe que há hospitais que estão a produzir mais 8% a 10% do que aquilo que está definido em contrato-programa, mas que tal não é assim em todas as unidades do SNS. Por isso mesmo, o presidente da APAH reforça "a urgência de se refletir e discutir formas que permitam uniformizar práticas em todas as unidades do SNS".

De acordo com a ACSS, e olhando para os números disponibilizados ao DN desde 2019, "o contexto da pandemia explica a redução do número de utentes inscritos em LIC em 2020 e no início de 2021", uma fase que este organismo considera que começa a ser ultrapassada em 2021, logo após "a fase mais aguda da pandemia", em que se registou "uma recuperação da atividade", tendo-se esta "tendência mantido em 2022 e já este ano".

Quanto às especialidades que continuam a registar maior número de utentes em espera para cirurgias também não há novidades: Oftalmologia, Ortopedia, Cirurgia Geral, Otorrinolaringologia e Urologia. O administrador hospitalar justifica a situação com o facto de serem "as que mais doentes recebem. É só por isto. A Oftalmologia é o serviço que dá mais consultas no SNS e, a seguir, vêm todos os outros serviços referidos".

A questão sobre as listas de espera, apesar dos recordes, diz Xavier Barreto, é que ainda há doentes a não serem atendidos no tempo adequado e, com "a escassez de profissionais no SNS, concretamente de médicos, receamos que, no futuro, o problema se agrave ainda mais". Por isso, reforça que "o ponto fundamental é tornar o SNS mais atrativo para reter os profissionais e isso tem a ver, naturalmente, com as condições de trabalho e salariais, pagar pelo desempenho, mas também com a qualidade", o que obriga também "a repensar o nosso sistema de saúde e as competências de cada classe profissional".

O presidente da APAH exemplifica: "Há cada vez mais países que estão a responsabilizar outros grupos de profissionais pelo acompanhamento de doentes crónicos, pelo atendimento de doença aguda não-grave e não-urgente, aliviando assim os hospitais e até os médicos desse tempo dedicado a doentes estáveis. De cada vez que temos um médico ocupado a ver um doente crónico estável, sem necessidade de alteração de terapêutica, não está a dar uma primeira consulta e isto tem de nos levar à reflexão se faz sentido ter um médico no acompanhamento destes doentes crónicos estáveis, sabendo que temos listas de espera."

Portanto, a questão das listas de espera é um problema que tem de ser trabalhado a várias dimensões, das condições de trabalho e salariais à organização dos cuidados. "É uma discussão que temos de ter com alguma urgência", reforça o presidente dos administradores hospitalares.

Tópicos: SNS, cirurgias, Sociedade