Política
09 dezembro 2022 às 23h40

Terceiro round. Morte medicamente assistida outra vez nas mãos de Marcelo 

Maioria parlamentar que reúne PS, Iniciativa Liberal, Bloco de Esquerda, PAN e Livre aprova terceira versão do texto, vetado já duas vezes. Ventura responde ao apelo de Pedro Passos Coelho e promete reversão da lei num quadro de maioria de direita. Saiba o que diz o diploma aprovado no Parlamento.

A Assembleia da República aprovou esta sexta-feira, em votação final global, pela terceira vez nos últimos dois anos, a lei que despenaliza a morte medicamente assistida. O diploma segue agora para Belém, com a novidade de já não incluir a expressão "doença fatal", a previsão de um período mínimo de dois meses entre o pedido de eutanásia e a sua concretização e a obrigatoriedade de acompanhamento psicológico.

Votaram a favor do texto a maioria da bancada socialista, a Iniciativa Liberal, o BE e os deputados únicos do PAN e Livre, assim como seis deputados do PSD - Catarina Rocha Ferreira, Hugo Carvalho, Isabel Meireles, André Coelho Lima, Sofia Matos e Adão Silva.

Do lado contrário, votaram contra o texto a maioria dos deputados do PSD, a bancada do Chega e a do PCP, além de seis deputados socialistas. No PS pronunciaram-se contra os deputados Joaquim Barreto, Pedro Cegonho, Sobrinho Teixeira, Romualda Fernandes, Cristina Sousa e Maria João Castro. Três deputados do PSD (Lina Lopes, Jorge Salgueiro Mendes e Ofélia Ramos) e um do PS (José Carlos Alexandrino) abstiveram-se.

O texto segue agora para redação final e deverá ser enviado ao Presidente da República dentro de uma semana. Na última quinta-feira, questionado sobre se dará uma resposta rápida ao diploma, Marcelo Rebelo de Sousa apontou para esse cenário: "Acho que sim. [...] Estamos perante uma realidade que tem sete anos no seu debate mais recente, tem já algum tempo."

Depois de ter devolvido o diploma ao Parlamento uma primeira vez, face à declaração de inconstitucionalidade de duas normas pelo Tribunal Constitucional (TC), e de um veto político há cerca de um ano, Marcelo mantém todos os poderes em aberto - pode enviar novamente o texto para apreciação dos juízes do Palácio Ratton, pode promulgar ou vetar politicamente. Sendo certo que os partidos na origem do texto aprovado (que resultou de projetos de lei do PS, BE, IL e PAN) já foram dando sinais de que, perante novo veto político, a opção será pela reconfirmação do diploma - o que obrigará o Presidente a promulgar.

Leia também: Quinze projetos de lei, 48 audições, 42 pareceres. Eutanásia leva seis anos de discussão na AR

Com a nova aprovação do texto, várias vozes pediram esta sexta-feira a Marcelo que volte a enviar o texto para o TC, caso da Associação dos Juristas Católicos e da Associação dos Médicos Católicos Portugueses.

O texto que despenaliza a eutanásia e o suicídio medicamente assistido volta a Belém alterado, mas não no sentido pretendido pelo Presidente da República. No final de novembro de 2021, Marcelo Rebelo de Sousa vetou a lei invocando que esta não era clara quanto às condições em que pode ser pedida a morte medicamente assistida, dado que o texto falava alternadamente em doença grave, incurável e fatal, por vezes cumulativamente, outras em alternativa. No texto do veto, o Presidente da República pedia também aos deputados uma reflexão sobre a eutanásia em casos que não sejam de doença fatal, alegando que esta possibilidade não estava prevista no texto inicial. Uma leitura recusada pelos partidos, que não só mantiveram esta possibilidade como retiraram do texto a expressão "doença fatal".

O ex-líder social-democrata Pedro Passos Coelho entrou no debate, apelando, num artigo de opinião publicado no jornal online Observador, a um acordo entre os partidos para que uma futura lei venha a ser revogada num cenário de maioria contrária ao diploma. Um artigo em que, sem nomear o PSD, deixou críticas à atitude do partido, que voltou a dar liberdade de voto aos deputados, não assumindo uma posição oficial: "Uma coisa é aceitar a objeção de consciência neste tipo de decisão, outra é afirmar que não se tem uma conceção destas matérias enquanto partido e deixar que sejam os deputados por si mesmos a decidir o que a sua consciência indicar."

No Parlamento, foi André Ventura quem pegou nas palavras de Passos Coelho para dizer que aceita o desafio, "assim outros o aceitem": "A primeira coisa que faremos nesta câmara com uma maioria será reverter a lei infame da eutanásia." Já para os sociais-democratas a prioridade está no referendo proposto esta semana, cuja admissão foi recusada por Augusto Santos Silva com o argumento de que o Chega apresentou uma iniciativa idêntica em junho e a Constituição estabelece que os projetos de referendo rejeitados "não podem ser renovados na mesma sessão legislativa". À Rádio Renascença, o líder da bancada parlamentar do PSD, Miranda Sarmento, defendeu que o "mais importante, neste momento, é que houvesse um debate na sociedade e, sobretudo, perguntar aos portugueses o que entendem sobre esta matéria". O PSD ainda apresentou um requerimento a pedir o adiamento da votação da eutanásia por uma semana, considerando que não está concluído o processo relativo ao referendo, mas o pedido foi chumbado pelo plenário. O mesmo destino teve a reclamação do Chega, que alegou que o texto não poderia ser votado uma vez que o guião de votações foi distribuído após as 18h00 de quarta-feira, fora do prazo previsto no Regimento do Parlamento.

Nas declarações de voto, a socialista Isabel Moreira, um dos principais rostos deste diploma, defendeu que esta é uma lei sólida e "defensiva", enquanto a líder bloquista Catarina Martins sustentou que o novo texto vem responder à falta de clareza apontada por Marcelo Rebelo de Sousa. Já Inês Sousa Real, do PAN, apelou a que não se confunda o debate sobre a eutanásia com o dos cuidados paliativos. Pelo PCP, Alma Rivera afirmou que o Estado não pode "decidir sobre a vida e morte sem analisar as consequências dessa decisão".

O que é a despenalização da morte medicamente assistida?

Nos termos definidos no diploma que agora segue para Belém considera-se como morte medicamente assistida não punível a que ocorra "por decisão da própria pessoa, maior, cuja vontade seja atual e reiterada, séria, livre e esclarecida, em situação de sofrimento de grande intensidade, com lesão definitiva de gravidade extrema ou doença grave e incurável, quando praticada ou ajudada por profissionais de saúde".

Em que situações pode ser requerida?

Em duas situações distintas: em caso de lesão definitiva de gravidade extrema; ou em caso de doença grave e incurável.

O que é uma "lesão definitiva de gravidade extrema"?

De acordo com o texto é uma "lesão grave, definitiva e amplamente incapacitante que coloca a pessoa em situação de dependência de terceiro ou de apoio tecnológico para a realização das atividades elementares da vida diária, existindo certeza ou probabilidade muito elevada de que tais limitações venham a persistir no tempo sem possibilidade de cura ou de melhoria significativa".

Como é definida a "doença grave e incurável"?

Como "doença que ameaça a vida, em fase avançada e progressiva, incurável e irreversível, que origina sofrimento de grande intensidade".

Como se concretiza a morte medicamente assistida?

Por uma de duas vias. Ou por eutanásia, que consiste na "administração de fármacos letais, pelo médico ou profissional de saúde devidamente habilitado para o efeito". Ou através do suicídio medicamente assistido, definido como a "autoadministração de fármacos letais pelo próprio doente, sob supervisão médica".

Quem pode requerer a morte medicamente assistida?

Cidadãos nacionais ou legalmente residentes em território nacional, obrigatoriamente maiores de idade.

Uma vez feito, o pedido pode ser revogado?

Nos termos do texto aprovado o pedido pode ser revogado a "qualquer momento".

Como é feito o pedido?

O pedido inicial é dirigido ao médico "escolhido pelo doente como médico orientador", que tem um prazo de 20 dias para emitir um "parecer fundamentado" sobre se o doente cumpre todos os requisitos exigíveis. Nesta fase, o médico orientador tem de informar o doente sobre "os tratamentos aplicáveis, viáveis e disponíveis, designadamente na área dos cuidados paliativos, e o respetivo prognóstico". Se o doente reiterar a sua vontade (por escrito), o processo passa para um segundo médico, " especialista na patologia que afeta o doente", que emite também um parecer, confirmando ou não o "diagnóstico e prognóstico da situação clínica e a natureza grave e incurável da doença ou a condição definitiva e de gravidade extrema da lesão". Se o parecer for positivo, o doente tem de, pela segunda vez, reiterar a sua vontade por escrito.

O parecer de dois médicos viabiliza o pedido de morte medicamente assistida?

Sim, se nenhum destes médicos considerar que o doente precisa de uma avaliação psiquiátrica. Se algum dos clínicos manifestar dúvidas "sobre a capacidade da pessoa para solicitar a morte medicamente assistida" revelando uma vontade séria, livre e esclarecida, ou considerar que a pessoa possa ter uma "perturbação psíquica ou condição médica que afete a sua capacidade de tomar decisões" passa a ser obrigatório o parecer de um médico especialista em psiquiatria. Concretizada esta terceira fase o doente tem de voltar a reiterar a sua vontade por escrito.

E se o parecer dos médicos for desfavorável?

Qualquer parecer médico desfavorável põe fim ao processo. De acordo com o texto o procedimento pode ser "reiniciado com novo pedido de abertura" por parte do doente.

O doente tem apoio psicológico?

Este foi um dos pontos que sofreu alterações nesta terceira versão do diploma. Na atual redação é "assegurado, ao longo de todo o procedimento, o acesso a acompanhamento por parte de um especialista em psicologia clínica" - este acompanhamento é "obrigatório", salvo se o doente o "rejeitar expressamente".

Terminada a avaliação clínica pode ser concretizada a morte medicamente assistida?

Não. O processo tem de ser enviado à Comissão de Verificação e Avaliação dos Procedimentos Clínicos de Morte Medicamente Assistida (CVA), que tem cinco dias úteis para avaliar se foram ou não cumpridos todos os requisitos legais. Em caso de parecer desfavorável, o processo em curso é cancelado. Caso seja favorável o doente tem de reiterar a sua vontade por escrito.

Quem decide se a morte ocorre por eutanásia ou suicídio medicamente assistido?

Nos termos do diploma essa decisão é da "responsabilidade exclusiva do doente".

E se o doente ficar inconsciente?

Se o doente ficar inconsciente antes da data marcada para a realização do procedimento de morte medicamente assistida, este é "interrompido e não se realiza, salvo se o doente recuperar a consciência e mantiver a sua decisão".

Onde se realiza o procedimento?

A escolha cabe ao doente. Pode ser em estabelecimentos do SNS ou do setor social ou privado, desde que devidamente licenciados. Caso a escolha recaia sobre "local diferente" - por exemplo, em casa - o médico orientador tem de certificar que dispõe de "condições clínicas e adequadas".

Quem pode estar presente?

Obrigatoriamente o médico orientador e outro profissional de saúde. Pessoas "indicadas pelo doente, desde que o médico orientador considere que existem condições clínicas e de conforto adequadas".

Há um prazo definido para concluir todo o processo?

É outra alteração nesta última versão da lei, que passa a contemplar um período mínimo de dois meses entre o requerimento inicial e a concretização da morte medicamente assistida.

Os profissionais de saúde podem invocar objeção de consciência?

Sim. A lei refere que "nenhum profissional de saúde pode ser obrigado a praticar ou ajudar ao ato de morte medicamente assistida de um doente se, por motivos clínicos, éticos ou de qualquer outra natureza, entender não o dever fazer, sendo assegurado o direito à objeção de consciência a todos os que o invoquem".

Que países legalizaram a morte medicamente assistida?

Na Europa despenalizaram a eutanásia os Países Baixos (os primeiros a avançar com legislação nesta matéria, em 2002), a Bélgica, o Luxemburgo e a Espanha (desde 2020). Na Suíça, associada a esta prática pelo mediatismo de organizações como a Dignitas ou a Exit, a eutanásia é, na verdade, proibida. É permitido o suicídio assistido, desde que não seja feito por "motivos egoístas" (receber uma herança, por exemplo), uma formulação legal que tem permitido a atividade daquelas empresas.

susete.francisco@dn.pt