Internacional
16 março 2021 às 07h00

"Nas campanhas pelo voto luso-americano, os políticos comem muito bacalhau"

Nascido no Massachusetts, o antropólogo Miguel Moniz é investigador do CRIA-ISCTE/IUL, em Lisboa, e da Brown University, em Providence, e nesta entrevista desmistifica a ideia de que todos os portugueses na América lá chegaram em barcos baleeiros ou que a comunidade tem estado pouco envolvida nas lutas políticas e sociais. Acredita também na força de umas relações EUA-Portugal baseadas nos princípios democráticos, respeito pelos direitos humanos e igualdade social.

Sei que é de Falmouth. Como foi a sua família parar a essa cidade do Massachusetts? Qual a tradição portuguesa de se fixar aí?
As minhas origens familiares estão em São Miguel, mas todas as gerações se deslocaram para trás e para a frente sobre o Atlântico desde o século XIX (Açores, Brasil, Bermuda, EUA e o continente). Os meus amigos menos informados pensam que os luso-americanos navegaram todos em barcos baleeiros e hoje trabalham como pescadores. Esta visão romântica e teleológica do marinheiro português contrasta com a realidade, em que se enviava trabalhadores precários com pouca formação através dos oceanos para serem vítimas de abusos em barcos, e em fábricas e plantações industrializadas. Os açorianos e os cabo-verdianos vieram para Falmouth e Cape Cod para trabalharem na agricultura industrial e no serviço doméstico para os Yankees. Depois, alguns trabalhadores pensaram, "porque é que estamos a trabalhar para ajudar os outros a enriquecer quando podemos cultivar e vender nós próprios?" Assim, fundaram cooperativas agrícolas, introduziram inovações e, coletivamente, dominaram setores do comércio regional. Fizeram o mesmo com a construção civil. Durante os anos de 1960-1980, como toda a região, a comunidade lusófona de Falmouth foi revitalizada por migrantes açorianos, muitos deles da Terceira, e desde os anos de 1990 do Brasil. Existem muitas organizações fraternais de imigrantes em Falmouth, e houve dezenas de antigas organizações cívicas, beneficentes e sociais, incluindo várias Irmandades do Divino Espírito Santo. Até ao surgimento da covid, duas delas realizavam uma festa anual todos os anos desde a década de 1890. As sedes destas associações continuam como centros sociais e cívicos. Os meus pais trouxeram-me para uma "igreja nacional portuguesa" fundada pela comunidade (que ainda celebra missa em português), onde sempre fitei com fascínio, por cima do altar, o santuário de sete metros de altura com um mural da Virgem de Fátima emoldurado por um friso com um escudo português ornamentado na abside. Participei nos eventos dos clubes vários, e mais recentemente, o Cape Cod Cape Verdean Museum, um projeto em que estou empenhado, acabou de ser instalado numa quinta histórica portuguesa, criando um espaço para apresentar histórias menos conhecidas dos imigrantes. É impossível crescer em Falmouth sem uma consciência de que a aldeia é apenas um cruzamento num mapa maior da história transoceânica.

Recentemente, um lusodescendente oriundo de Falmouth, o almirante Doug Verissimo, foi notícia mundial ao comandar o porta-aviões que os EUA enviaram para garantir a liberdade de navegação no mar da China do Sul. No seu caso, há uma relação forte com Portugal, sendo investigador do ISCTE, em Lisboa. Podemos dizer que a comunidade luso-americano é um exemplo de integração na sociedade? A relação com o país de origem, o continuar a falar português, é regra ou perde-se na segunda e terceira gerações?
Muitos pensam na cultura como algo a ser perdido ou ganho. O pressuposto é que cada geração irá "perder cultura" e assimilar ou integrar, palavras que são utilizadas de forma intercambiável. Mas a cultura não é algo que se "tem", mas sim algo que se vive. Os portugueses não foram todos para a América numa geração só, para depois nunca mais terem ligações com Portugal. Gerações nascidas nos Estados Unidos ainda vivem em comunidades de imigrantes portugueses. Mas quantas aqui em Portugal têm todas as mesmas práticas culturais de há três gerações? Não são portugueses por comerem bacalhau e dançarem num rancho folclórico. A vida da comunidade não está nos objetos culturais, mas nas relações sociais que os têm ajudado a defender a inclusão cívica, moldando a democracia dos EUA ao longo do caminho. A linguagem é semelhante. A razão pela qual muitos descendentes de imigrantes portugueses em meados do século XX deixaram de falar português em público nada teve a ver com a inevitável mudança geracional, mas sim com leis racistas, anti-imigrantes e esforços nacionais para "americanizar" os imigrantes, o que se tornou politicamente prejudicial para as expressões públicas da cultura portuguesa. Contudo, as associações continuaram a atuar como um centro social, cívico e cultural para a vida da comunidade portuguesa através de múltiplas gerações. É importante notar que os indivíduos vindos depois dos anos de 1960 chegaram durante debates cívicos e legislativos que iriam abrir o caminho para o multiculturalismo. A identidade portuguesa já não era vista como uma barreira, mas, de alguma forma, como um meio para alcançar a mobilidade social. Isto não aconteceu por acaso, mas através do trabalho árduo das pessoas que lutavam pelos direitos cívicos, pelo ensino bilingue e da língua portuguesa, por uma voz política para as comunidades imigrantes. Por exemplo, antes da covid, o comité eleito da Escola de Falmouth anunciou que iria dar início à fase de instrução em português a partir do K-12 [do infantário ao 12.º ano]. Portanto, estas mudanças não são inevitáveis, são políticas. Falmouth, à beira do mar, pode ser tão cosmopolita como Lisboa. É também uma cidade universitária, com vários importantes institutos internacionais de investigação científica, que beneficiaram as escolas de Falmouth. Há recursos educativos aí existentes que têm vantagens em comparação com os centros urbanos de migrantes mais pobres. Para cada um dos almirantes do U. S. Navy, cientistas, investigadores ou oficiais eleitos com ascendência portuguesa, há mais de cem pessoas nas comunidades que lutam por salários decentes, cuidados de saúde e habitação acessível, e não é por falta de trabalho árduo que não produzem mais resultados. O sucesso de um grupo não deve ser medido pelos êxitos dos poucos, mas sim pelos desafios dos muitos.

Quer destacar algumas figuras que têm trabalhado para que a língua e a cultura portuguesas sejam conhecidas na América?
Nos últimos 40 e poucos anos, os centros de estudos portugueses em universidades americanas tiveram um impacto profundo na educação das comunidades e a nível internacional. Isto inclui o ensino e a crítica das línguas, mas também outros campos de investigação que examinam tópicos portugueses. A Universidade Brown foi pioneira, criando um centro de estudos portugueses e brasileiros multidisciplinar na década de 1970 e uma imprensa académica. Estudei com vários dos fundadores do departamento, incluindo o meu orientador [em Antropologia] George Hicks, Nelson Vieira e Anani Dzidzienyo. Eu enviava manuscritos para George Monteiro, que me respondia sempre com críticas de grande perspicácia e sentido artístico, suplantando qualquer coisa que eu alguma vez lhe desse para ler. A centelha do departamento tem sido Onésimo Almeida (também meu professor), cujo trabalho intelectual liga a universidade à comunidade e é um académico "empoderador " que reconhece a excelência e a energia de outros que partilham do seu projeto humanista. O seu apoio é responsável pelo sucesso de gerações de estudantes e outros, e é um modelo forte de servant ou service leadership. Onésimo e estes fundadores foram inovadores influentes, responsáveis pelo desenvolvimento de um campo de estudos inteiro na academia dos Estados Unidos.

Há hoje quatro congressistas de origem portuguesa, dois republicanos e dois democratas. Os luso-americanos estão na política? Mais à direita ou à esquerda?
Os portugueses foram chamados "minoria invisível" com base na relutância de muitos durante períodos mais quentes de discriminação em se envolverem abertamente no ativismo político. Discordo desta caracterização. O facto é que os imigrantes portugueses têm estado envolvidos em causas cívicas e políticas e muitos têm concorrido a cargos eleitos durante um século. O seu ativismo político no Massachusetts e em Rhode Island ajudou à reforma da lei da imigração nos Estados Unidos. Com o Civil Rights Act, esta transformou as políticas que afetam a exclusão racista dos migrantes, e forjou modelos multiculturais (em vez de nacionalistas brancos/anglo-conformistas) de envolvimento cívico. As políticas de "grupos étnicos como grupos de interesse" têm servido bem os portugueses, mas apenas porque muitos trabalharam para criar o multiculturalismo em primeiro lugar. Em Falmouth, os dois eleitos (um democrata, um republicano) representantes do estado de Massachusetts e a chairwoman do select board (democrata) são de ascendência portuguesa. Os portugueses da Califórnia e de Nova Iorque, com tendências republicanas, têm histórias diferentes da Nova Inglaterra industrial, onde as comunidades migrantes formam a base da política partidária democrata. A divisão adverte contra a perceção dos portugueses como um bloco monolítico e sublinha a noção de que toda a política é local, mesmo quando o local é também transnacional. Numa campanha eleitoral, não importa se for democrata ou republicano, o político vai comer muito bacalhau.

Como vê a nova Administração? Do ponto de vista da construção de uma América diversa e inclusiva, Joe Biden ter sido vice de Barack Obama e agora ter como vice Kamala Harris é um sinal de que o tão falado racismo estrutural nos Estados Unidos está em recuo?
Com um otimismo fundado, mas crescente. Em primeiro lugar, saliento que existe uma diferença entre diversidade simbólica versus a tomada de medidas práticas que irão mudar o racismo estrutural. A América distingue-se por gestos performativos. Mas é muito mais fácil pintar um slogan num estádio desportivo ou eleger um vice-presidente ou presidente birracial do que fazer o trabalho duro e diário e assumir os riscos financeiros e políticos necessários para atacar as raízes da desigualdade racial. Especialmente quando tantos, quer por ignorância quer por cálculo político, negam que é mesmo um problema. A raça foi estruturada na escravatura através da grotesca premissa de que certos seres humanos estavam mais naturalmente inclinados à servidão e ao trabalho, pressupostos utilizados para justificar o seu tratamento brutal - uma lógica também utilizada contra os trabalhadores migrantes, incluindo os portugueses. Assim, os direitos raciais e laborais estão interligados, e a desigualdade racial só pode ser desmantelada juntamente com as reformas laborais. A política nacionalista branca de Trump/MAGA [Make America Great Again) expôs e continua a agravar a desigualdade ao propor obstáculos injustamente distribuídos para impedir a coligação multicultural de votar. As políticas e a abordagem de Biden são amplamente apoiadas, muitas vezes por maiorias esmagadoras do público. O presidente dos EUA não é um primeiro-ministro e é limitado sem uma maioria governamental no Congresso. O primeiro passo mais importante é a aprovação das reformas de votação que facilitam a participação eleitoral. Sem a capacidade de votar, o projeto não avançará muito. Mas as pessoas na administração têm uma compreensão sofisticada de como a raça e a marginalização social funcionam nos EUA. Colaboro com muitas pessoas que estão prontas a ajudá-las a fazer progressos substanciais em questões de equidade social e racial.

Conhecendo os dois países bem, crê que os norte-americanos têm uma ideia justa de Portugal e os portugueses uma ideia justa da América? Que possibilidades vê de reforço das relações Estados Unidos-Portugal?
A produção cultural internacional dos Estados Unidos assegura que muitos mais portugueses têm conhecimento de cinema, literatura, política, etc. da América do que o contrário. Há algumas exceções. Comerciantes, músicos e artistas, estudantes e investigadores desde sempre são uma chave para promover o conhecimento. Obviamente, a ligação de um século a Portugal entre comunidades migrantes só se intensificou à medida que se tornou mais fácil viajar ou visitar virtualmente. As comunidades migrantes têm sido historicamente o coração cultural e o ímpeto político dos esforços diplomáticos bilaterais de Portugal nos EUA. Portugal tem feito um excelente trabalho promovendo-se como destino turístico, mas há mais sobre o país do que praias, pastéis de nata, fado e Cristiano Ronaldo. O turismo tornou-se quase uma monocultura económica que infundiu rapidamente dinheiro após a crise económica, mas apenas devastando muitos bairros residenciais e ameaçando a sustentabilidade a longo prazo. Antes que Portugal convide novamente o mundo para as suas ruas, precisa de fazer escolhas ponderadas sobre a forma como o país é alugado, vendido e exportado. Tenho trabalhado como participante e organizador de muitos intercâmbios educacionais, culturais, empresariais e tecnológicos internacionais EUA-Portugal e outros. Ao contrário do turismo, programas que promovem a partilha de conhecimentos profundos e a resolução de problemas entre comunidades criam verdadeiros parceiros internacionais na sustentabilidade global e equidade social. O transatlantismo está no centro das relações entre Portugal e os EUA. Tem sido uma relação estratégica, comercial e militar fundamental. A renovação da cooperação transatlântica da Administração Biden, incluindo com Portugal, após quatro anos difíceis, será um primeiro passo importante. À medida que Portugal avança cada vez mais para parcerias estratégicas e económicas com a China, uma forte relação Portugal-EUA baseada em princípios democráticos, respeito pelos direitos humanos e igualdade social apenas irá aumentar a segurança e bem-estar de ambos os países.