Internacional
24 setembro 2022 às 22h09

"Apoiantes de Bolsonaro dizem que o Supremo é oposição. Nada disso"

Nomeado por Fernando Henrique Cardoso em 2002, Gilmar Mendes é o decano do Supremo Tribunal Federal do Brasil e foi seu presidente na era Lula. Atacado pelo atual chefe do Estado, e recandidato no dia 2, o magistrado minimiza a capacidade de Bolsonaro de pôr em causa sistema democrático, garante que voto eletrónico é eficaz e reivindica ação acertada no combate à covid.

O Brasil acabou de celebrar 200 anos. Apesar de todas as críticas que os próprios brasileiros fazem ao seu país, apesar também de alguns problemas de imagem que o Brasil tem ocasionalmente, são 200 anos que valem a pena celebrar, é um grande país que foi construído?
Sim, nós estamos a falar da que é hoje a oitava ou nona economia do mundo, que lidera em várias áreas, não só no setor do negócio agrícola, como é uma nação industrial que resolveu bem o encaminhamento institucional. São mais de 30 anos de Constituição dentro de um regime democrático - é uma das maiores democracias do mundo. Tem os problemas que todos nós conhecemos, as assimetrias, a desigualdade, mas é aquela coisa de olharmos o copo meio cheio ou meio vazio. Acho que o Brasil é muito efetivo em muitas áreas e também tem imensas potencialidades. Claro que precisamos de fazer corrigendas institucionais e nós estamos abertos a isso, já fizemos várias emendas constitucionais ao longo desse tempo. Temos graves problemas, por exemplo, na área político-eleitoral e isso tem vindo a ser corrigido. Para termos uma ideia, houve um dado momento no parlamento brasileiro em que tínhamos 32 partidos representados, o que leva a uma imensa dificuldade de governabilidade. Isso tem sido reduzido e calcula-se que nas próximas eleições, devido às cláusulas de barreira e outras exigências chegaremos a 12, o que para nós já vai ser um imenso progresso e significa também que as reformas estão em andamento.

Estando a caminho de umas eleições, considera que esta proliferação de partidos no Brasil, muitas vezes atingindo as duas dezenas, e até as três como referiu, fragmenta de tal forma o espaço parlamentar que dificulta a governação?
Com certeza. Isso é um grande problema que levou àquilo a que o famoso cientista brasileiro Sérgio Abranches chamou presidencialismo de coligação - independentemente do resultado das eleições, o partido do presidente da república conseguia no máximo 100 assentos em 513 no parlamento da câmara baixa. Isso significa que no dia seguinte às eleições começavam as negociações para fazer uma ampla coligação, às vezes até de contrários.

Nunca era possível fazer uma coligação com coerência ideológica?
Não era possível. É claro que nesses partidos havia muitos partidos "amorfos" do ponto de vista ideológico que constituíam grandes bancadas e aí se fazia a divisão de ministérios, que era a forma de construir essa maioria. Com um dado importante: o presidente muitas vezes não precisava de construir apenas uma maioria absoluta, ele tinha de apontar, devido à necessidade de reformas e da pormenorização do texto constitucional, para aquilo a que chamamos a maioria constitucional, que significa atingir os 3/5 de votos. Isso, para fazer as reformas que fizemos ao longo dos tempos, por exemplo, a previdência social, sobre a qual votámos mais de quatro emendas, a reforma administrativa. Em suma, o presidente precisava de negociar a maioria para ter 3/5 nas câmaras do Congresso.

Quando fala em negociar, há uma fama que se agarra muito à política brasileira que é a da corrupção. Não vou falar de casos particulares, mas há um célebre, o chamado Mensalão. Aí era claramente um pagamento que era feito para garantir lealdades para se poder governar?
Aparentemente o PT quis romper, até talvez devido a uma mentalidade hegemónica, com aquela ideia que já era antiga da distribuição de ministérios aos apoiantes, e tentou então alimentar as bancadas com um tipo de subsídios do género "vocês não têm ministério, mas vão ter um subsídio para as campanhas ou para manter a máquina partidária". Só que isto leva a problemas desde a origem do dinheiro, à maneira de fazer essa distribuição... A partir daí começam a surgir todos os problemas conhecidos que levam a esse processo que foi julgado no Supremo Tribunal Federal.

O senhor foi nomeado ainda no tempo do presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC), o qual é muitas vezes referido, neste Brasil muito polarizado, como o último presidente que conseguiu ter aquela gravitas institucional. Qual é a sua memória de FHC como presidente?
É extremamente positiva. Li uma entrevista do Armínio Fraga, que foi presidente do Banco Central [do Brasil] num daqueles momentos graves, em que ele dizia que, considerando os tempos mais recentes, parece que vivemos naquele momento um hiato, uma exceção, tendo em conta os debates racionais, a tentativa de fazer uma construção responsável. Foi quando se aprovou, por exemplo, a lei do combate à inflação e se criaram as bases para a estabilidade financeira, a lei da responsabilidade orçamental para evitar que houvesse esse festival, que havia no passado, de bancos estaduais que faziam emissões, o que gerava uma série de problemas. É nessa altura que se constrói, nesta fase mais recente, o Brasil moderno. Se temos alguma estabilidade hoje no Brasil, se temos moeda, é graças a esse período. Tomam-se providências também na área militar, um tema muito sensível para nós desde a república; cria-se o Ministério da Defesa, conjugando as três forças - exército, marinha e aeronáutica, que fica inicialmente sob o comando de um civil. Em suma, pensam-se várias coisas e também, embora depois se atribua muito, e talvez com alguma justiça, ao PT a criação da chamada Bolsa Família, é no governo de Fernando Henrique que se iniciam essas medidas. A ideia do estímulo às pessoas de baixos rendimentos; a ideia até de um tipo de contraprestação - incentivos àqueles pais que mandavam filhos à escola... Depois, isso consolida-se no governo de Lula. Dentro das limitações fez-se muita coisa. Eu considero, com justiça, que Fernando Henrique é um pouco o pai dessa nova república brasileira, até mesmo em termos de civilização. Havia umas relações muito cordiais com todas as forças, fossem da oposição ou da situação.

Acha que esse legado de Fernando Henrique Cardoso, que muitas vezes é referido - até quando se fala dos anos de Lula como presidente se diz que as bases foram lançadas por ele -, lhe dá hoje em dia uma voz que os brasileiros ouvem, ou seja, se ele indicar uma preferência por um candidato presidencial pode fazer a diferença ou já não tem influência?
Acho que tem influência, sim, dentro de um grupo intelectual, e acho que ele sofreu um pouco o défice da estrutura do seu próprio partido. O PSDB era um partido de quadros, não era um partido de massas, ao contrário do partido do presidente Lula, o PT. Tenho mesmo a convicção que o partido não soube fazer a defesa do seu legado, por exemplo, as privatizações. Basta ver que um dos candidatos da associação, o do PSDB, hoje candidato a vice do presidente Lula, Geraldo Alckmin, a um dado momento veste a camisola do Banco do Brasil dizendo que não seria privatizado ou coisa do género, como se fosse uma crítica aos trabalhos anteriores. Na verdade, se o Brasil se modernizou com a privatização de grandes empresas - toda a área de telecomunicações -, as bases jurídicas foram criadas no governo de Fernando Henrique Cardoso, mas o partido não soube defender esse legado e, de alguma forma, até se mostrava envergonhado. Isso talvez tenha que ver com a oposição massiva que o PT fazia, representando sindicatos, e também talvez com as dissidências internas. É possível que isso explique um pouco esse esquecimento do Fernando Henrique Cardoso, o que é uma pena até para o nosso processo civilizacional. Embora ele tenha mantido muita influência, sobretudo em São Paulo, onde vive, no PSDB. Até hoje, o PSDB nunca deixou de governar São Paulo, o que significa um pouco mais de um terço da nossa economia.

O senhor apanhou a chegada de Lula à presidência em 2003, à quarta tentativa. Lula ficou depois com a marca de ter transformado o Brasil. Lembro-me, inclusivamente, que no último ano como presidente, o Brasil cresceu acima de 7%. Na altura, Lula era acarinhado tanto pelo americano Barack Obama, como pela China e pela Rússia. Como explica que a política brasileira dos últimos anos se tenha transformado quase numa luta entre os pró-Lula e pró-PT e os anti-Lula e anti-PT, nesta clivagem extrema?
O governo de Lula tem méritos inegáveis, diferentemente até do governo de Fernando Henrique Cardoso, que enfrentou sucessivas crises internacionais - no segundo governo tivemos inclusivamente uma crise cambial seriíssima, afetada pela crise mundial. O segundo governo é marcado por sucessivas crises, mas eu acho que não teve problemas maiores graças ao prestígio de Fernando Henrique no plano internacional, que teve o aval explícito de Clinton junto do FMI. Na transição, Fernando Henrique faz uma coisa muito organizada e Lula recebe e prossegue na política de responsabilidade orçamental, de superavit primário.

Até surpreende porque se esperava um governo mais à esquerda...
Exatamente. Ele não faz populismo. Ao mesmo tempo, ele vai ser beneficiado pelo boom das matérias-primas e, obviamente, o Brasil vai então desenvolver-se e ele vai ter recursos para isso. Lula faz, de facto, boas políticas na área social, na área de infraestruturas e na área internacional. Faz com que as empresas brasileiras - uma parte disto vai aparecer depois no contexto de acusações de corrupção - se internacionalizem na América Latina, mas também aqui na Europa e noutros lugares. Vamos ver empresas brasileiras a construírem o aeroporto de Miami... Em suma, ele faz um trabalho bastante interessante nesse contexto e sai com uma aprovação de 80%. Talvez tenha cometido um grave erro, também devido às circunstâncias existentes - naquele momento, o PT já tinha sido atingido pelo Mensalão, o que fez com que candidatos naturais à sucessão já tivessem sido eliminados, como José Dirceu, e ele escolhe Dilma Rousseff como candidata. Claro que era quase uma nomeação, tendo em vista o poder que ele detinha com uma taxa de aprovação de 80%. Ela foi eleita como se fosse "a Mulher do Lula".

Dilma Roussef, que acaba por sofrer um processo de impeachment, já é eleita fragilizada, é isso?
Não. No primeiro mandato ela é eleita com grande facilidade, embora tenha enfrentado um candidato forte que era José Serra, ex-governador de São Paulo, mas vinha com o estímulo Lula muito forte. Estímulo que ele avaliou como tendo o potencial para ter grande influência no governo. Só que Dilma era uma figura que vinha de um passado de luta armada, que acreditava muito na presença do Estado e que passa a ter uma atuação muito dirigista, além de ter outras condições na economia. No final do seu primeiro mandato tivemos as manifestações de 2013, todas as crises, com os episódios do Campeonato do Mundo, as pessoas as protestarem e o governo já não ia bem. Ela também tinha dificuldade em dialogar com o Congresso Nacional porque tinha um perfil muito mais autoritário. Se olharmos para o Brasil em termos da estabilidade institucional, é curioso que até à Dilma quatro presidentes foram eleitos e só dois terminaram o mandato, os outros dois sofreram impeachment.

Só Fernando Henrique Cardoso e Lula é que terminaram...
Pois. Os outros dois sofreram impeachment - Collor e Dilma. Se analisarmos, de uma maneira talvez muito simplista, os dois que sofreram impeachment, além dos problemas que havia, não conseguiram encontrar uma equação para lidar com o Congresso Nacional. Dilma dialogava mal com o Congresso Nacional, mas também já tinha a popularidade muito baixa no segundo mandato devido à crise económica. Ela tentou resolver problemas de economia por decreto - fazendo com que baixasse o preço da luz, etc. - mas, como sabemos, isso acaba por correr mal, mas ela tinha essa visão de um modelo dirigista, intervencionista, que não correu bem. Ela tentava lutar com os números, no âmbito do próprio Tesouro.

Há um momento a seguir ao impeachment em que, para quem está a observar de fora, parece que a política brasileira fica refém de juízes, de processos judiciais, e que isso cria todo aquele ambiente - inclusive com a prisão de Lula - que leva às eleições de 2018 e à vitória de Jair Bolsonaro e que faz com que não haja uma terceira via, ou se é pelo PT ou por Bolsonaro. Juízes muito ativos, como Sergio Moro, influenciaram a política brasileira?
Certamente. Mas isso eu acho que tem que ver com todos aqueles escândalos que aconteceram e que começam a ser investigados, como o próprio modelo de financiamento. Após o Mensalão aparece então a denúncia sobre o chamado Petrolão, que é uso das diretorias da Petrobrás para financiar certos partidos políticos. Depois começa a discutir-se também, e isso atinge praticamente todo o sistema político, um modelo de financiamento, mas isso acontece num momento de questionamento do sistema político e de grande insatisfação popular. Eu acho que o próprio aparelho judicial percebe que havia essa debilidade e se organiza em torno disso. Obviamente, passa a fazer investigações e passa a constranger o próprio sistema político. É curioso que a instrumentação que passa a ser usada para as chamadas colaborações ou delações premiadas é criada no governo de Dilma com a ajuda do ministro Cardozo e, possivelmente, do ministro Mercadante. Dilma, com uma necessidade talvez até psicológica, quis distanciar-se do governo Lula e enfatiza a ideia de combate à corrupção e consorcia-se de alguma forma com esse grupo. As delações premiadas vão surgir para o bem e para o mal. As pessoas podem passar a fazer com que empresários sejam presos, como foi o caso de Marcelo Odebrecht que ficou 24 meses preso... eu já disse que, em muitos casos, a prisão preventiva no Brasil foi usada como instrumento de tortura. Depois, essas coisas todas ficam evidentes quando Moro aceita colaborar no governo do presidente Bolsonaro. A mim parece-me que esse aparato judicial acabou por contribuir para a consolidação da negação da política tradicional e a vinda de uma terceira via, chamemos-lhe assim, uma alternativa, e quem conseguiu encarnar esse personagem no processo de eliminação foi Bolsonaro.

Quando se olha para Bolsonaro nestes quatro anos, é um presidente que verbalmente é muito polémico; é um presidente que está a ser acusado sistematicamente de elogiar a ditadura militar; fala-se sempre que o Brasil está em risco de deixar de ser uma democracia. Do seu ponto de vista, que tem de vigiar sobre essa democracia, com todos os excessos de Bolsonaro e goste-se ou não da figura, a democracia no Brasil nunca chegou a estar em causa?
Eu acho que não. O que é que nós vimos com Bolsonaro? Ele disse que não faria um presidencialismo de coligação, de divisão de poderes entre os partidos, porque isso deu no que deu, dizia ele. Disse que ia trabalhar então com as chamadas bancadas temáticas, que é também uma peculiaridade do modelo brasileiro.

Está a falar da bancada evangélica, da bancada do agro...?
Isso mesmo. Ao lado dos partidos que estão representados no Congresso Nacional formam-se blocos em defesa de interesses, e alguns muito grandes - há a bancada da saúde, da educação, do agro...

São transversais aos partidos?
São transversais aos partidos e, praticamente, encontram-se representantes em quase todos os partidos. Há a bancada evangélica, que é obviamente muito representativa... Bolsonaro aloca então os ministérios com esse critério. Começa então a aventura legislativa. O presidente Temer tinha deixado praticamente pronta uma reforma da previdência social e a reforma constitucional e isso precisava de ser votado e houve imensa dificuldade em aprová-la. A razão é bem percetível: a bancada temática é una no que diz respeito aos seus temas - a bancada da agricultura defende os interesses da agricultura -, mas quando se trata de votar, por exemplo, uma reforma como a da previdência, ela pode ter interesses contrapostos ao governo. Assim, ele começou a ter imensas dificuldades em aprovar projetos. É curioso que é um governo que se afirma forte, mas que talvez tenha sofrido as maiores derrotas no Congresso Nacional. Ele tem também um receio muito grande de um processo de impeachment.

Isso é algo que qualquer presidente brasileiro receia...
Sim, com os antecedentes históricos dos últimos 30 anos. E ele tinha na presidência da Câmara, que é quem pode deflagrar o processo de impeachment, alguém com quem não tinha o relacionamento mais harmonioso. Ele percebe que, em algum momento, será preciso mudar. Aí, ele dá uma guinada completa naquele discurso inicial e faz um presidencialismo de coligação, do mais confesso e explícito, entregando toda a base governamental ao chamado centrão - os poucos partidos que passam a dar-lhe sustentação. Portanto, faz uma guinada radical e, a partir daí, obviamente consegue eleger o presidente da Câmara que passa a ser o líder desse agrupamento e passa a ter mais tranquilidade nessa área. Muitos dos projetos passam também a ter maior velocidade. Ao mesmo tempo, isto é também um modelo de governança, chamemos-lhe assim, porque cresce a influência dessa bancada no que respeita, por exemplo, ao orçamento. O Congresso delibera sobre investimentos no valor de 35 mil milhões, portanto este grupo dominante é que o faz. Nesse sentido, o governo revela portanto grande debilidade.

Apesar de todas as alusões à ditadura, do facto de ter posto muitos militares no governo - e as forças armadas são a instituição mais prestigiada no Brasil, dizem as sondagens -, não se pode dizer que Bolsonaro pôs em algum momento em causa o funcionamento democrático?
Não, isso acho que não. Ele governou com o Congresso. Inicialmente, se fizermos uma retrospetiva, creio que ele tenta em 2019 fazer o discurso tanto voltado para o Congresso como para o Supremo [Tribunal] - isso aparecia nas manifestações - com as expressões "Eu autorizo", "Eu delego", como se tivesse ganho uma eleição plebiscitária... voltava-se contra o Congresso, contra o executivo e contra muitos militares que integravam, inclusivamente, o governo, mas isso não produziu efeito. O Congresso agiu com desenvoltura e aprovou o que tinha de aprovar. Também não provocou efeito no âmbito do poder judicial, especialmente do Supremo Tribunal Federal, mas tivemos várias manifestações em 2019, em frente ao Palácio do Planalto, onde havia esse discurso voltado para ambas as Câmaras.

O Supremo Tribunal Federal conseguiu sempre manter-se firme?
Sim. Tivemos até um episódio que causou uma certa irritação e uma certa dificuldade de diálogo com a presidência, com o executivo, que foi a pandemia em 2020. Em março de 2020 começa todo aquele quadro e o governo teve imensas dificuldades. Primeiro, o ministro que tinha sido indicado por ele, o médico Mandetta, um ex-deputado, começa a professar a cartilha da OMS - o isolamento social, cuidados, etc. - e isso era tudo o que Bolsonaro não queria. Aparentemente, ele apostava na imunidade de grupo e até disse que seria uma gripezinha, ou que alguns remédios poderiam surtir efeito e coisas do género. Aí demite o ministro e chama para o lugar um outro médico, Nelson Teich, que fica um mês; depois fala com um general para desempenhar a função, para fazer aquilo que ele queria, porque com médicos não conseguia. Começa então um debate, porque o nosso sistema de saúde tem uma divisão tripartida entre a União, os estados e os municípios. Aí começam os conflitos, porque os estados e os municípios começaram a reivindicar - enviaram para nós, para o Supremo Tribunal Federal - medidas que queriam implementar e que o governo federal estava a impedir isso. Bolsonaro fazia um tipo de teste com decretos que diziam: atividade de culto é essencial; atividade de manicure é essencial; atividade de casas de lotaria é essencial...

E condicionava tudo...
Condicionava, com a ideia de impedir os estados e os municípios de tomarem medidas de isolamento social. Essa matéria chegou ao Supremo e o Supremo afirmou que esta competência era compartida, pois é isso que está na Constituição. Aí o Supremo começa então a dizer que os estados e os municípios tinham competências, isso por uma razão até pragmática, porque nós tínhamos um quadro de contaminação das pessoas. Muitas dessas pessoas contaminadas precisavam de atendimento, às vezes simples, outras um atendimento hospitalar mais complexo e muita gente precisava de UCI. Assim, os estados viram-se às voltas com a necessidade de atuar e pediram ao Supremo, que confirmou isso. Essa foi uma das causas da irritação na relação.

Mas aí a decisão foi suprema?
Foi suprema. Simplesmente confirmou e facilitou uma série de medidas no que diz respeito ao orçamento. Eu mesmo participei nessas discussões para que houvesse mais flexibilidade orçamental. Era preciso que houvesse medidas e que os estados e municípios pudessem tomá-las. Quando não se tomam essas medidas, temos o quadro que se viu em Manaus onde chegou o momento em que faltou oxigénio. Foi inclusivamente uma grande derrota política do governo, pois precisámos de importar oxigénio da Venezuela, mas houve pessoas que morreram asfixiadas. Estou certo de que o Tribunal ajudou de uma maneira absolutamente correta do ponto de vista constitucional e político.

Com resultados práticos...
Certamente. Nós teríamos perdido muito mais do que 650 000, que já é um número muito alto, se não tivesse sido essa ação. Para concluir esse capítulo, no final aparecem as vacinas, tanto da iniciativa do Butantan como do governador Dória, como as vacinas que podiam ser importadas. Com muita perplexidade, o governo criou muitas dificuldades para assinar o contrato com a Pfizer, admito que por algum preconceito em relação à vacina. Quem determinou que houvesse plano nacional de imunização e que este fosse implementado foi o Supremo Tribunal Federal.

Mostrou-se que apesar de o presidente ser eleito pelo voto popular e de ter uma personalidade como a de Bolsonaro, a Constituição foi cumprida e cada um fez o seu papel?
Sim. Claro que nesse contexto há reclamações, sobretudo por parte do grupo de adeptos do presidente, de que nós somos demasiado intervencionistas, ou ativistas, ou coisa do género. Ora, estou certo de que o Tribunal cumpriu um papel difícil, mas extremamente meritório.

Quando olha agora para as eleições que se aproximam, há também debates sobre o voto eletrónico. Até agora o voto eletrónico tem funcionado sem problemas no Brasil?
Sem problemas nenhuns. Eu fui presidente do Tribunal Eleitoral por duas vezes, e esse sistema tem vindo a ser continuamente aperfeiçoado. Se tínhamos problemas no passado, era exatamente pela falta do voto eletrónico - ocorriam fenómenos de abismo na contabilização e tudo isso deixou de acontecer. Bolsonaro já tinha feito um projeto-lei sobre o chamado voto impresso e o supremo Tribunal Federal considerou que perante as dificuldades, não se poderia fazer esse voto impresso.

Bolsonaro quase que propõe uma duplicação do voto?
Sim.

Não há possibilidade de acontecer?
Não, não vai acontecer. Na época, enquanto a lei esteve em vigor, nós chegámos até a preparar-nos para criar algumas urnas que pudessem também imprimir o voto. O problema de ter uma contabilidade paralela, considerando a dimensão do Brasil - estamos a falar de 5800 municípios - é que se coloca o resultado eletrónico e depois colocam-se esses papeluchos na mesa. Se um desses papéis desaparece... já aconteceu alguém engolir o voto, por exemplo. Portanto, havia muitas objeções em relação a isso e a lei não passou. Já agora, dentro do governo Bolsonaro, eles passaram uma emenda constitucional que obriga à existência do voto impresso e isso foi derrotado pelo Congresso.

Portanto, as eleições no Brasil vão ser com voto eletrónico?
Vão ser com voto eletrónico e não há nenhuma dificuldade em relação a isso. A questão foi muito politizada. Eu tenho a impressão de que isso está nessa agenda de encontrar inimigos do que se chama o populismo iliberal, o que serve para explicar, por exemplo, a inimizade com o Supremo Tribunal Federal. Muitos apoiantes de Bolsonaro dizem que o Supremo é o partido de oposição. Nada disso, pelo contrário. Em muitos casos, inclusivamente durante a pandemia, como a criação do orçamento de guerra, nós apoiámos, mas acho que isso faz parte dessa agenda, e agora o novo inimigo é a urna. Desta vez não é o Supremo, é o TSE [Tribunal Supremo Eleitoral]. Também há a circunstância eleitoral - as sondagens começam a indicar Bolsonaro com dificuldade em ganhar a eleição, então a discussão sobre a urna eletrónica também vem a calhar.

leonidio.ferreira@dn.pt