Internacional
01 julho 2023 às 22h11

As bolinhas de queijo cazaques que alimentavam as mulheres dos traidores à pátria

Foram 18 mil as prisioneiras que passaram pelo ALZHIR, um campo soviético construído no Cazaquistão no tempo de Estaline. Algumas delas deixaram memórias sobre esses tempos de trabalhos forçados, frio e fome. Sentindo-se injustiçadas por estarem detidas sem qualquer acusação, foi a solidariedade dos aldeões cazaques que lhes devolveu alguma fé na humanidad.

Dezenas de velhas fotografias a preto e branco de mulheres jovens, na casa dos 30 anos, estão expostas em vitrinas, cada uma com uma pequena nota biográfica em cazaque, russo e inglês. De repente, as estatísticas do terror vermelho, sobretudo dos anos de Estaline como líder da União Soviética, ganham neste antigo gulag tanto rostos como nomes: calcula-se que 18 mil prisioneiras passaram por ALZHIR, acrónimo em russo para Campo de Akmola para Mulheres dos Traidores à Pátria, nos 28 anos de funcionamento. Entre elas estiveram, lembra o museu construído no local do gulag, "Nikolaeva Shubrikova, russa de Leninegrado, nascida em 1905, mulher de Vladimir Shubrikov, primeiro-secretário de uma secção regional do Partido Comunista", "Raisa Mamayeva, ucraniana de Kaluga, nascida em 1900, mulher de Ivan Mamayev, conselheiro militar soviético", "Maria Minkina, judia bielorrussa, de Gomel, nascida em 1904, mulher de Jacob Bronstein, secretário da União de Escritores da Bielorrússia" ou "Damesh Zhurgeneva, cazaque de Karkalinsk, nascida em 1905, mulher de Temirbek Zhurgenev, comissário da Educação da República Socialista Soviética do Cazaquistão".

Quando foi fundado, em finais de 1937, com o primeiro comboio com vagões cheios de prisioneiras a chegar em janeiro de 1938, ALZHIR ficava nos confins da União Soviética, a uns convenientes 2500 quilómetros de Moscovo, já que a ideia era serem esquecidas. Hoje, porém, o Museu e Memorial às Vítimas das Repressões Políticas e do Totalitarismo está a meia hora de carro de Astana, capital do Cazaquistão desde 1997, cidade ligada ao mundo por vários voos diários. Por isso as legendas em inglês, já que há visitantes estrangeiros, muitos deles turistas, outros jornalistas, mas também chefes de Estado, como o presidente polaco, Andrzej Duda, que em 2017 aqui esteve, ou o presidente do Conselho Europeu, o também polaco Donald Tusk, que veio em 2019, acompanhado pelo presidente Kassim-Jomart Tokayev, que quer que o passado de repressão seja conhecido para não se voltar a repetir. A estepe cazaque foi destino na primeira metade do século XX de milhares de prisioneiros políticos de várias nacionalidades, mas também de mais de um milhão de deportados, por vezes comunidades inteiras, povos como os alemães do Volga ou os coreanos do Extremo-Oriente soviético, vistos como uma ameaça. Também polacos étnicos estiveram envolvidos, por isso a vinda de Duda e Tusk a este local que era uma das muitas ilhas do sistema prisional soviético descrito em O Arquipélago Gulag pelo escritor russo Alexander Soljenitsin, ele próprio também em tempos enviado para um campo de trabalhos forçados no Cazaquistão.

Uma moderna escultura, batizada de Arco da Tristeza, antecede o edifício do museu. Em redor, numa área ajardinada cujas coloridas flores não resistirão à chegada súbita do gélido inverno cazaque, uma carruagem de gado dos anos 30 recorda as condições em que as prisioneiras chegavam a ALZHIR, muitas vezes grávidas ou trazendo os filhos pequenos, que acabavam por ser criados algum tempo por trás de arame farpado, até serem retirados às mães e enviados para orfanatos. E entre os objetos expostos no edifício cónico que alberga o museu, a dar vida às fotografias, estão roupas de prisioneiras, brinquedos dos filhos, chávenas e vários outros objetos de um quotidiano que estas mulheres que nenhum crime tinham praticado (e os dos próprios maridos muitas vezes eram fictícios, confessados sob tortura) tentavam que fosse o mais normal possível no intervalo do trabalho forçado, que ia desde a costura de fardas para o exército até à criação de gado e lavoura, por vezes até construção.

Os invernos no Norte do Cazaquistão podem ser terrivelmente frios. Em Astana, os 50ºC negativos são, aliás, uma das marcas da moderna cidade, que chegou a ser batizada com o primeiro nome do homem que liderou em 1991 o processo de independência do país e que sonhou com esta capital para substituir Almaty, Nursultan Nazarbayev. Em Akmola, há quase um século, as prisioneiras tiveram de se habituar às temperaturas terrivelmente baixas, que tornavam ainda mais dura uma existência com roupa insuficiente e uma alimentação à base de hortaliças e batatas. São muitas as memórias de sobreviventes que descrevem a penúria em ALZHIR. E até há livros escritos por prisioneiras famosas, atrizes como Tatyana Kirillovna, um grande nome do cinema soviético, onde a vida no gulag é contada (a autobiografia está numa vitrina junto à sua foto).

As recordações de uma prisioneira chamada Gertrude Platays, provavelmente uma alemã étnica, descendente dos agricultores vindos para o Império Czarista no tempo de Catarina, a Grande, revelaram como os camponeses cazaques das imediações de ALZHIR tentaram ajudar aquelas mulheres, vindas, na sua maioria, de longe, muitas delas loiras e de olhos azuis, tão diferentes dos rostos de olhos rasgados e cabelo negro que faz a beleza das mulheres do Cazaquistão. Contou Platais que, quando trabalhava um dia nos campos, viu aproximar-se gente. Era sobretudo crianças e anciãos. Respondendo às ordens dos mais velhos, as crianças começaram a atirar pedras. Perante o desespero das prisioneiras, alguns guardas começaram a rir, dizendo que ninguém gostava delas, que todos sabiam tratar-se de inimigas do Estado. Platais - e isto foi contado por ela mesma aos funcionários do museu numa visita em 1990 - sentiu-se revoltada com a forma como a propaganda estalinista parecia ter sucesso até nas mais remotas aldeias soviéticas, mesmo entre estes povos da Ásia Central. E este apedrejamento durou dias, segundo ela. Até que um dia, exausta, deixou-se cair e notou que as inúmeras pedrinhas brancas acumuladas no chão tinham cheiro. Pegou numa, pareceu-lhe cheirar a queijo e provou. O sabor era um pouco salgado, mas agradável. Prisioneiras cazaques disseram depois ser qurt, bolinhas de queijo que fazem parte da tradição de vários povos de língua túrquica, nomeadamente destes antigos nómadas que são os cazaques (a palavra quer dizer livre e deu origem à expressão cossaco). Afinal, os aldeões estavam a ser coerentes com a hospitalidade que sempre foi costume dos seus e tentavam ajudar as mulheres vindas de longe a sobreviver. Discretamente, Platais encheu os bolsos e depois deu a provar o qurt a outras prisioneiras. Esta história, que os cazaques contam com orgulho, inspirou mesmo uma professora de História a escrever um poema baseado nas memórias de Gertude Platais e intitulado Qurt - uma pedra preciosa.

Com mais de 100 comunidades a viver hoje no seu país, os cazaques, que voltaram a ser a maioria da população na República do Cazaquistão, prezam muito a solidariedade com que acolheram presos políticos e povos deportados. E por isso neste museu, inaugurado em 2007, o protagonismo é dado ao drama vivido pelas Mulheres dos Traidores da Pátria. E se várias delas eram cazaques - algumas célebres até, como Zhambike Shanina, atriz, mulher do primeiro realizador de cinema cazaque, Zhumat Shanin, nascida em 1900 na aldeia de Karhalan mas certamente convertida aos tempos modernos, como mostram o chapéu com um penacho que usa na foto exposta -, a grande tragédia deste povo foi a coletivização forçada de 1931-1933, que quis transformar nómadas em operários agrícolas a trabalhar em quintas estatais. Foram então mais de dois milhões os mortos, um sofrimento também contado neste Museu e Memorial às Vítimas das Repressões Políticas e do Totalitarismo.

leonidio.ferreira@dn.pt

DN viajou a convite da embaixada do Cazaquistão.