xenofobia
02 fevereiro 2024 às 07h31
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Proibir protestos pode ser inconstitucional, mas há um parecer que o permite

Constitucionalistas têm dúvidas sobre decisão de Carlos Moedas de proibir manifestação xenófoba - promovida por Mário Machado, condenado a mais de 15 anos de prisão efetiva por múltiplos crimes - mas o autarca tem respaldo para o fazer num parecer da PGR pedido para salvaguardar Fernando Medina no caso do russiagate.

Podem proibir-se manifestações? “Essa não é uma interpretação que tenha acolhimento na doutrina da maioria dos constitucionalistas”, diz ao DN a especialista em Direito Constitucional Teresa Violante, que diz ter “dúvidas sobre a legalidade da proibição” decretada pelo presidente da Câmara de Lisboa, Carlos Moedas, à manifestação contra a islamização da Europa convocada para este sábado no Martim Moniz. 

Além de Teresa Violante, também constitucionalistas como Jorge Miranda, Gomes Canotilho, Vital Moreira e José de Melo Alexandrino têm escrito sobre os limites do direito à manifestação, concluindo que pode haver restrições (nomeadamente quanto ao local do protesto), mas não uma proibição, ainda que - como acontece no caso de Lisboa - possam estar em causa dúvidas sobre questões de segurança.

“A falta de segurança é um fundamento legítimo para proibir manifestações, mas a circunstância de a manifestação ser violenta só pode ser aferida durante a manifestação e não a priori”, defende Teresa Violante.

Proibir em "casos extremos"

Carlos Moedas sustentou a decisão de proibir a manifestação de sábado com um parecer emitido pelo Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República em 2021 sobre as competências dos presidentes de câmara.

Nesse texto (que foi publicado em Diário da República a 28 de outubro de 2021), diz-se que compete ao presidente da câmara “em casos extremos, proibir determinada reunião, manifestação, comício, desfile ou cortejo, dentro dos pressupostos e requisitos muito estritos que se encontram no n.º 2 do artigo 3.º, do Decreto-Lei n.º 406/74”.

Esses casos são, como se entende da leitura da lei de 1974, situações em que os protestos sejam “contrários à lei, à moral, aos direitos das pessoas singulares ou coletivas e à ordem e à tranquilidade públicas”.

Ora, Carlos Moedas tem um parecer da PSP, que não tornou público, mas que alerta para o perigo de a manifestação contra a islamização da Europa pôr em causa a ordem e a tranquilidade públicas. Contactado pelo DN, Moedas não quis fazer mais comentários sobre o tema.

Ao que o DN soube junto a fontes policiais, este parecer da PSP não propôs a proibição da manifestação, mas foi muito claro na recomendação desta não se realizar naquele local, devendo o mesmo ser alterado.

Esta análise de risco teve em conta o contexto internacional, designadamente as manifestações com temáticas igualmente xenófobas que têm ocorrido na Europa. “Em regra há incidentes e violência”, sublinha uma dessas fontes.

Por outro lado, é conhecida das forças de segurança e dos serviços de informações a ligação e colaboração entre estes movimentos extremistas de vários países. 

A esta avaliação negativa, a PSP juntou também a localização prevista e o contexto social. “Trata-se de um local com um grande peso da comunidade islâmica, num dia (sábado) em que haverá muita gente na rua, num espaço arquitetonicamente fechado, com ruas estreitas, que dificultará em muito qualquer operação policial. Ou seja, tudo junto e o grau de probabilidade de desordens era extremamente elevado”.  

A direção nacional da PSP assumiu, comunicado, nesta quinta-feira à tarde, que “atendendo às características sociais e físicas do espaço, entendeu que existe um risco elevado para a ordem e segurança públicas, não estando assim reunidas as condições de segurança necessárias para a realização do evento”.

Múltiplas condenações

Recorde-se que o “promotor” desta ação é o neonazi Mário Machado e não é a primeira vez que encabeça um evento desta natureza. Em 2005 foi também o promotor de uma manifestação xenófoba no Martim Moniz, que envolveu incidentes violentos.

Dos seus 47 anos, este autodenominado “nacionalista”  passou mais de um quarto em reclusão - exatamente 11 anos e oito meses, correspondentes às condenações, por dezenas de crimes, a mais de 15 anos de prisão efetiva.

Conforme um levantamento feito pelo DN em junho de 2023, por altura da sua última condenação conhecida -  pelo crime de incitamento ao ódio e à violência - acrescem a estes 11 anos várias penas de prisão cuja aplicação foi suspensa (como foi a referida: três anos de pena suspensa) e ainda diversas penas de multa.

Entre os crimes pelos quais foi, desde os anos 1990, condenado, contam-se ofensas à integridade física graves qualificadas, discriminação racial ou religiosa, roubo e roubo qualificado, sequestros, ameaças, coação, dano, difamação grave, extorsão, detenção ilegal de arma, detenção e tráfico de armas proibidas.

Não conformado com a decisão de Moedas, Machado  interpôs uma providência cautelar junto do Tribunal Administrativo invocando uma violação do direito à manifestação. Caso a decisão lhe seja favorável, a manifestação vai realizar-se naquele local que, do ponto de risco de segurança, foi classificado de “elevado risco”.  

“Por muito que tenham publicamente um discurso de que as manifestações são pacíficas, sempre arranjam um pretexto, seja em resposta a uma alegada provocação, ou outro, para a violência se instalar. Nem as autoridades policiais são poupadas”, assinala um analista das secretas.

Uma constatação que bate certo com as intervenções de Mário Machado nos grupos de redes sociais onde tem promovido esta sua ação xenófoba. No “grupo 1143”, por exemplo, com 2000 seguidores, Machado promete que, serão  sempre cumpridos “ todos os pressupostos legais, pacificamente e ordeiramente”.

Além do pressupostos da análise da PSP, junta-se ainda outro, que preocupa significativamente as autoridades: no mesmo local organizações antirracistas e antifascistas, que os analistas ligam à extrema-esquerda, vão fazer um “arraial” para “celebrar a diversidade e a pluralidade contra o racismo e preconceito”. 

No já referido comunicado, a direção nacional da PSP “ressalva que continua a recolher informação e a acompanhar os desenvolvimentos referentes à iniciativa agendada para dia 3 de fevereiro, nomeadamente através de fontes abertas” e que “esta monitorização e recolha contínuas de informação permitem avaliar os potenciais riscos associados à iniciativa e planear a operação policial mais adequada às necessidades”. 

Lei anterior à Constituição

Para Teresa Violante  o parecer emitido pela PGR dá legitimidade jurídica à decisão de Carlos Moedas, mas não o obriga a decretar uma proibição que põe em causa um direito constitucionalmente protegido, que é o direito à manifestação.

“Tem uma base jurídica, mas é uma opção política”, vinca a constitucionalista, lembrando que o Estado tem o direito de salvaguardar o direito à segurança dos residentes do Martim Moniz, mas que o pode fazer sem restringir o direito à manifestação, por exemplo, alterando o local do protesto. “Não devemos excluir os direitos das pessoas por mais chocantes que nos pareçam e parecem”, declara.

Teresa Violante questiona “a prática reiterada” da administração pedir pareceres sobre direitos, liberdades e garantias ao Conselho Consultivo da PGR e não ao Tribunal Constitucional (TC).

De resto, o TC nunca foi chamado a pronunciar-se sobre o Decreto-Lei n.º 406/74, que foi feito antes da Constituição de 1976 e que, segundo juristas ouvidos pelo DN, suscita dúvidas de constitucionalidade, até no facto de ser um decreto a legislar sobre matéria que hoje se entende ser da competência exclusiva da Assembleia da República.

O parecer da PGR em que se respalda a decisão de Carlos Moedas foi emitido a pedido da então ministra da Modernização do Estado e da Administração Pública, Alexandra Leitão.

Na altura, a questão era a de perceber se Fernando Medina devia ou não ter enviado os dados de manifestantes russos em frente à embaixada da Rússia às autoridades russas. O parecer dava cobertura a essa decisão de Medina e foi homologado, tornando-se vinculativo para a administração pública.

Por Amanda Lima, Margarida Davim e Valentina Marcelino