Passagem de ano em beleza com belas bolhinhas

É quase certo que a ceia de Ano Novo vai ser marcada por poucos à mesa, testagem obrigatória, e nada de folia. Vai ser duro mas basta pensar que o resto do mundo vai estar em sintonia, a luta é mesmo global. Vamos por isso concentrar-nos no grande momento que queremos e precisamos que seja a passagem de ano. O Rei dos Leitões, na Mealhada, aceitou o nosso repto e preparámos a ceia perfeita. Aproveitámos para sublinhar a componente exótica de uma harmonização inteiramente feito com espumantes! Aqui fica a composição do grande momento para passar o ano em beleza. Bom Ano Novo!

Chega o tempo das Festas que põe termo ao ano e pelo menos até à Páscoa alargamos os cintos e entregamo-nos às delícias da grande tradição portuguesa. A quase coincidência de datas entre o nascimento de Jesus Cristo e o solstício que os tempos mais modernos determinam não é em vão; partimos do dia mais escuro do ano em direção à luz e, como diz o povo, "Janeiro fora, mais uma hora, e hora e meia há-de achar quem bem souber contar". Estamos na regeneração de todas as coisas, as matanças do porco fazem-se por todo país, extraindo-se o maravilhoso fumeiro. Mas antes de tudo... passamos o ano em beleza. É o momento de alinhar os vinhos que guardámos na garrafeira para estes dias de festa, e sobretudo, à meia noite não pode faltar o espumante.

Acaba de chegar de França a notícia de que pelo Natal se consumiu 20% mais champanhe que nos anos anteriores. O saltar das rolhas e a efervescência que cada garrafa traz dentro continua a ser como que uma forma de afastar para bem longe os maus momentos por que temos passado. E se ousássemos nós também intensificar - ou quem sabe, dar mais valor! - aos bons espumantes que temos? E temo-los bem bons pelo país fora.

Propus ao biónico Paulo Rodrigues, do Rei dos Leitões, no coração da Mealhada, o desafio de elaborar a ceia de Ano Novo apenas com espumantes, quatro ao todo, cada um de sua região. Juntamente com o chef Elson Almeida e a chef pasteleira Lídia Ribeiro estabeleci os pontos cardeais da nossa grande refeição, para a qual estabeleci um roteiro composto por quatro momentos de prato e espumante. E fizemos in loco o ensaio geral na grande casa que é o Rei dos Leitões, assessorados de perto pelo genial e incansável escanção Carlos Marques. Poucos teriam simplesmente anuído ao que propus, quanto mais deixado fazer tudo o que queríamos. O resultado foi retumbante, êxito total e absoluto, pelo que o relato se justifica passo a passo, até porque até esta experiência acontecer confesso que era detractor severo de refeições totalmente harmonizadas com espumante.

Entrada com Vinhos Verdes

Do ponto de vista formal, o alinhamento de espumantes quanto a denominações de origem foi estabelecido a priori, com a região dos Vinhos Verdes a abrir a sequência, em particular espumante Alvarinho. A exuberância da casta aliada à força e acidez de um bom espumante Monção & Melgaço seria a estratégia ideal para abordar o prato inicial de que sou fã confesso e frequentador assíduo sempre que vou ao Rei dos Leitões, que é a "Salada de Lavagante à Rei".

Lavagante extraordinário na frescura e consistência, as assessorias variam quanto a molhos e condimentos, e todas agradecem a lâmina benfazeja da belíssima acidez fixa do Quinta de Santiago 2014. Na versão que nos foi servida da maravilhosa salada, o abacate e a manga criaram um grupo de amargos que casou muito bem com as notas minerais e terrosas do espumante. O sweet chili e o molho de soja e sésamo abriram um lado exótico a que o espumante correspondeu na perfeição.

Um duriense único para um prato especial

Face ao prato de peixe preconizado pelo chef Elson Almeida, pensado e construído para fazer a devida justiça a um espetacular pregado de mais de cinco quilos, a escolha era tudo menos óbvia. Um espumante com um grupo de amargos demasiado pronunciado iria de encontro ao elevado conteúdo de iodo e ferro do peixe. Por outro lado um espumante com défice de acidez, por ligeiro que fosse, não iria conseguir resolver a proteína principal. Altura ótima, por isso, para optar pelo maravilhoso espumante do Douro que é Pontas Soltas 2016 blanc de noirs.

É um estreme de Tinta Francisca - o único? - bolha muito fina, acidez vibrante e uma frescura que lhe vem dos xistos de transição em que existe e medra, junto a Mesão Frio. Margem direita do rio, altitude considerável, e muito sabor! Não só tem as tonalidades que procuramos e que são afins do que encontramos num peixe de mar de bitola grande, como também excede e sugere ainda mais força no capítulo salino, que marca o fim de boca do vinho.

O chef Almeida batizou o prato como "Pregado na sua plenitude" e elevou-o ao nível quintessencial. Destacou uma peça do lombo do grande peixe, onde a suculência é abundante, entremeou-a com copita fumada, justamente a parte do cachaço do porco mais suculenta e saborosa. Depois sujeitou o conjunto a uma caramelização com manteiga noisette, tratamento clássico da escola francesa para enclausurar o sabor e as nuances de textura, criando unidade. Encontra-se creme de limão com emulsão de açafroa e ornamentação com espargos, o que aumenta o interesse exploratório do prato. A ligação com o vinho é brilhante, em boa hora o chef o provou, muito do que apresentou resultou das suas impressões de prova.

A edição de 2017 deste espumante já está no mercado, mas foi este de 2016 que utilizámos, dado ser o que estava em cave. A evolução de um ano em garrafa fez-lhe bem e tornou o vinho também ele mais unificador.

Leitão com espumante da Bairrada, pois claro!

O prato de carne tinha de ser "Leitão assado à moda da Bairrada", tanto por ser a forma mais feliz de cozinhar o bicho como por estarmos no coração da Bairrada. Atenção que tais artes não cabem a todos, e convenhamos que à exceção de meia dúzia de casas a experiência está longe da grande epifania. Esta em que nos encontramos dedicou-se a fundo ao aprimoramento técnico e chegou a um patamar de excelência.

Na lógica bairradina, depois de muito anotar e provar, posso afiançar que antes de se armar no espeto, é besuntado por dentro com uma pasta de alho e pimenta preta a na derradeira hora de preparação é cuidado proverbial passar nas axilas e coxas um certo vinho azedo que é o próprio assador que faz e não abre mão do respectivo segredo.

Logo na entrada no rubro do forno percebe-se tudo: rapidamente os sucos vão migrar para a pele mais superficial, que incha como se de um balão se tratasse, construindo o que mais tarde vai ser o vidrado que tanto amamos e aclamamos no reco. Os melhores leitões resultam de criação própria, cruzamento das raças duroc e bísaro, contenção de gordura e carne saborosa resolvidos de uma só estocada. O sabor a lenha é maravilhoso e o da carne é viciante, não há mesmo melhor forma de assar o leitão.

A escolha do vinho recaiu no vibrante Quinta das Bágeiras Super Reserva 2018, um espumante brut nature (sem adição de açúcar) feito a partir de uvas Maria Gomes e Bical. A fusão com o vinho é mágica, este sabe exactamente as partes que tem de tratar e neutraliza em harmonia todas as pontas e arestas vincadas, ficando tudo etéreo. Outra reacção interessante é bebermos o espumante e não sentirmos o líquido na garganta, apenas no palato. Está aqui o charme que intimamente nos prende ao bom espumante, sem disso nos darmos verdadeiramente conta. Leitão à Bairrada com espumante Bairrada, tudo certo.

Alta pastelaria e espumante alentejano

Quando se chega ao fim de uma refeição longa e variada, raramente se tem fome e a doce terminação dá muitas vezes em ser dispensada ou substituída por fruta. No Rei dos Leitões isso é totalmente impossível, por uma pasteleira muito especial que ali labora. Lídia Ribeiro conquista os corações mais azedos com as suas boas tropelias doces, à maneira dos melhores relatos de Laura Esquível.

O ultra-clássico "Morgado do Bussaco", um doce de camadas normalmente demasiado doce, feito pela chef Lídia é um festim completo e equilibrado. A apresentação que lhe deu quando o levou à mesa foi uma variação muito agradável de ver e comer. Seguiu a lógica da compensação das partes e desenvolveu queneles de gelado de figo fresco, o que resultou particularmente bem, resolvendo antes que déssemos pela falta dele.

Ao mesmo tempo, criou a ponte óbvia fulcral para a harmonização com o espumante alentejano Cartuxa 2013, um estreme de Arinto produzido pela Fundação Eugénio de Almeida em Évora, sob a grande batuta enológica de Pedro Baptista. Copioso na boca, mostra mel e figo na boca, indo ao encontro da criação de Lídia como pombo que vem comer à mão.

Afundando ainda mais o entrançado vinho-comida, acrescentou favo de mel à sobremesa, criando um património vibrante na boca, e forçando a repetição da experiência. Exatamente o que se pretende para o derradeiro capítulo da derradeira refeição do ano.

Motivos não faltarão então para erguer o copo bem alto e desejar àqueles que ama um excelente Ano Novo. Que não falte o fogo de artifício no céu e a alegria no coração. Bom Ano!

Mais Notícias

Outros Conteúdos GMG