Vida e Futuro
21 setembro 2018 às 18h25

SNS corre o risco de se "transformar numa caricatura", diz Correia de Campos

Presidente do Conselho Económico e Social defende, em conferência sobre saúde, reformas no sistema e alerta para o risco de se "consagrar um oligopólio" com a concessão da gestão dos hospitais a privados.

Pedro Vilela Marques

Longos períodos de espera por uma consulta ou por uma cirurgia, "a aventura do acolhimento demorado e nem sempre qualificado nas urgências" dos hospitais, o risco de infeção hospitalar em internamentos prolongados, notícias sobre carências de equipamentos e de pessoal especializado, falhas na cobertura de médicos de família, em cuidados de saúde oral, nos cuidados continuados para idosos e dependentes. É um retrato em tons carregados aquele que António Correia de Campos, presidente do Conselho Económico e Social, pintou esta sexta-feira no encerramento da conferência "A Saúde e o Estado: O SNS aos 40 anos", organizada pelo CES no Fórum Lisboa. Para o ex-ministro da Saúde, "em 2018 o SNS corre o risco de se transformar numa caricatura do que pretendiam os seus fundadores", razões que justificam "uma atenção exigente e imediata".


Apesar do respeito de que goza o Serviço Nacional de Saúde, "tem-se assistido ao empalidecer dos atributos que o caracterizam", entende Correia de Campos, que integrou governos de António Guterres e José Sócrates. "Devendo ser universal, é apenas usado de forma continuada por cerca de três quartos dos Portugueses. (...) Embora deva ser tendencialmente gratuito, ele está a tornar-se tendencialmente pago pelos cidadãos no ponto de contacto, como o demonstra o lento e insidioso crescimento das contribuições das famílias para a cobertura dos encargos, para além do que já pagam em impostos". isto, numa área para onde são constantemente atirados milhões para remendar problemas através de transferências pós-orçamentais. "Mas não é normal, nem sustentável por muito tempo, que os reforços pós-orçamento de 2016 tenham atingido quase 1500 milhões e as dívidas a mais de sessenta dias 300 milhões de euros, o que não se dissipou em 2017, com reforços pós-orçamento de 1150 milhões e cerca de 800 milhões de euros de dívidas por liquidar".


Um diagnóstico que ainda assim, ressalva o presidente do CES, não é de total desencanto - "O SNS está longe da decadência e muito distante de uma crise grave" -, mas que identifica quatro alternativas para o futuro do Serviço Nacional de Saúde: a mercantil, que parte da ideia de que o mercado pode fundamentar um sistema onde o utente escolhesse entre o SNS e sistemas privados, pagos pelo Estado em regime de convenção; a segunda, que intitula de radical, consistiria em tentar tornar público todo o sistema, através da extinção de taxas moderadoras, eliminação das parcerias público-privadas, reprimindo o crescimento do setor privado; a terceira, a complacente, que consiste em deixar correr tudo como até aqui, "nada fazendo, entregando o futuro do SNS à sua lenta deterioração", ao aumento da oferta privada e da responsabilidade financeira das famílias; e a quarta, a alternativa reformista, que Correia de Campos defende "por realizar um esforço para evitar o declínio do SNS", e que prevê a gestão da combinação público-privado, através da regulação do mercado de forma "assertiva, eficiente e justa".

Críticas ao mercantilismo e aos radicais


No seu discurso, Correia de Campos deixa duras críticas às três primeiras alternativas, onde se podem ler alguns recados políticos. Desde logo à mercantilista, por violar a Constituição, "por desresponsabilizar o Estado e o SNS de assegurarem a promoção e defesa da saúde dos Portugueses". E mesmo na sua "versão atenuada", onde se podem ver traços da proposta para a saúde apresentada recentemente pelo PSD, " concessionando a gestão dos hospitais a privados, além de consagrar um oligopólio, desfoca o SNS". "Este existe não para ser gerido, mas para servir todos os Portugueses. Nem a boa gestão é privilégio dos privados, nem as ineficiências são um estigma do público". Mas também os partidos de esquerda - a alternativa radical - merecem críticas, por defenderem uma rutura para a qual nem os cidadãos nem as instituições estão preparados. "O radicalismo tem o custo do trauma e arrasta sempre alto preço financeiro. Não há Estado que neste momento pudesse acolher um aumento da despesa pública que substituísse totalmente o gasto privado. Sobretudo sem garantir eficiência na despesa, as filas de espera e as falhas de qualidade criariam mais desigualdades, o contrário do que se pretende".

Já a atitude complacente seria simultaneamente inoperante - "por perder a ocasião de reformar aquilo que esteja mal, com medo de conflitos menores" - e desastrosa - por conduzir o sistema para os desejos dominantes das forças de mercado, às quais se não pode pedir que pratiquem a beneficência e promovam a equidade.

Em alternativa, o antigo ministro socialista aponta para uma modernização "sem trauma", "inclusiva", que não destrói "os parceiros do SNS" - "O mercado não é hostilizado, mas regulado" -, em que o Estado "não é endeusado, mas utilizado nas funções estratégicas e reguladoras que lhe incumbem num Estado de direito". E os profissionais também não são esquecidos. "Se o SNS até hoje sobreviveu e conquistou a simpatia dos que nele trabalham, se na sua própria génese os profissionais tiveram um papel de grande relevo, qualquer reforma do SNS terá que honrar os que a ele se dedicaram, facultando condições para melhor e mais qualificado exercício profissional. Sem esquecer que o SNS não existe para dar emprego, mas para servir os Portugueses", conclui o presidente do CES.