Mário Cláudio

A Alma Vagueante

Namora ou O Encontro Adiado

As relações inter-geracionais na literatura, sobressaltadas pela alternância dos modelos, e pela fixação dos mesmos, diferem de outros diálogos etários pela presença de um factor específico. O registo da sucessão das propostas coincide com a própria actividade criativa, o que se denuncia pela expressão scripta manent, a atestar com clareza a recorrência das mudanças de paradigma. Todas as gerações se confrontam, e mutuamente se repudiam, e se não sobrar tempo para que disso reste vestígio, eis que ficará provada a fragilidade das novas opções.

A Alma Vagueante

Lanhas, Pintor e Sábio

Arquitecto, pintor e etnólogo, e sobretudo visionário, Fernando Lanhas atravessaria a paisagem das artes portuguesas como um agente eficaz, mas que me deixava desconcertado. Nunca acertando na definitiva categoria que lhe convinha, olhá-lo-ia eu com uma simbiose de pasmo, estima e interdição, formulando de mim para mim esta pergunta, "Afinal quem é este homem?", declinação da seguinte dúvida, mais ampla, e a que se me tornava impossível responder, "Afinal o que é este homem?"

A Alma Vagueante

O Natal Passado de David Mourão-Ferreira

Talvez o mais citado poema natalício do nosso século XX seja a Ladainha dos Póstumos Natais, de David Mourão-Ferreira, e nele se ilustram duas facetas notórias da personalidade do poeta. Nas suas linhas denuncia-se o gozo da intimidade doméstica, não raro erigida por David em chancela pessoal, e apesar do mundanismo de que se tornava fácil acusá-lo. Por outro lado deduz-se dos mesmos versos a magoada reflexão sobre a transitoriedade das coisas terrestres, tema em que exercitaram o seu engenho os imperadores Adriano e Marco Aurélio, familiares como Mourão-Ferreira da Bacia Mediterrânica, e como ele debruçados para a melancolia da existência, tocada pela exaltação da beleza, que tanto deve aos estóicos como aos epicuristas.

A Alma Vagueante

"Natália, Rainha e Mãe"

A extremada devoção a um artista vivo, ou de preferência morto, quando não prefigura uma condição edipiana, denuncia muitas vezes a semiconsciência da mediocridade. A história abunda em exemplos que tais, e o nosso quotidiano ilustra a cada passo a situação. Falar de Natália Correia implicará portanto enfrentar o olhar de soslaio da corte que a tinha por imperatriz, a qual se compunha de uma maioria de irrelevantes mentais, mas que também integrava muito boa gente, se pensarmos em A.H. de Oliveira Marques, em Fernando Dacosta, ou em Helena Roseta, e nuns quantos mais, sobretudo não habitués, mas puros adventícios.

A Alma Vagueante

Uma Luz Intemporal

Parece-me oportuno interromper hoje a procissão dos detentores da pena, e trazer ao nosso convívio um desses artistas, chamados "plásticos", que uns quantos afirmam em vias de extinção. Júlio Resende, pintor que duas gerações reputaram de um dos maiores de Portugal, representou ao longo de várias décadas exemplo do diálogo das artes visuais com a escrita literária, fenómeno que se extinguiria com o pequeno tsunami, desembestado por happenings e instalações, e com a radicação nas suas trincheiras urbanas, da poesia que a si própria se explica. A narratividade de Resende apenas se compaginaria, mas tarde demais, com o "regresso ao relato", ilustrado pelo pós-modernismo.

A Alma Vagueante

O Último Árbitro

Será um lugar-comum declarar que os escritores, e também as crianças, necessitam de um modelo parental que lhes imponha o código, lhes atribua o prémio, e lhes sentencie o castigo, sob pena de se transformarem em autocráticos monstros, exploradores do próximo, ou em adultos inúteis, a coçar os costados nas esquinas. Por anos e anos João Gaspar Simões encarnaria o grande irmão, aterrorizando e protegendo, verberando e excluindo, os letrados da nossa terra, e desempenhando uma missão que o situava entre o mestre-escola e o juiz. A tenacidade, e inclusive a verrina, que injectava na sua canseira de árbitro das letras lusas, não tornariam a ser igualadas.