Crónica de Televisão

Rogério Casanova

O calvário gnóstico de Steven Seagal

O Natal chegou e partiu, devidamente pontuado por filmes de Steven Seagal. Talvez tenha sido acidental - uma coincidência de programação - ou talvez seja uma tentativa do universo para corrigir uma injustiça: a sua habitual exclusão do cânone tradicional da quadra festiva (Música no Coração, Fuga para a Vitória, Die Hard, etc.). Qualquer tradição suficientemente ampla para incluir os três exemplos anteriores tem de encontrar espaço para a obra de Seagal, um repositório de narrativas, temas e imagens com conotações religiosas muito mais contundentes do que qualquer obra concorrente - tanto nos aspectos ocultos como até nos mais superficiais (O Homem que Brilha, transmitido nesta semana pelo canal Hollywood, começa praticamente com o grande plano de um cadáver crucificado, a que se seguem dois close ups de uma coroa de espinhos e uma chaga trespassada por um prego).

Rogério Casanova

A Liga das Opiniões Extraordinárias

Apesar de todo o tempo que dedicam nos bastidores a operações mundanas como elaborar regimes de abdominais e planear dietas, ou a gestos mais esotéricos como inverter triângulos e imaginar falsos noves, um treinador de futebol é avaliado essencialmente de acordo com as suas duas funções mais visíveis e fáceis de assimilar: 1) seleccionar os jogadores para um jogo e gesticular enquanto eles ganham, perdem ou empatam; 2) encarnar uma "personalidade" na televisão e falar sobre o que aconteceu no jogo anterior ou o que pode acontecer no jogo seguinte.

Rogério Casanova

O que os noivos não sabem

Por volta de 1351 a.C., o faraó do Egipto Amenófis IV escreveu ao rei da Babilónia pedindo-lhe se podia, por obséquio, enviar-lhe uma das suas filhas como presente. O rei respondeu indignadamente que era um grande descaramento pedir-lhe uma filha, quando a sua irmã fora enviada alguns anos antes para o Egipto nessas mesmas condições. "E até hoje não sabemos nada dela", concluía a carta. É possível que Amenófis não se lembrasse do facto quando enviou o pedido.

Rogério Casanova

Mudar de canal

As eleições, regra geral, são engraçadíssimas. Não o acto de votar em si, que para ser engraçado precisa de um tratamento da escola "poesia marciana" (em que o gesto de enfiar um papelinho numa caixa com um buraco é despojado de contexto e reobservado por olhos alienígenas), mas o modo como as acompanhamos. Um conjunto orgânico de filtros mediáticos, hábitos de consumo e contingências logísticas transformou-as numa combinação de evento desportivo - com orçamentos, tácticas, incerteza no marcador - e série de prestígio - com narrativa longa, simbolismo, carga temática. A pergunta retórica exasperada que alguém faz invariavelmente em Portugal por altura das eleições americanas - porque é que nos interessamos tanto por um sufrágio distante? - faz tanto sentido como perguntar porque nos interessamos mais por filmes ou séries americanos do que pela última produção do teatro local. Porque sim, porque há na televisão, porque são maiores e mais visíveis do que as outras, porque é aquilo a que toda a gente está a prestar atenção; qualquer resposta tautológica será a correcta.

Rogério Casanova

Uma pertinente desconstrução das desconstruções pertinentes

Lovecraft Country, que se estreou na HBO Portugal a 17 de Agosto, é uma série de televisão igual a tantas outras nos seus aspectos essenciais: uma descarga controlada de "excelentes" valores de produção, em que um orçamento pesado, mínimos olímpicos de competência técnica, e uma atenção profissional a pormenores de cenário e decoração fazem o trabalho de sapa, compensando a quase total ausência de ingredientes como originalidade, imaginação ou capacidade de criar estranheza. Os seus defeitos e limitações são tão familiares que acabam por ser rasurados pelas exigências simetricamente reduzidas que colocam à atenção do espectador. Os três episódios transmitidos até agora são uma mnemónica dirigida a uma matriz anestesiada: a rede interna de associações e expectativas de todos os espectadores que já reconhecem esta sintaxe visual, atalhos narrativos e maneirismos segmentados a quilómetros de distância, e que os assimilam com a mesma naturalidade com que os leitores de romances assimilam semiconscientemente os indicadores de diálogo ("disse", "declarou", "indagou", etc.). - Lovecraft Country - afirmou solenemente a HBO. - Sim - respondeu o espectador, sem pensar muito no assunto.

Exclusivo

Rogério Casanova

Quatro noites no fim do mundo

Imaginem a Civilização Ocidental com um vestido de gala (colar opulento, penduricalhos, ombros sedutoramente expostos) a percorrer uma passadeira vermelha perante um batalhão de paparazzi. A poucos metros de distância, dezenas de fãs brandem caderninhos, à caça de autógrafos. A Civilização Ocidental sorri nervosamente. A multidão pode esconder inúmeros perigos; cada admirador pode ser um assassino disfarçado. Quem a protege? Quem mantém a Civilização Ocidental em segurança? Felizmente, está tudo controlado: "Trump é o guarda-costas da Civilização Ocidental." A transmissão televisiva da Convenção Republicana tinha começado há menos de cinco minutos e a frase foi proferida por Charlie Kirk, o playmobil em forma humana responsável pelo primeiro discurso da noite. Na posterior interrupção publicitária, um dos anúncios na CNN não tentou vender um produto, mas apenas afirmar a sua utilidade cívica: a imagem de uma máscara cirúrgica, com a legenda "Isto é uma máscara. Não é uma declaração política; é apenas uma máscara". O discurso de Kirk, como quase todos os outros, foi feito num auditório vazio: o efeito (como nos recentes jogos de futebol sem público) é desconcertante, e o contraste com as memórias do passado nunca o deixa ser inteiramente assimilado. Desde que as primeiras convenções partidárias americanas foram transmitidas (em 1956), aquilo que sempre pareceram, mais do que qualquer outra coisa, foi programas de televisão; paradoxalmente, no ano em que são "apenas" programas de televisão, parecem menos programas de televisão do que já foram: a artificialidade é estranhamente comprometida pela falta de público. Uma multidão a aplaudir é essencial à integridade narrativa de uma pessoa a gritar disparates num palanque. Em muitos aspectos, no entanto, foi uma convenção igual a todas as outras, talvez até mais bem comportada do que a de 2016, e menos recheada de momentos memoráveis do que a de 2012 (quando Clint Eastwood conversou com uma cadeira vazia durante nove minutos). A política americana é intrinsecamente divertida quando vista estritamente como espectáculo televisivo, e o Partido Republicano dos últimos quatro anos é talvez a melhor fonte de entretenimento surgida numa democracia, com uma notável subespecialização na estética da insanidade. Donald Trump como "guarda-costas da Civilização Ocidental" seria uma imagem insólita em quaisquer outras circunstâncias, mas fez todo o sentido no contexto temático das quatro noites, que estipulou um mundo à beira do apocalipse. Cada participante, desde o presidente de uma associação de artes marciais a um sindicalista da indústria madeireira, passando por algumas celebridades secundárias da internet, descreveu uma distopia infernal prestes a acontecer. "Joe Biden é o monstro do Loch Ness do pântano", explicou Trump Júnior, "e os Democratas Radicais querem cancelar-nos a todos!". "Eles querem controlar o que nós vemos e ouvimos e pensamos para poderem controlar como vivemos!", assegurou aos gritos uma operação plástica identificada como Kim Guilfoyle. "Não se iludam: onde quer que seja, nunca estaremos a salvo", profetizou uma senhora conhecida por ter aparecido na televisão com uma semiautomática em punho. De vez em quando, a retrospectiva informal de Bosch e Brueghel era interrompida por alguns discursos tendencialmente "inspiradores" (pessoas que não tinham emprego, mas depois tiveram, graças ao presidente; pessoas que estiveram doentes, mas já não estavam, graças ao presidente). As alusões da praxe ao "Sonho Americano" - a ideia de que qualquer pessoa, independentemente das suas origens, pode triunfar graças à competência e à vontade de trabalhar - foram reiteradas pelos dois filhos de Trump, pela filha de Trump, pela outra filha de Trump, pela nora de Trump e pela mulher que se casou com Trump. Depois o interlúdio chegava ao fim, e o apocalipse recomeçava: "Prédios abandonados! Lojas de bebidas em cada esquina! Drogados nas ruas!" O congressista Matt Gaetz foi quem tentou elaborar o cenário mais específico: "Joe Biden vai fazer de vocês figurantes num filme escrito, produzido e realizado por outros. É um filme de terror, na verdade. Eles vão tirar-vos as armas, esvaziar as prisões, fechar-vos nas vossas casas e convidar um gangue de criminosos mexicanos a mudar-se para a casa do lado." Nada disto é propriamente novidade: os americanos sempre calibraram a sua retórica eleitoral como a derradeira oportunidade de evitar um desastre sem precedentes. Mais raro, talvez, é a retórica surgir de uma administração em funções e não de uma insurgente alternativa ao statu quo. Seria uma estratégia invulgar se o que estivesse a ser oferecido fosse um argumento político, uma defesa de uma maneira de fazer as coisas, em contraste com outra maneira. Mas este tipo de eventos (tal como a campanha que se segue) já não é primariamente um mecanismo de persuasão. O seu propósito não é fornecer um modelo para explicar a realidade, mas apenas sinalizar que partilha com o público-alvo um modelo que já existe, construído e distribuído de uma forma peculiarmente contemporânea: o samidzat etéreo de medos, ódios e irritações que circula como estenografia identitária nos seus espaços designados na internet e nos canais por cabo. Estas são as coisas que me irritam, estas são as pessoas que odeio; este é o "meu" lado, aquele é o outro. O discurso político que surge destes espaços não é sequer uma conversa, mas uma cacofonia de monólogos rancorosos, cujo objectivo nunca é convencer terceiros, mas consolidar um conjunto de pressupostos, superstições e microignorâncias deliberadas. Serve para transmitir lealdade à marca, para publicitar uma certa maneira de ver o mundo. Trump, claramente, não possui nem nunca possuiu nada que se assemelhe a uma ideologia: as suas "convicções" políticas não são mais do que uma colecção de impulsos semiconscientes na defessa agressiva do seu próprio ego, complementada com algumas frases soltas ouvidas na televisão, e prontamente esquecidas até alguém as repetir no mesmo ecrã. A sua base é constituída pelos que se irritam com as mesmas coisas que o irritam. Porque não há nada substancial de que tencione convencer alguém, a questão de acreditar nele ou não é reduzida ao essencial. Revolução marxista, hordas de vândalos, elites pedófilas, oposição a soldo da China, imprensa inimiga do povo: ninguém precisa de "acreditar" literalmente em nada disto - apenas na sua validade como metáforas para a perversão essencial do outro lado. Não é uma declaração política; é apenas uma máscara. Não serve para esconder, mas para mostrar quem está do mesmo lado. Escreve de acordo com a antiga ortografia

Rogério Casanova

A toxicidade e as serras

Mais tarde ou mais cedo, qualquer adepto de futebol, qualquer comentador de futebol, ou qualquer turista de passagem pelo mundo do futebol diz, ou pelo menos pensa, a mesma frase. A frase é "o futebol não é isto" - e normalmente é dita sobre algo que é futebol, e sempre foi futebol. Os "istos" que o futebol não é ocupam um espectro vasto, mas familiar, que vai do mais recente autocarro apedrejado ao guarda-redes que finge uma lesão até se esgotarem os minutos de desconto, passando pelo cliente do café a gritar calmamente um enredo de Le Carré para explicar um fora-de-jogo mal assinalado. O futebol não é aquilo, pensamos (ou dizemos). Antigamente era outra coisa, e é uma pena que já não seja.

Rogério Casanova

Shirley

O mais recente acrescento à vexante categoria "filmes sobre escritores", Shirley (disponível para alugar na Amazon Prime) não perde muito tempo antes de abordar directamente o problema central da vexante categoria "filmes sobre escritores". Passam apenas vinte minutos até ouvirmos pela primeira vez o som inconfundível de uma máquina de escrever a ser martelada. Uma personagem aproxima-se com alguma hesitação e observa, a uma distância respeitosa, a escritora à sua secretária. A máquina é martelada mais um pouco. Uma página é lida e rasgada. Um suspiro é emitido. Um cigarro é incinerado. "Queres saber o que é que faz um escritor? Absolutamente nada."

Crónica de Televisão

O naufrágio de Saleiro

Quando descrevemos uma série de televisão como "má", o que queremos dizer é que se trata de uma série de televisão em que algumas coisas mal feitas acontecem. O número de coisas mal feitas pode ser maior ou menor, mas o veredicto é sempre probabilístico e não binário, e uma das consequências da histórica migração de recursos (criativos e económicos) para o sistema de produção televisiva nos últimos 15 anos é que esse intervalo probabilístico se tornou cada vez mais reduzido. A acumulação de talento técnico e de orçamentos milionários impede preventivamente o aparecimento de séries muito más - tal como dificulta (por motivos apenas aparentemente paradoxais) o aparecimento de séries muito boas; a adesão generalizada a uma fórmula de efeitos visuais e narrativos funciona como rede de segurança, mas também como telhado invisível.

Rogério Casanova

Catedrais sem importância

Há pouco menos de dois meses, quando centenas de prioridades foram drasticamente revistas e ainda não se sabia ao certo se isto era o fim do mundo ou uma suspensão provisória das suas regras habituais, várias contagens decrescentes começaram em simultâneo. Era uma questão de tempo até alguém dizer que a pandemia era a Mãe Natureza a curar-se do seu próprio vírus (nós); era uma questão de tempo até alguém dizer que o covid-19 era uma fabricação ou uma conspiração; e era uma questão de tempo até alguém dizer que coisas como o futebol não são assim tão importantes.