Carta de Los AngelesO monstro precisa de amigosOs letreiros começaram a surgir no ano passado. "Não fazemos bolos para casamentos gay", avisavam as vitrinas de pastelarias. Em dezembro, um jornalista perguntou à porta-voz Sarah Huckabee Sanders (na foto) se a Casa Branca apoiava este direito dos pasteleiros de recusarem serviço a clientes por não concordarem com o seu comportamento ou com o estilo de vida. Ela disse que sim, claro, porque é um exercício de liberdade religiosa. O Supremo norte-americano confirmou a validade desta posição quando, no início de junho, decidiu a favor de um pasteleiro do Colorado que foi processado por se recusar a fazer um bolo para um casal gay. "Estamos satisfeitos com a decisão do Supremo", afirmou então Sarah Huckabee Sanders.
Carta de Los AngelesAlgoritmos de distorção maciçaSegui a ligação para um vídeo no YouTube que prometia a "verdade" sobre o 11 de Setembro porque estava curiosa para ver de que variante argumentativa se tratava. Teorias da conspiração sobre o ataque de 2001 abundam nas franjas da sociedade americana, mas nunca houve tanta imaginação conspirativa como agora. Na coluna do lado direito, o site de partilha de vídeos tentava-me a continuar a busca: que tal um vídeo sobre Bill Cooper, assassinado por expor a verdade? E estas "evidências explosivas" relacionadas com o ataque?
Carta de Los AngelesA bondade de estranhosHá vinte anos, Maria Teresa andava a apanhar míscaros na floresta quando encontrou uma mala verde com dois bilhetes de avião e dois passaportes americanos. O voo, com destino a Nova Iorque, era para a manhã do dia seguinte. Quem se lembra como era viajar no final dos anos 90 sabe que não havia cá quiosques para imprimir um novo bilhete nem apps no smartphone ou chatbots no Messenger. Não havia iPhones, Google Maps ou e-tickets.
Carta de Los AngelesDiamante e SedaO momento em que o senador Orrin Hatch perguntou a Mark Zuckerberg como é que o Facebook podia sustentar-se sem cobrar nada aos utilizadores ficou para a história dos memes. "Senador, mostramos anúncios", respondeu o CEO da rede social. A pergunta foi usada como prova de que estamos lixados, porque os legisladores não percebem uma onça de tecnologia e não poderão regular o que não entendem.
Carta de Los AngelesViagem até ao SolDurante quatro dias no verão de 1859, todos os sistemas telegráficos da Europa e Estados Unidos foram abaixo por causa de uma tempestade solar nunca antes vista. Seriam precisos mais 99 anos para que o astrofísico Eugene Parker fizesse uma descoberta fenomenal cujo caminho tinha sido preparado pelos antecessores: identificou como "vento solar" os grandes movimentos de partículas a partir da coroa do Sol responsáveis por interferências das comunicações, satélites, sistemas GPS e serviços elétricos. O vento solar transforma-se em tempestade geomagnética quando interage com o campo magnético da Terra, e foi isso que aconteceu nesse evento histórico há 160 anos. Então porque é que nunca fomos ao Sol tentar aprender mais sobre a estrela que tudo determina?
Carta de Los AngelesEstados Unidos da AmnésiaTim Robbins fala pausadamente, com voz grave, ponderando a cada momento as palavras que está prestes a dizer. Numa sala de hotel em Los Angeles, o ator de Mystic River, Shawshank Redemption, The Brink olha para os smartphones em cima da mesa e anda para trás no tempo. "Penso sempre no que costumava ser a comunicação antes dos telefones", diz. "Era o bar, o barbeiro, uma comunidade que lidava com as diferenças cara a cara." Robbins vai fazer 60 este ano, tal como o personagem Greg Boatwright, que interpreta na nova série da HBO Here and Now. Em muitos pontos de vista, partilha da frustração dele: um filósofo que passou a vida inteira a lutar por um mundo melhor e chega a 2018 sem reconhecer o seu país, a sua sociedade, as facções que o rodeiam.
Carta de Los AngelesOs Herdeiros da ParadaO vestido florido de Melania resplandecia contra um mar de cinzento e azul-escuro. A primeira-dama dos Estados Unidos batia palmas solenemente, enquanto o marido, Donald Trump, fazia sinal de continência com a mão direita, expressão grave, corpo muito direito. Ao lado, o presidente francês, Emmanuel Macron, e a mulher, Brigitte Macron, aplaudiam ocasionalmente, sérios, compostos, com orgulho.
Carta de Los AngelesA beleza da censuraHá dois anos, a Coreia da Norte ameaçou com violência quem se atrevesse a ir ao cinema ver A Entrevista, uma comédia em que James Franco e Seth Rogen matam Kim Jong-un. O resultado foi que o filme esgotou por todo o lado e no dia da estreia cantava-se o hino americano dentro das salas. O furor associado à reação incendiária da Coreia do Norte é que levou toda a gente a querer ver o filme - precisamente o oposto do que o "querido líder" desejava.
Carta de Los AngelesOs joelhos da discórdiaPouco depois das dez da manhã, com um frio atípico a cumprimentar os domingueiros, já se ouvia o crepitar dos churrascos e as colunas dos carros a rasgarem o ar com música de festa. "Bilhete, por favor", pedia um dos seguranças do parque de estacionamento em frente ao Estádio NRG, casa da equipa de futebol americano profissional Houston Texans. "Que barulheira é esta no parque de estacionamento", perguntei, mirando as carrinhas de caixa aberta com o som a bombar, as mesas de piquenique a serem postas e as latas de cerveja a serem abertas. "Isto é tailgating", explicaram-me. Algumas horas antes do jogo, milhares de fãs transformam os parques de estacionamento à volta do estádio numa espécie de parque de campismo, onde há confraternização, partilha de petiscos, cadeiras de lona e até televisores para ver os outros jogos que entretanto vão sendo transmitidos. Mais perto da entrada do estádio há barracas de marcas que se associam à festa, põem música para os fãs dançarem e vendem merchandising. Nem no mais aguerrido Sporting-Benfica vi alguma coisa que se assemelhe a isto, e este foi um jogo entre duas equipas que estão na mó de baixo - os Texans tinham perdido os últimos dois jogos e os San Francisco 49ers contavam apenas duas vitórias em 13 partidas. O estádio que leva 70 mil pessoas estava a menos de metade e foi possível arranjar bilhetes para lugares com vista privilegiada por cerca de 200 euros (uma pechincha, segundo parece). Lá dentro, uma banda tocava músicas de Michael Jackson e os apoiantes dos Texans desafiavam os fãs dos 49ers. "Péssima sorte para a sua equipa hoje", lançou um homem já com alguma idade. "Igualmente, meu senhor", foi a resposta. "Não, eu disse primeiro!", retorquiu. E ambos sorriram. Que raio de simpatia é esta? Talvez a fraca posição das equipas não justifique animosidade. Talvez o facto de não serem rivais diretos explique a polidez das trocas de mimos. Talvez o facto de haver avisos por todo o lado de que não serão tolerados abusos de apoiantes das equipas rivais refreie os ânimos; ninguém quer ser expulso do estádio depois de pagar uma pequena fortuna para ver um jogo de quase quatro horas de duração.
OpiniãoAs mulheres da NASANuma das suas primeiras viagens de trabalho, a engenheira mecânica Traci Drain estava na fila para o buffet quando a avisaram de que já não havia sumo de laranja. Olhou, embaraçada, para o que estava a vestir e balbuciou que não trabalhava ali. "São as suposições que as pessoas fazem", disse a engenheira que trabalha no Jet Propulsion Lab da NASA, em Pasadena, numa noite de discussão sobre o filme Hidden Figures na academia.
Carta de Los AngelesInsurreição femininaSe nada for feito, a igualdade de género só acontecerá dentro de cem anos." A voz ecoou no microfone e deixou o auditório em silêncio. "Não sei quanto a vocês, mas eu sou capaz de já não estar cá." Seguiu-se uma explosão de gargalhadas e aplausos, entre o peso da tarefa dantesca que está pela frente e a vontade de arregaçar as mangas. Quem falava era Catherine Gray, a organizadora da conferência Live, Love, Thrive, em West Hollywood e presidente da 360 Karma, uma empresa que tem como missão dar poder às mulheres em Los Angeles.
Carta de Los AngelesNo limite do TexasDuas jovens mulheres abraçam-se sentadas numa manta com as cores do arco-íris, simbolizando de forma cromática o orgulho pela sua união. Ao lado, alguém fuma marijuana de forma descontraída. Um grupo avança com um cartaz que diz "Acabem com os tiroteios, não temos medo de vocês." Uma mão-cheia de casais maduros sentam-se em cadeiras de pano com cervejas na mão e madeixas roxas no cabelo a assistir ao concerto de música country que acaba de começar. É que este festival de música não é na liberal Califórnia, onde tudo o que é estranho se tornou normal e tudo o que é progressista se tornou aceite. Este festival é no meio do Texas, o estado que votou em Trump e onde há mais conservadores por metro quadrado do que na sede do partido. A contradição só é surpreendente para quem nunca visitou Austin: a capital do Texas é uma das cidades mais diversas e progressistas onde já pus os pés. Naturalmente, este ambiente reflete-se de forma profunda no festival de música Austin City Limits, que neste ano está na 16.ª edição. É um dos maiores festivais do mundo, com quase meio milhão de espectadores nos dois fins de semana em que decorre. O formato é semelhante ao icónico Coachella, na Califórnia, mas com quase o dobro de bilhetes vendidos. O Austin City Limits é um dos motivos pelos quais a cidade é considerada a capital mundial da música ao vivo. Há qualquer coisa única neste festival, e não é só a dimensão, com multidões que se espalham por relvados a perder de vista e palcos tão grandes que todos parecem principais. O ambiente é ao mesmo tempo bizarro, ousado, diverso e familiar. As famílias trazem os seus bebés em carrinhos e a miudagem corre por entre hordas de adolescentes a atirar bolas de futebol americano. Veem-se grupos de pessoas bem mais velhas do que o habitual neste tipo de eventos deitadas em mantas de piquenique, e há até zonas de cadeiras e zonas sem cadeiras - tal é o número de espectadores que planta a cadeira de pano à frente dos palcos. O cheiro a marijuana é intenso por todo o lado, algo que me apanhou de surpresa: a canábis é completamente ilegal no Texas, ao contrário do que acontece na Califórnia e noutros 28 estados, e no parque Zilker, onde decorre o festival, é proibido fumar qualquer tipo de cigarros, tradicionais ou eletrónicos. A segurança é mais ou menos apertada à entrada, com reforço especial por causa do que aconteceu em Las Vegas. Como é que tanta gente entra com canábis mantém-se um mistério, mas dá um certo gozo. É um dedo do meio gigante à legislatura do Texas, tão conservadora e retrógrada. É um sinal de que os ventos de mudança se sentem por dentro da própria máquina. Austin, a capital do Texas, é uma cidade liberal, que votou maioritariamente em Hillary Clinton nas eleições presidenciais. É impossível parar o progresso social, ainda que o sistema tente atirar pedras à engrenagem. É por isso que o Austin City Limits se torna uma celebração única, que junta estrelas da música country como Asleep at the Wheel a estrelas do rap e do hip-hop, rock e música pop. Neste ano, vi Jay-Z mandar tudo abaixo num concerto eletrizante. Vi a sueca Tove Lo levantar a camisola e expor o peito nu enquanto cantava canções de fazer corar a Madonna, entre Disco Tits e Talking Body. Vi os Red Hot Chili Peppers a fazer uma homenagem a Tom Petty ("Esta canção é para ti, irmão. Não morreste em vão", disse Anthony Kiedis), entre os acordes de Californication e Give it Away. Ouvi os Foster the People dizer que os meios de comunicação social são culpados pela divisão do país, da Fox News à CNN, e que não estamos tão divididos quanto isso (Mark, pensa lá bem nisso). Descobri uns Cut/Copy incríveis, a quem a organização cortou o som às 19.00 para outra homenagem a Petty: paraquedistas caindo sobre o parque ao som de Free Falling. Vi as histórias digitais dos Gorillaz e ouvi os Portugal.The Man, que foram buscar o seu nome ao nosso país, entregar um poderoso Feel it Still. Dei uns passos de dança com Milky Chance e vi os The Killers fechar o festival em apoteose, abrindo com American Girl (obrigada Tom Petty) e partindo tudo em Mr. Brightside e Human. No ar, um sentimento de desafio e de coragem. Da mulher com a camisa a dizer "Suck it up, buttercup" ao rapaz com Bill Clinton estampado na T-shirt. Das mil bandeiras - incluindo a portuguesa - que ondularam na suave brisa outonal de Austin, onde estão 35 graus. A resiliência contra o medo num fim de semana incrível, bem organizado, com água e autocarros gratuitos, palco para crianças e uma zona de imprensa inigualável. O Austin City Limits é um daqueles acontecimentos a que devíamos ir pelo menos uma vez na vida. Aqui descobri que os limites do Texas são muito mais elásticos do que aquilo que se pensa para lá das botas e chapéus de cowboy.
Carta de Los AngelesRocket manOs dedos entrelaçados, o olhar vagueando pela sala, alguma hesitação na voz, as calças de ganga mal assentes sobre os sapatos, a camisa branca sem gravata por dentro do casaco preto. Esta figura desconcertante, do alto do seu 1,88 m de altura, regressou ao palco do Congresso Internacional de Astronáutica para explicar como irá assegurar a continuidade da raça humana no futuro.