Ana Rita Guerra

Ana Rita Guerra

Acordar numa América dividida: Trump não foi um acidente

Às primeiras horas da manhã, quando uma frincha de luz já entrava pela janela, acordei ao som de helicópteros a sobrevoar Los Angeles. Saltei da cama para ir buscar o telemóvel e perceber se tinha acontecido alguma coisa nas poucas horas que dormi, depois de a maratona do dia eleitoral ter terminado sem resultados. Mas as contas estavam quase na mesma: Joe Biden tem 225 votos no Colégio Eleitoral, Donald Trump tem 213. Um deles terá de chegar aos 270 para ser declarado presidente dos Estados Unidos da América.

Carta de Los Angeles

O dono da bola

"É uma charada!", gritava um dos painelistas, "nós nem gostamos de futebol e calha-nos o Campeonato do Mundo? Portugal tenho a certeza de que gostaria de o receber, ou qualquer outro país da tanga europeu!" A referência gerou sensação na audiência, porque a expressão que o comediante Hari Kondabolu usou no programa de rádio Wait Wait Don"t Tell Me, da NPR, foi crappy. "Ah, sim, vocês todos adoravam Portugal antes de virem para aqui", refutou Kondabolu, com sarcasmo, perante a reação de quem assistia ao vivo.

Carta de Los Angeles

O sonho americano

À porta do cinema, dois avisos secaram-me a boca. "É proibida a entrada neste estabelecimento com arma oculta", li nos cartazes, segundo o artigo de tal e tal, com as seguintes repercussões para quem desobedecer, porque o cinema não é local onde armas sejam bem-vindas. Lá dentro, metade dos filmes em cartaz celebravam a glorificação da violência armada. O país chorava mais um tiroteio, sem perceber a incongruência desesperante de uma sociedade que incentiva a posse de armas mas envia pensamentos e orações quando elas são usadas em incidentes trágicos. É frequente ver estes avisos a pedir que os consumidores não levem armas ocultas para dentro dos estabelecimentos em Austin, capital do Texas. Apesar do liberalismo da cidade, as leis do Estado sobrepõem-se ao pendor democrata dos seus habitantes. E no Texas é possível comprar armas a partir dos 18 anos, sem necessidade de licença nem limites na quantidade, capacidade, munições ou acessórios.

Carta de Los Angeles

O dia em que os carros vão voar

A Interstate 105 que Los Angeles inaugurou em 1993 era uma maravilha da engenharia, uma autoestrada de dimensões dantescas construída para a modernidade. O fim de uma era, disse-se na altura, quando a grande metrópole do sul da Califórnia completou mais de 50 anos na vanguarda das ligações rodoviárias. Esta rede, com poucas ou nenhumas portagens, continua a ser fenomenal. Tem apenas um problema: o tráfico mais congestionado do mundo.

Carta de Los Angeles

Cavaleiros do Apocaplipse

Na segunda temporada da série Westworld, os robôs criados para entreter os desejos mais violentos dos humanos viram o mundo de pernas para o ar. Não procuram aniquilar os seus criadores, como se prevê em tantos trabalhos de ficção apocalípticos, mas libertarem-se da crueldade imposta pelos limites da sua programação. A série toca em pontos críticos de forma notável, procurando que as pessoas questionem a natureza da sua realidade. O drama existencial é tão profundo que um dos protagonistas, Jeffrey Wright, passou a olhar para o seu smartphone de forma diferente. Tipo aquela boneca antiga sentada na prateleira que parece perseguir-nos com os olhos esbugalhados, de tal maneira que é preciso ir virá-la ao contrário a meio da noite para conseguir dormir.

Carta de Los Angeles

Viagem até ao Sol

Durante quatro dias no verão de 1859, todos os sistemas telegráficos da Europa e Estados Unidos foram abaixo por causa de uma tempestade solar nunca antes vista. Seriam precisos mais 99 anos para que o astrofísico Eugene Parker fizesse uma descoberta fenomenal cujo caminho tinha sido preparado pelos antecessores: identificou como "vento solar" os grandes movimentos de partículas a partir da coroa do Sol responsáveis por interferências das comunicações, satélites, sistemas GPS e serviços elétricos. O vento solar transforma-se em tempestade geomagnética quando interage com o campo magnético da Terra, e foi isso que aconteceu nesse evento histórico há 160 anos. Então porque é que nunca fomos ao Sol tentar aprender mais sobre a estrela que tudo determina?

Carta de Los Angeles

Os homens da Marcha das Mulheres

"Que dia para estarmos vivos", exclamou Ted Danson, barrete cinza na cabeça, dirigindo-se à multidão em frente ao city hall de Los Angeles. "Olhem para nós! Não estamos sozinhos em casa a ver televisão, tristes e assustados com o que vemos. Estamos aqui a apoiar-nos uns aos outros." Danson, que ao lado tinha a mulher e também atriz Mary Steenburgen, foi um dos homens que falaram do palco da Marcha das Mulheres em Los Angeles, a maior de todo o país. Contas finais, 700 mil pessoas, quase tantas como a marcha inaugural do ano passado. Uma mancha a perder de vista de cartazes, barretes cor-de-rosa, bandeiras americanas, celebridades e T-shirts com a mensagem de que por estes dias ecoa em Hollywood: Time"s Up.

Opinião

Time's Up

O sentido de igualdade tem de vir de dentro de nós", gritou a atriz Scarlett Johansson no palco da Women"s March Los Angeles. Os gritos e palmas afogavam o seu discurso apaixonado sobre assédio sexual e o movimento #Me Too, enquanto os telemóveis se levantavam para filmar o momento. Estamos na capital do cinema, por isso o desfile de celebridades misturou-se com o dos políticos democratas e ativistas imigrantes e LGBT. Natalie Portman contou como começou a ser assediada aos 12 anos, quando fez o primeiro filme. Eva Longoria enquadrou a marcha num movimento que vai além de qualquer político, porque o que se pede é "uma mudança sistemática para as mulheres na América, por salários e representação iguais". Rachel Platten cantou a sua Fight Song, a música que Hillary Clinton escolhera para a campanha em que foi derrotada, e pôs toda a gente de punho no ar.

Carta de Los Angeles

Juízo final

Apareceu com um chapéu de cowboy enterrado na cabeça, calças de ganga e luvas de pele, em cima de um cavalo branco e castanho. Roy Moore, juiz candidato a senador pelos Republicanos no Alabama, cavalgou até às urnas desafiante, qual fora-de-lei do faroeste que vinha tomar uma cidade. As sondagens mostravam uma corrida muito próxima com o oponente democrata Doug Jones, algo que até há algumas semanas seria impensável. O Alabama é um dos estados mais Republicanos e conservadores do país. Vermelho até ao tutano, profundamente religioso, draconiano nas políticas de identificação dos eleitores, um Estado onde o lugar de senador só ficou vago porque Jeff Sessions foi escolhido por Donald Trump para procurador-geral dos Estados Unidos.

Ana Rita Guerra

Justiça poética

Pensámos que gostarias de rever esta memória de há um ano, disse-me o Facebook, mostrando a capa do Libération que partilhei no rescaldo da eleição de Donald Trump, em 2016. Tem uma imagem obscura do então presidente eleito, com apenas duas palavras a branco: "American Psycho". O primeiro aniversário de uma das eleições presidenciais mais fraturantes da história dos Estados Unidos coincidiu com uma semana de eleições históricas, mas para o outro lado. Na Virgínia, o democrata Ralph S. Northam esmagou o candidato republicano Ed Gillespie na corrida ao cargo de governador, pela maior margem em várias décadas naquele estado. Em Nova Jérsia, os democratas arrancaram o estado das mãos dos republicanos ao darem a posição de governador a Philip D. Murphy. O democrata Bill de Blasio reconquistou o gabinete de mayor em Nova Iorque, apesar de a sua popularidade não andar nos píncaros. Estas conquistas galvanizaram a esquerda, sedenta por vitórias concretas na era da resistência a Trump. O Partido Democrata voltou a enviar e-mails como fazia antes da derrota de Hillary Clinton, pedindo apoio, donativos, voluntariado. As redes sociais encheram-se de celebrações à esquerda e escárnio à direita. A Fox News teve alguma dificuldade em aceitar os resultados, o que se refletiu na parca cobertura da noite eleitoral - o apresentador Sean Hannity falou disso num total de seis segundos.